Samuel Úria em entrevista: “Este nunca será um disco de escape, é demasiado atual”

Samuel Úria em entrevista: “Este nunca será um disco de escape, é demasiado atual”

| Outubro 24, 2020 3:14 pm

Samuel Úria em entrevista: “Este nunca será um disco de escape, é demasiado atual”

| Outubro 24, 2020 3:14 pm
© Joana Linda

Nome incontornável da cultura portuguesa dos últimos dez anos, Samuel Úria é um dos maiores cantautores cá do burgo e conta já na sua discografia com 9 registos de estúdio. A cada disco que passa vai aprimorando a sua capacidade lírica, resultando nas canções mais pertinentes e audazes que em tudo retratam a nossa condição de ser português.

Longe vão os tempos em que rodava no Portugália, de Henrique Amaro, a versão mais acústica de “Teimoso”, a qual pode ser escutada no EP editado em 2008 intitulado Samuel Úria em Bruto. Os primeiros sinais de reconhecimento por parte da crítica e do público chegaram com Grande Medo do Pequeno Mundo, disco de onde fazem parte os hinos “Lenço Exuto” e “Eu Seguro”, os quais contam com a participação de Manuel Cruz e Márcia, respetivamente. Seguiu-se depois em 2016 Carga de Ombro, disco que veio confirmar o potencial máximo de letrista de Úria, com mais uma leva de canções memoráveis, especialmente se escutadas ao vivo, como são o exemplo de “Dou-me corda” e “É preciso que eu diminua”.

Canções do Pós-Guerra é o mais recente trabalho do artista, chegou às lojas no passado dia 18 de setembro com o selo da Valentim de Carvalho, e assume-se como o disco “mais pessoal e despojado” de Samuel.

Foi numa manhã de segunda-feira que estivemos ao telefone com Samuel Úria e falámos sobre a composição de Canções do Pós-guerra e as baladas que dele fazem parte, o adiamento do lançamento previsto para abril e o seu caráter premonitório, dos tempos antigos da FlorCaveira, de algumas distrações durante o confinamento, entre outros assuntos.


O teu mais recente trabalho intitula-se Canções do Pós-guerra. Que guerras são essas a que te referes no título? A press release refere uma “guerra” interior e espiritual e ao mesmo tempo fala num falhanço coletivo.


Samuel Úria (SU) – Deixa-me só dizer que não sou eu o autor dessas palavras, embora esteja até um bocado intrigado como é que o Rui Portulez, o A&R da Valentim de Carvalho que escreveu este texto, sem falar comigo, conseguiu decifrar ali muita coisa. De facto existe esse conflito interno, existem várias guerras. Aliás, o Pós-guerra para já fascina-me enquanto geração literária. Normalmente quando se fala em Pós-guerra fala-se da altura a seguir à Segunda Guerra e a geração literária que poderia às vezes ser muito esperançosa e otimista em relação a um conflito que termina e a um mundo que parece reconstruir-se. Mais do que isso, parece-me também uma geração recrudescida e muito auto-implicativa, introspetiva. Isso de alguma maneira fascina-me, esses trejeitos literários. O Pós-guerra [o disco], por um lado tem também tem essa referência literária, dos autores do Pós-Guerra. Depois há também um bocado aquela ideia de que guerras e conflitos há sempre. Em termos semânticos, guerra pode ser muita coisa. Falar de situações pós-conflitos, sejam eles internos ou externos, seja eu um observador ou o próprio causador desses conflitos, é matéria para escrever canções e pareceu-me fixe escrever canções ao abrigo dessa noção de conflitos constantes depois de um período posterior, que não é necessariamente de reconstrução, às vezes é de maior derrube ainda.

Ao escutar o disco, este parece-nos mais direto e pessoal do que os anteriores, um olhar para dentro. Qual a tua opinião em relação a isso?

