Carne Doce em entrevista: “Não sabemos bem definir o nosso estilo e não nos preocupamos muito com isso”

Carne Doce em entrevista: “Não sabemos bem definir o nosso estilo e não nos preocupamos muito com isso”

| Janeiro 27, 2021 5:31 pm

Carne Doce em entrevista: “Não sabemos bem definir o nosso estilo e não nos preocupamos muito com isso”

| Janeiro 27, 2021 5:31 pm

Aberto o portal para o Interior, os Carne Doce lançam agora uma remistura dub para o single “A Caçada”, da autoria do músico e produtor americano Victor Rice, já disponível no Youtube. Ele que já trabalhou com Chris Murray, The Slackers, Mallu Magalhães e Marcelo Camelo, junta-se agora ao grupo de goianos para uma faixa com lançamento antecipado em Portugal.
Foi em 2013 que nasceram os Carne Doce, fruto do amor entre Salma Jô e Macloys Aquino. Diretamente de Goiânia, capital do estado de Goiás no Brasil, a estreia fez-se com o EP Dos Namorados no mesmo ano. Anos depois e com mais alguns elementos na banda, a banda elevou Princesa (2016) e cantou a sensualidade em Tônus (2018). Mais recentemente, levaram-nos ao Interior de um mundo agridoce e visceral, que foram desvendando single a single no decorrer de 2020.
Salma canta a poesia da vida, evocando um ritual que explora a dor, o feminino e as forças que controlam e condicionam – muitas vezes injustamente, como deixa claro nas suas letras – o dia-a-dia do povo. Assente num suave mas perspicaz papo reto, como se diria no país do Cristo Redentor, a essência da banda não assenta apenas no indie-rock.
A paisagem sónica pinta-se em cores quentes, entre paletas tão variadas como a do samba, reggae, dub ou trap. Numa atmosfera sempre tingida pelo brilho do sol que tanto abraça como ofusca, ouve-se o soar das guitarras de Aquino. Entre os sintetizadores de João Victor Santana, o baixo de Aderson Maia, a banda acolheu também, em 2019, Frederico Valle na bateria.
Em conversa com a Threshold Magazine, os Carne Doce confessaram o carinho que recebem do público português e como tem sido a viagem entre os recantos da música até agora, entre muitas outras curiosidades.
Os Carne Doce entram em 2021 com uma novidade. “A Caçada”, penúltima faixa do álbum, recebe agora uma reinterpretação de Victor Rice. Como surgiu a colaboração e como foi trabalhar com o produtor norte-americano?
Aderson Maia: “A Caçada” é uma música que nasceu com bateria e baixo. Ela tem essa levada Reggae, que é uma grande influência minha e do Fred Valle (baterista). Por essa característica, sempre pensamos que uma versão Dub poderia ser muito interessante. O Victor Rice é uma grande referência nesse estilo de remistura, achamos que a concepção dele seria perfeita. Gostamos demais de trabalhar com ele e ficamos muito felizes com o resultado. Ele nos mandou cinco versões, gostamos de todas, foi difícil escolher uma só para masterizar.
Que dimensão acrescenta o registo dub do artista a esta música?
Aderson Maia: Acredito que abre as portas para outra linguagem musical e explora um novo tipo de sonoridade. A interpretação do Victor Rice apresenta uma nova estética para a canção. O Dub possibilita essa experiência, uma releitura, uma nova roupagem, mais aberta e experimental por natureza.
Victor Rice
O remix sai primeiro em Portugal e só depois no Brasil. Têm-se sentido acarinhados pelo público português ao longo dos anos? Esta decisão parte de algum motivo em específico?
Salma Jô: Em 2019 fizemos nossa primeira turnê em Portugal em cinco cidades: Coimbra, Lisboa, Torres Vedras, Aveiro e Porto. Ficamos apaixonados, primeiro como turistas, é um país muito lindo, a gastronomia é maravilhosa, e a cultura nos desperta muita curiosidade porque aí tem muito das nossas raízes, além da presença de outras culturas e outros povos. Mas também fomos muito bem recebidos enquanto artistas, os shows foram muito bons, a troca com o público também, então ficamos com vontade de mantermos sempre essa conexão, de tentarmos voltar sempre que possível. Infelizmente a pandemia interrompeu uma parte desses planos. O lançamento prévio em Portugal é um sinal do nosso carinho e da nossa vontade de manter os laços.
Existe uma fusão dos universos português e brasileiro na vossa obra?
Salma Jô: Não reconheço o sinal dessa fusão específica. Sinto que com a globalização e com o aspecto rock/indie da nossa obra talvez nós refletimos até mais a cultura americana e britânica. Ainda temos pouco conhecimento da música portuguesa.
A capa do álbum é composta por uma fruta algo peculiar do centro-oeste brasileiro. Que relação estabelecem entre o pequi e a essência de “Interior”?
Salma Jô: O fato de ser um fruto típico do cerrado mas também sua fisiologia: tem uma castanha protegida por espinhos e coberta de uma carne saborosa e calórica. Essa simbologia combina com o Interior, uma música singela, de um grupo do interior do país, que carrega essa cultura, com letras que abordam feridas e temas dolorosos, mas que também aquecem e alimentam.
Existe alguma relação entre Interior e os lançamentos anteriores? Quais foram os resultados da metamorfose até aqui?
Salma Jô: Interior é um disco mais calmo, mais sereno que os anteriores. Nós estamos mais velhos, mais maduros e por isso mais serenos também. Mas ainda tem uma essência que permanece, que é justo sobre essa habilidade de tratar de temas dolorosos, íntimos, nessa mistura de indie e rock com MPB.
Carne Doce é conhecida enquanto banda de indie-rock, mas nos vossos temas reúnem inúmeras sonoridades. Como definem o vosso estilo? Como chegam a um registo tão singular?
Salma Jô: Indie é um rótulo amplo e talvez por isso nos sirva bem, embora ao mesmo tempo seja uma palavra que remeta a um público e a um mercado muito restrito aqui no Brasil, o qual na verdade gostaríamos de extrapolar. Realmente gostamos de explorar ritmos diferentes, e com o novo baterista isso ficou ainda mais forte e as possibilidades se ampliaram. Não sabemos bem definir nosso estilo e não nos preocupamos muito com isso. Pelo simples fato de sermos uma reunião de pessoas com referências diferentes, isso naturalmente se transmite para as músicas.
Foto: Macloys Aquino / Jaime Silveira

