João Vairinhos em entrevista: “A vida já tem demasiadas dimensões rotineiras para que a música seja mais uma”

João Vairinhos em entrevista: “A vida já tem demasiadas dimensões rotineiras para que a música seja mais uma”

| Fevereiro 1, 2021 1:44 pm

João Vairinhos em entrevista: “A vida já tem demasiadas dimensões rotineiras para que a música seja mais uma”

| Fevereiro 1, 2021 1:44 pm
João Vairinhos em entrevista A vida já tem demasiadas dimensões rotineiras para que a música seja mais uma
© Pedro Roque


João Vairinhos foi um dos nomes nacionais que fez 2020 menos estático. Depois dos projetos que marcaram o seu passado como baterista (entre os quais se incluem Day Of The Dead, The Youths ou LÖBO), no início da nova década o músico tomas as lides da produção, ao explorar uma eletrónica nefasta e amplamente contagiante. Intitulado Vénia, o EP de estreia afirmou-se numa toada instrumental dinamizada pelas tendências sonoras de contemplação e os ambientes mais obscuros. Entre atmosferas psicologicamente densas que forjam todo um percurso autêntico, João Vairinhos equilibra ambientes inertes de ritmo a cenários energéticos e de profunda catarse, numa mestria singular que se quer ouvir em loop.

Surpreendidos com o resultado decidimos conhecer as raízes que desenharam um percurso tão díspar na carreira do músico de forma direta. Na entrevista que segue abaixo, entre uma série de temas levantados, pode conhecer-se como foi criada a motivação para a bateria, o ponto de ignição que levou João Vairinhos a afastar-se do meio, o renascimento como baterista, a ascensão em nome próprio como produtor e sentir-se ainda um pequeno suspense relativamente ao que está por vir.


Quando é que começaste a tua cena na música? Com isto refiro-me mesmo ao início de pegar nos primeiros instrumentos. 

João Vairinhos – Foi por volta dos 13/14 anos, quando comprei uma bateria. Tive a sorte dos meus pais terem sido bem enganados, pois compraram-me um instrumento relativamente caro antes de eu saber tocar alguma coisa. Foi daquelas coisas que tanto podia dar em paixão, como poderia ter acabado passado uma semana. O meu irmão também teve impacto porque ajudou a convencer os meus pais, não sei como. Ele tocava guitarra também, por isso devia achar boa ideia que o maninho mais novo também tocasse um instrumento. O meu percurso começou assim, de forma pouco séria, nada de obrigações, não tive aulas de música, foi assim quase como um hobby. Havia amigos meus que já tocavam outros instrumentos, alguns tocavam bateria, mas assim no mesmo registo que eu. Às vezes juntávamo-nos na minha garagem e incomodávamos os vizinhos com a chinfraria habitual e comum em prédios que têm garagens e miúdos que meteram na cabeça que querem aprender um instrumento. Havia um miúdo, o João, com quem eu lancei o EP The Citadel que era presença assídua e esse rapaz aos 13 anos já tocava guitarra de forma incrível. Ele vinha ter comigo para a garagem e ensinava-me noções de música e obrigava-me a tocar ritmos por cima de estruturas de guitarra mais complexas. E eu gostei daquilo, fez-me sentido, era adolescente numa cidade pequena e aproveitei o processo de aprendizagem para ficar horas a tocar bateria e a lidar com as coisas normais da adolescência. O “bichinho” foi crescendo, mas o processo começou a ficar mais sério quando eu vim estudar para Lisboa e comecei a tocar numa banda com uns amigos, os Day Of The Dead. Foi essa dinâmica dos ensaios regulares, e de falarmos em gravar uma demo, que fez com que eu começasse a levar as coisas mais a sério. Comecei a dar concertos, a tocar em com outras pessoas, uma realidade bem diferente de estar na garagem sozinho a tentar replicar os ritmos das minhas bandas preferidas a tocar no discman. 


