Babe, Terror
Horizogon

| Dezembro 23, 2020 7:27 pm

Review_Babe Terror_Horizogon


Horizogon | edição de autor | setembro de 2020
9.0/10

Considerado pelo jornal inglês The Guardian como o Global Album Of The Month do mês de setembro, Horizogon apresenta-se ao mundo como o décimo primeiro registo de Claudio Szynkier. Este artista, oriundo de São Paulo, dá forma ao projeto de eletrónica experimental e hauntológica Babe, Terror

Com uma carreira iniciada em 2008, Babe, Terror lançou o seu disco de estreia no ano seguinte – Weekend – trabalho que é descrito nas tags de bandcamp como “Wrong Dance Music”. Por esta altura, o método de composição de Babe, Terror baseava-se em criar com a sua voz refrões melódicos e a partir daí modelar e gerar repetições numa toada distorcida, de forma a tornar irreconhecível a melodia original. Com o avançar dos anos, o artista foi ampliando os seus métodos de criação e começou a ensaiar com linhas mais complexas, que surgiram de descobertas e experiências com a decomposição de formas originais – Szynkier passou a compor com outros elementos sonoros além da voz, recorrendo ao piano e a técnicas de sampling de diferentes fontes. 

O registo seguinte de Babe, Terror, intitulado Knights, saiu em 2012 com o selo da Phantasy – editora fundada por Erol Alkan que tem no seu catálogo edições de Daniel Avery, Connan Mockasin – e invocou sonoridades características do clubbing, tal como o IDM, o ambient techno e a house mais lo-fi. O ano de 2013 trouxe College Clash, um dos registos menos conseguidos do artista onde sonorizou uma homenagem ao basquetebol universitário e a todo um conjunto de atividade de caráter estudantil numa versão bem sinistra. Ancient M’ocean veio consolidar a aposta nas texturas mais dançáveis e surreais por parte de Babe, Terror, aproximando-se dos territórios de GAS e Boards of Canada. Editado em 2017 novamente com o selo da Phantasy, este disco levou aproximadamente quatro anos a ser composto, fazendo-se acompanhar por uma banda desenhada conceptualizada pelo próprio e realizada por Michael Crook, a qual tão bem retrata a submersão e o sentimento cinemático por detrás do disco. 

Aindo no ano de 2017 surgiu talvez a oportunidade mais inesperada para o artista. A pedido dos Ride, uma das bandas mais icónicas do shoegaze, Babe, Terror reimaginou o tema “Home is a Feeling”, retirado de Weather Diaries (2017). O resultado foi “A Creamy Crambled Suite For a Ride”, peça de 25 minutos que pode ser encontrada na versão japonesa do disco e também no álbum de remisturas Waking Up In Another Town (2018), na companhia de nomes como Mogwai, Jefre Cantu-Ledesma e Oren Ambarchi. Com o selo da editora de Los Angeles Glue Moon, o ano de 2018 trouxe consigo Fadechase Marathon, disco que foi eleito um dos melhores registos eletrónicos para o Bandcamp nesse mesmo ano e que apresenta uma atmosfera campestre e noturna, mais acolhedora para o ouvinte que em registos anteriores.

Falta de ambição é algo que não podemos apontar à carreira de Babe, Terror, e Horizogon é a prova viva disso. No ano de 2019, Claudio Szynkier dedicou-se ainda mais à experimentação, aliando os habituais elementos eletrónicos a instrumentos normalmente associados ao jazz e a arranjos orquestrais desenhados pelo próprio, os quais conferem um cariz cinemático às suas composições. Com essa experimentação na mente, o produtor vagueou pelas partes mais deterioradas, vivas e brilhantes de São Paulo ao amanhecer e daí resultou o trabalho mais ambicioso que Babe, Terror já produziu até à data, segundo o próprio artista e o autor desta crítica. Inicialmente composto com o objetivo de sonorizar uma cidade de São Paulo a viver um apocalipse calmo e utópico, uma forma catártica de Szynkier “sobreviver” ao apocalipse interno que estava a atravessar, Horizogon revelou-se como a materialização de um sonho bem estranho. Apesar de ter sido elaborado inteiramente em 2019, este disco é dotado de um carater profético e premonitório, feito para se ouvir num ano pandémico como este, em cidades completamente paralisadas e desertas, repletas de harmonias sublimes e invisíveis, algo que julgávamos ser impossível. Essa qualidade longínqua e eremítica de Horizogon muito se deve a uma antiga doença auto-imune de Szynkier, que afeta a sua audição e o obrigou a estar confinado no seu apartamento, realidade que agora nos é bastante familiar. Este impedimento clínico leva a que a produção e a composição por parte de Babe, Terror seja refém dos momentos em que a sua saúde se apresenta em melhores condições, representando uma total incógnita no que diz respeito a registos futuros.

Horizogon é constituído por seis longas faixas que se estendem para lá dos oito minutos de duração e vagueiam pela dark ambient e drone music, ornamentados de elementos do free jazz. “Scalar Velodromeda” é o tema que dá o pontapé de saída ao disco numa toada taciturna, comandada pelo piano e pelo coro de vozes distorcidas e assombrosas, ocasionalmente interpelados pelos ritmos errantes do contrabaixo. O segundo tema “Alcalis” vem dar seguimento à atmosfera lamentosa e críptica, mas de um modo mais sintético. O otimismo e a nostalgia marcam também presença em Horizogon, principalmente na terceira faixa “Horizogon Squadra”, onde reina o sentimento cinemático e jazzístico protagonizado pela combinação suave do piano, contrabaixo e saxofone. “Estuário Transurânia” apresenta-se como a melhor faixa do registo, com alguns laivos da eletrónica progressiva de Oneohtrix Point Never a pontilharem as camadas sintéticas. A obra de William Basinski é uma clara influência nos registos de Babe, Terror, e é na faixa “Salina Lúmen” que essa influência desorientadora da tape music é bem notória. Percorrendo a mesma onda distópica, “Horizogon Catalase” encerra o disco com uma mensagem confiante e esperançosa.

Aliado à vertente sonora, Horizogon assume-se também como um projeto multimédia. Lançado a 4 de dezembro, o filme Os Pólos (“The Poles”) foi realizado pelo próprio produtor e por Cauê Dias Baptista, retratando o estado de solidão em que a cidade de São Paulo se encontrava nos primeiros dias da pandemia. As seis músicas que fazem parte de Horizogon ganham aqui uma nova roupagem visual imersiva, intensificando a sua matriz cinemática. 

Além de refletir intensivamente sobre a situação sombria que estamos a viver, Horizogon é também um trabalho que se alimenta e inspira na situação de desespero e a ansiedade provocada pelo atual regime político autoritário que vigora no Brazil. Pelas palavras do artista, este disco “sintetiza tudo o que somos e o que passamos agora como um coletivo, como uma cultura de nação mestiça. É, portanto, um trabalho muito forte e dramático para mim, pessoalmente. É um registro de dor, revolução e reinvenção do Brasil pela arte. Ou seja, tudo o que sentimos e precisamos agora”.

Horizogon foi o disco que todos nós mais escutámos este ano, apesar de não o sabermos identificar. Ouvimo-lo no dia-a-dia, quando estamos perante a ameaça de um novo vírus que veio rasgar a normalidade a que estávamos habituados, que veio questionar a nossa saúde mental e o bom senso das populações e governantes, reformulando em grande parte o nosso modo de sociabilizar e sentir. 

Editado a 15 de setembro em nome próprio apenas em formato digital, Horizogon terá direito no futuro a uma edição física com o selo da Glue Moon. Podem escutá-lo em baixo.

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