SU – Sim, eu acho que se tornou mais pessoal, há se calhar um argumento circunstancial que talvez o tenha tornado assim. O disco vem na sucessão de um EP que eu fiz há dois anos chamado Marcha Atroz. Foi a primeira vez em que cheguei a estúdio e as melodias e a estrutura das canções estavam feitas, as letras estavam feitas. Fui propositadamente sem ideias de arranjos, até a própria parte instrumental não estava completamente definida. O que eu fiz nesse EP juntamente, com o produtor Miguel Ferreira, foi ouvirmos as canções da forma mais despojada, normalmente só voz e guitarra, e percebermos onde é que o contexto da canção nos levava, olhávamos para o que é que tinhamos na sala à nossa volta, o que é que nós podiamos acrescentar às canções. Isso de alguma maneira levou a que esse EP se tornasse um objeto muito próximo de coisas que estão a acontecer agora em termos musicais. Estava muito permeável a tendências ou revivalismos musicais, porque nós fomos atrás das canções, nem fomos propriamente atrás de estilos. Apesar dos meus discos anteriores serem muito pessoais, sobretudo na parte das letras, havia sempre ou uma fuga ou uma aproximação a um universo estílistico qualquer, que me levava a desenvolver as canções de uma determinada maneira. Não aconteceu no EP, as canções foram absolutamente merecedoras daquilo que iam levar por cima. Eu quis que este disco também fosse feito da mesma maneira. Fui para estúdio numa fase inicial com muito pouca coisa feita em cima das canções, em cima do esqueleto da voz e da guitarra. O disco foi desenvolvido sempre em torno de ideias que iam surgindo e que nunca me pareciam estar a abafar quer a mensagem, quer a própria utilidade que é a personalidade. Então tornaram-se muito pessoais embora tenham sido feitas em estreito relacionamento com o Miguel Ferreira, o parceiro ideal que eu percebi que não ia remar contra a minha personalidade, mesmo que isso às vezes pudesse prejudicar o aspeto final da canção. Nesse sentido, pode não ser o meu disco mais atractivo, mas é de facto o mais pessoal e mais despojado. 

Capa de Canções do Pós-guerra

O lançamento do disco estava previsto para abril, mas acaba por sair uns meses depois, já num contexto pandémico. Sentes que se enquadra neste tal contexto mesmo tendo sido gravado anteriormente? 


SU – Enquadra-se até de uma maneira bizarra. Há palavras que eu escolhi para títulos de canções que depois se tornaram muito corriqueiras noutro contexto mas relacionadas com a pandemia, como é o caso da “Contenção”. Por ser um disco em alguns momentos pessimista ou fruto de algum negrume, ou às vezes até sombrio na descrição dos tempos, tornou-se um disco também muito presente. Isso é quase assustador. É uma coincidência que eu diria infeliz porque quando projetei o disco, pensei que seria mais soturno, que iria cumprir o seu tempo de vida, iria ser um momento na minha carreira em que as pessoas vão perceber que foi necessário escrever estas canções. Em termos utilitários, eu não sei até que ponto é que as pessoas vão querer rever isso nas artes, na música ou o que quer que seja, já que estão a viver tempos soturnos. Ao contrário de algumas coisas que escrevi em discos anteriores, eu tenho a sensação que este disco saindo nesta altura nunca poderá ser um disco escape. Pode funcionar na medida em que as pessoas vão rever os tempos que estão a viver no disco, mas nunca será um disco de escape, é demasiado atual. Desafortunadamente profético. 

O que te motivou na composição deste disco, que é já o nono na tua carreira, se as contas não nos falham. Há alguma questão filosófica, antropológica ou sociológica envolvida?


SU – Nem sempre é premeditado. Normalmente depois de ter duas ou três canções, começo a pensar em alguma coisa que as agregue. Como há bocado estava a dizer, a temática quer linguística, quer literária e semântica do Pós-guerra serviu-me para escrever as canções. Por outro lado, de uma forma semi-adormecida, tendo sido um disco que eu escrevi numa altura em que estava prestes a fazer 40 anos, acho que isso pode ter moldado. Eu não sou fatalista, nem sou uma pessoa com medo do envelhecimento, mas não deixa de ser pelo redondo do número uma efeméride que marca. Apesar de ser um disco que pode parecer de algum ressentimento, não o é. Acho que a parte mais sombria não é de ressentimento, é de algum amadurecimento. Nisso, acho que procurei um disco amadurecido, dado o facto de estar quase a fazer 40 anos e de alguma maneira isto poder assinalar esse número redondo que estava prestes a completar. 


Dirias que o disco é mais baladeiro do que o costume, apesar de pontuado por temas de rebelião e inquietação como “Aos Pós”, “Fica Aquém” e “Contenção”? 