Estavas a referir a tua primeira banda, os Day Of The Dead. Que idade tinhas quando isso aconteceu? 

João Vairinhos – 17. Foi a primeira banda com quem dei um concerto, com quem gravei um disco, com quem fiz uma tour foi assim uma coisa que começou como uma brincadeira de amigos, mas depois teve um impacto grande na minha vida. 

Em 2020 lançaste o teu primeiro EP a solo. O teu percurso antes de chegar aqui mudou um bocadinho. Tocaste com LÖBO, Ricardo Remédio, Wildnorthe e, mais recentemente, MURAIS. Podes falar um pouco desse percurso? 

João Vairinhos – Quando eu, o Ricardo Remédio e o Luís Pestana fundámos os LÖBO, eu ainda tocava nos Day Of The Dead portanto apesar de estar inserido num meio mais punk-hardcore na altura, sempre procurei adotar uma menta aberta no que diz respeito aos géneros musicais que ouvia, não só porque sempre gostei de ouvir música diferente, mas também tinha interesse em levar influências diferentes para a banda. Tendo em conta esse duplo objetivo, ao mesmo tempo que tinha os Day Of The Dead, fui tentando fazer outros projetos que fugissem um pouco da sonoridade dessa banda. Tinha os The Youths, mais punk, depois os LÖBO, instrumental e mais pesado. Quando os Day Of The Dead acabaram por volta de 2009, fiquei só com os LÖBO e houve uma determinada altura em que achei por bem fazer uma pausa porque estava a ficar saturado de ter bandas e de tudo o que isso implicava. Nesse momento parei e dediquei-me a outros projetos fora da música. Por mero acaso, fui convidado a tocar os concertos de reedição do Älma, por indisponibilidade do baterista de LÖBO na altura, aceitei e voltei a ter vontade de fazer música. Esses concertos fizeram-me perceber que a forma como eu estava a abordar a minha relação com a música é que me fez querer deixar de tocar. Antes de parar, sentia que só conseguia fazer música na sala de ensaios com outras pessoas e que precisava de diversificar as experiências, mas não estava a conseguir. Ou porque não tinha as ferramentas ou porque não conhecia pessoas de outros projetos diferentes com os quais pudesse colaborar. A vida já tem demasiadas dimensões rotineiras para que a música seja mais uma rotina e, olhando para trás, penso que o que me fez parar foi a evolução de algo que era suposto ser um processo criativo, e até um escape, para algo pouco desafiante. Para além de voltar a tocar com os LÖBO, comecei a tocar com o Ricardo Remédio, que foi um desafio enorme para mim, pois nunca tinha tocado com alguém só com máquinas e eletrónica, e isso exigiu uma logística e abordagens diferentes. Aceitei o convite dos Wildnorthe para ser baterista ao vivo, porque gosto da sonoridade e nunca tinha tocado num projeto semelhante. Aceitei o convite do Hélio para tocar com MURAIS porque, para além da história que tenho com ele (tivemos bandas há mais de 20 anos), obrigou-me, mais uma vez, a adaptação a outro género e a interiorizar alguns traços característicos da sua forma de tocar bateria, pois foi ele que gravou as músicas do disco. Entretanto também fiz sonoplastia para uma peça num processo de remusealização, participei com algumas remixes noutros projetos (Førest Fires e mais recentemente Lázaro) e também colaborei com baterias e elementos de percussão no disco novo do Bernardo Devlin, que foi uma experiência muito interessante e enriquecedora. No fundo, quanto mais eu sinta que estou a ser desafiado, ou porque tenho que me adaptar a novas linguagens musicais, ou porque vou experienciar contextos onde ainda não toquei, mais me interessa o projeto. Esse foi também o pressuposto para começar a fazer música sozinho. 

Que foi impulsionado pelo convite da Sofia Teixeira na integração de uma mixtape e que deu origem à tua estreia em nome próprio, com o tema “Eternos São os Corvos”. Qual era o objetivo dessa música que a Sofia te pediu para fazer? 