Que nomes da música portuguesa e brasileira moldaram a vossa paixão por este mundo?
Salma Jô: Da música portuguesa, Mac e eu somos especialmente admiradores das obras do JP Simões. O estilo dele me remete muito ao Chico Buarque que é uma referência essencial para nós. Penso que a MPB dos anos 60, 70, 80 é a nossa principal referência.
Interior traz consigo uma atmosfera quente, que nos transporta de imediato para o horizonte brasileiro. Contem-nos um pouco sobre o processo de criação deste lançamento.
Salma Jô: O disco foi criado durante 2019, acho que que ele ficou mais brasileiro por causa da presença do novo baterista (este é o primeiro disco do Fred Valle conosco). Mas nós também deixamos de ser mais rock para sermos mais MPB nesse disco.
Qual foi o peso da pandemia na produção deste álbum?
Salma Jô: A pandemia fez com que adiássemos e fragmentássemos a gravação do álbum. Nossos planos eram gravar o álbum todo em abril, mas devido à pandemia tivemos de gravá-lo aos poucos, inclusive algumas faixas foram totalmente gravadas em casas, com uso de samples, uma forma de suprir a falta de ensaios e as poucas horas que tivemos juntos no estúdio de gravação. Além disso, mudamos a estratégia e apresentamos vários singles antes do lançamento do álbum.
As vossas letras parecem concentrar em si uma certa nostalgia, que é depois embebida em melodias mais alegres. Se em “Temporal” se preserva a esperança, em “Saudade” canta-se a melancolia com alguma leveza. Quais são as vossas inspirações?
Salma Jô: Na verdade “Temporal” é mais sobre a arrogância humana, sobre a ideia de não importa o que acontecer, nós vamos nos adaptar e dar um jeito na natureza, com a nossa racionalidade. As minhas inspirações são bem diversas, de assistir ao mundo, as redes sociais, as discussões políticas atuais, além de coisas que leio, e além das nossas vivências pessoais também, o nosso lugar, as nossas limitações e preconceitos.
De 2014 até agora, o que mudou no vosso registo sonoro? De que forma mudaram enquanto banda e pessoa individual, com o tempo?
Salma Jô: Estamos mais serenos, mais suaves, minha voz é o instrumento que mais reflete isso, antes eu gritava mais, cantava em tons mais agudos e mais ardidos, agora canto mais suavemente, com preocupação em dar mais dinâmica, e minha voz está mais grave, era mais menina e envelheci. Não tenho mais a ansiedade de me provar, de cantar para convencer as pessoas, aquela necessidade de chutar portas, canto mais para tentar emocionar quem estiver disposto a se emocionar.
Há uma expressão que diz “se [na altura] soubesse o que sei hoje…”. Olhando para trás, mudariam alguma coisa? Gostavam de partilhar alguma aprendizagem com quem se inicia agora no mundo da música?
Salma Jô: Não sei, porque aprendemos muito errando. Se eu soubesse o que sei hoje talvez eu nem teria começado a cantar porque perceberia (com o que eu sei hoje) que eu era muito incompetente, teria vergonha, nem acreditaria na minha cara-de-pau, pensaria que teria que me preparar mais e então teria desistido, e na verdade foi importante começar mesmo sem estar pronta. Mas bem, acho que eu teria um olhar menos deslumbrado para os outros artistas, para a mídia, para São Paulo, me preocuparia menos com bobagens, focaria mais no trabalho, não perderia tanto tempo nas redes sociais. Para quem está começando, acho que meus conselhos são os mesmos que eu aprendi logo cedo: não espere e não confie que um selo ou produtor(a) ou qualquer terceiro vá fazer seu trabalho por você, organize-se e tenha parceiros, mas seja seu próprio empresário.
Para o futuro, que surpresas têm guardadas? Querem deixar alguma pista para os nossos leitores?
Salma Jô: Estamos compondo, não sei se teremos um álbum cheio, mas queremos lançar mais faixas este ano.
Podem ouvir o último disco dos Carne Doce aqui:
Entrevista por: Carina Fernandes

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