SU – Sim, até é curioso. Eu sou muito cioso na escrita das canções, mas depois tudo o que transpõe, como é por exemplo a parte de agendar o que vai sair primeiro e o que vai sair depois, eu dou o meu input mas já não é uma parte que me envolva tanto. Percebo até que há percepções de indústria, com as quais nem quero estar relacionado, dou carta branca a quem trabalha comigo para tratar disto. Engraçado que a maior parte das canções que saíram, tirando o “Muro”, até foram as canções mais roqueiras, que não correspondem ao grosso do disco. Espero que não seja uma deceção para agora quem for ouvir. O disco contém de facto mais baladas, é menos pop, mais desacelarado, apesar de ter essas canções aceleradas e até contestatárias, como é o caso da “Fica Aquém”. O disco foi em grande parte escrito no outono/inverno, normalmente quando são escritos nessa altura os discos puxam mais a canções que peçam lareira. Depois também acho que há um dramatismo inerente a algumas temáticas que puxam também pela balada mais despojada, lá está aquela questão da identidade que eu te falava há bocado, sendo um disco muito pessoal e que nesse sentido os arranjos e os instrumentos não subjugassem a identidade das canções. 
Há baladas de guitarra e voz, mas depois também há uma espécie de balada grande e eloquente, quase a forçar o foleiro, como vozes, vocoders e coisas do género, que tornam o tempo da canção numa espécie de tempo bizarro. Também fui à procura disso. Canções que eu queria que fossem absolutamente desesperadas, mesmo no sentido de serem canções que falam sobre a falta de esperança, eu não conseguiria fazê-lo num registo pop ou num registo rock mais alegre. Conseguiria num registo rock agressivo mas optei mais por fazer a balada soturna. Também tem baladas otimistas no disco, não estou refém de um só registo. Mas há muita balada.

Os singles “O Muro”, “Aos Pós” e “A Contenção” são os únicos com direito a vídeo e seguem o mesmo conceito, todos eles gravados nas ruas centrais e mais movimentadas de Lisboa, apesar de serem músicas bastante diferentes. Como surgiu esta ideia?


SU – A ideia foi mesmo passar por todas as canções do disco. Elas não estão a sair pela ordem das faixas mas há um vídeo contínuo, com princípio, meio e fim, uma espécie de passeio por Lisboa. Os vídeos foram feitos em dois dias, mas eu estou com a mesma roupa para não haver erros de gravação. No início pensou-se em fazer um plano de sequência, mesmo com o lado contínuo absolutamente assumido, mas por outro lado também acho que isso ia levar para uma espécie de truque e para um lado artificioso que eu não queria que estivesse associado. Isto não tinha de ser um show de mestria de quem realizou, fazer a coisa de uma vez só. Não se fez este plano de sequência mas fez-se uma sequência quase real, com muito poucas coisas que foram repetidas ou refeitas. É uma viagem por Lisboa que faz sentido, porque apesar de o disco não ter sido todo gravado em Lisboa, foi quase todo escrito em Lisboa, eu escrevo muito a passear pelas ruas e vivo ali perto. 


Neste disco, apesar de contares com o contributo de outras vozes em temas como “Aos Pós”, “Cedo” (participação de Monday) e “A Contenção”, não há nenhuma colaboração assumida como em trabalhos anteriores. Com que artista, vivo ou morto, gostarias de partilhar o microfone?

SU – Tenho tido a felicidade de colaborar com muita gente que admiro e de me ter tornado amigo dessas pessoas. Felizmente sou uma pessoa muito resolvida nesse aspeto. Claro que se me perguntares se eu gostava de participar com monstros sagrados, sou um fanzaço do [Bob] Dylan. A verdade é que eu não sei se aguentava um dueto com Dylan porque a minha postura em palco seria de fanboy, incapaz de articular uma palavra, por isso não sei se seria a melhor opção. Por afinidades absolutamente musicais mas até espirituais, eu acho que se pudesse fazer um dueto com o Johnny Cash seria muito feliz, morreria muito feliz. Eu já vou morrer muito feliz só pelo facto de já ter privado com a música dele.

Sentes que este ano tiveste oportunidade de ouvir mais música? Houve algum disco que tenha marcado particularmente, além de Canções do Pós-Guerra? E livros?


SU – Na altura em que estou a escrever canções eu tento ouvir muito pouca música. Durante a quarentena não estive propriamente deprimido mas como tinha um disco para sair, música era um tema de algum sufoco. Não foi um ano em que ouvi particularmente muitas coisas novas, confesso. Até me refugiei mais em discos que me soassem a discos feitos numa sala, de explorar quase o cabin fever e perceber que houve gente que sobreviveu a estarem no mesmo sítio durante muito tempo. Ouvi coisas mais antigas e despojadas. Não andei muito no périplo das novidades, embora houve coisas que entretanto apareceram e eu gostei bastante. 
Li bastante e ando um bocado fascinado com um jornalista e escritor americano, Robert Caro. Escreve biografias de gente poderosas nos Estados Unidos, coisas absolutamente deliciosas, apesar de serem densas. Estou a gostar muito da abordagem, uma espécie de sociologia intemporal sobre questões que tendem à volta do poder, da busca e do uso do poder. Apesar de se centrar em pessoas muito específicas, há uma espécie de lição moral e universal subjacente à história do mundo vista pelos olhos de quem tem e exerceu poder, de quem foi cego ou foi altruísta em relação à maneira como usou o seu poder. Estou muito fascinado com a escrita desse senhor que já tem 80 e muitos anos e continua muito lúcido a escrever os seus livros. 

Como é que te ocupaste na quarentena? Dirias que o confinamento foi produtivo?


SU – Foi muito pouco produtivo em termos daquilo que eu poderia fazer para a minha profissão. Escrevi muito pouco, compus muito pouco ou nada. Por achar que se estivesse a escrever ou compor, estava a trair canções que estavam encurraladas, não tinham por onde sair e eu não lhes tinha dado o devido destaque. Não queria trair as canções que ficaram por mostrar em abril e que só vão ser mostradas agora. Por outro lado, isto não foi especialmente lisonjeiro para a minha fisionomia, comi e cozinhei muito. Cozinhar era o meu grande prazer, fazia ementas e planeava muito aquilo que ia cozinhar, até porque tinha de fazer compras online durante algum tempo e as compras só vinham passado uma ou duas semanas. Não foi a coisa mais saudável mas foi uma maneira da minha mente ficar saudável durante estes tempos. 

Do que mais sentes falta dos tempos em que editavas e fazias parte da FlorCaveira?


SU – Eu continuo a fazer parte da FlorCaveira, este disco vai ter também o seu selo. Uma das coisas que eu tenho saudades é ter acesso a palcos pequenos, isto é mesmo verdade. É uma coisa estranha para se dizer e que não eu diria nos tempos da FlorCaveira, em que às vezes sonhava pisar os palcos grandes que agora felizmente consigo ocupar. Por acaso nem era a pessoa mais ambiciosa e falava disso com algum gozo infantil.
Há sítios mais pequenos que agora me estão vedados por uma questão de sei lá, se eu negociar com um sítio pequeno depois não consigo negociar com um sítio grande. Coisas desse género. Como se tornou absolutamente a minha profissão, eu tenho de dar sempre primazia aos sítios que me são rentáveis, não estou a falar só em termos monetários, embora isso também seja muito importante, mas também em termos de carreira. Se eu puder dar um passo em frente que seja um passo grande, vou tomá-lo e não vou prejudicá-lo com retrocessos. Então tenho saudades às vezes de sítios mais espontâneos e recônditos que hoje em dia nos estão um bocado vedados. Eu acho que não estarão vedados para sempre porque imagino que se continuar numa espécie de progressão em termos de carreira, posso conseguir estar num patamar de estabilidade que me vá permitir depois fazer os precursos que bem me apetecer. Ainda não tenho esse à vontade com aquilo que posso fazer, não controlo completamente este jogo e então tenho mesmo muitas saudades de sítios, sei lá, mais sujos e inaudíveis, com público hostil. 

Tens algum exemplo assim de um sítio desses? Agora em Lisboa cada vez vão havendo menos sítios assim.


SU – Sim, havia um sítio em Alfama, que por acaso não sei se ainda existe, que era o Arcaz Velho. Lembro-me de uma noite em que na altura vivia em Évora e vim para Lisboa tocar. Foi um concerto em que estavam uma meia dúzia de pessoas a assistir, mas no palco a cantar, uma coisa improvisada e sem preparação alguma, estava a malta toda da FlorCaveira, o B Fachada, o Diego Armés, o Jorge Cruz, malta dos Pontos Negros. Gente que até teve algum sucesso discográfico e se tornou emblemática para uma geração de músicos portugueses estavam ali num sítio esconso e a tocar para meia dúzia de pessoas. É uma noite que eu tenho como memorável, apesar de ser mais memorável para quem estava a tocar do que para as seis pessoas que estavam a assistir.

No início mês de outubro, o artista apresentou Canções do
Pós-Guerra
no Teatro Tivoli, BBVA, Lisboa, e na Casa da Música no Porto. No
próximo dia 24 é a vez do Teatro Diogo Bernardes, em Ponte Lima. O disco pode ser escutado na íntegra em baixo.

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