João Vairinhos – Foi no décimo aniversário do blog. Ela lançou uma mixtape no Bandcamp com várias contribuições em homenagem ao aniversário e para a qual contribuíram nomes como o Manuel Guimarães, o André Barros, Hugo Rancho e o Slowburner, que fizeram uma música exclusiva para a ocasião, sem qualquer limite criativo na composição. 


Antes desse tema a solo tens ainda a participação no EP The Citadel com Altura que referiste anteriormente. Como é que isso surgiu? 

João Vairinhos – Foi algo relativamente simples e informal. Conheço o João Brito, guitarrista de Altura e Sam Alone, há mais de 15 anos e numa das visitas à minha cidade natal, juntei-me com ele no EYEBALL STUDIOS do Carlos Rocha, um amigo nosso de longa data, onde gravámos dois temas. Foi assim uma colaboração relâmpago. O João mandou-me duas ideias à distância e gravei as baterias lá no estúdio. Levei algumas ideias, mas muitos ritmos foram experimentados e criados lá e ele depois concluiu as músicas sozinho. 

Então foi só depois de “Eternos São os Corvos” que decidiste que ias lançar-te em nome próprio? 

João Vairinhos – Sim. Assim que fiz essa música pensei: “gostava de pegar neste tipo de ambientes, conceito e tentar fazer um disco maior”. E isso demorou tempo, pois não estava habituado a fazer nada assim. A composição demorou cerca de um ano e meio, depois a mistura mais cinco – seis meses e depois a prensagem dos discos mais uns meses. O disco no seu todo, desde a composição até ao produto final em vinil, demorou cerca de dois anos e uns meses. É daquelas coisas que tu acabas e pensas “estou exausto, já não vou fazer isto outra vez”. Mas depois, passado um dia já estás a fazer coisas novas. 

Já estás a fazer coisas novas? 

João Vairinhos – Sim (risos). Não dá para parar. 

E depois lançaste o Vénia, que foi antecipado pelo tema “Vala Comum” cujo vídeo tivemos oportunidade de estrear. Neste videoclip trabalhaste com a Mariana Vilhena. Como é que esta colaboração aconteceu? 

João Vairinhos – O Ricardo Remédio mostrou-me um sample de um vídeo que ele tinha da Mariana para outra coisa qualquer e eu vi o estilo a preto e branco com sentido rítmico, uma atmosfera muito crua e pensei automaticamente na “Vala Comum”. Pensei que ela era a pessoa ideal para transpor a energia da música para o vídeo. Eu nem tinha pensado em fazer videoclip, mas quando vi aquelas imagens, pensei “bem isto num vídeo tinha um impacto muito maior”, especialmente nesta música que tem um nome e uma carga tão pesada, tendo em conta o contexto em que o disco saiu. A Mariana aceitou o convite e acertou na narrativa logo à primeira, quase nem tive de pedir alterações. Fiquei bastante agradado e recomendo que visitem e vão conhecer o trabalho da Mariana


Fizeste mais música para além das que integram o alinhamento do EP? Como é que surgiu a composição, seleção e essa parte? 

João Vairinhos – Tinha quatro músicas inicialmente, mas achei que uma não se enquadrava naquilo que pretendia para o disco. Sinto uma insatisfação permanente com aquilo que estou a fazer, por isso, durante o período de composição oiço as músicas compulsivamente à procura dos defeitos, da ordem correta, etc e, sempre que aquela música chegava, não me fazia sentido estar ali. Tenciono aproveitar partes dela para coisas futuras, mas no Vénia não parecia moldar-se no ambiente, não tinha aquela intensidade que ele aporta. O maior desafio neste disco foi criar um fio condutor, uma narrativa coerente e articulada entre o título do disco e dos temas, a sonoridade das músicas – queria que tivessem cargas emotivas diferentes, altos e baixos – e o artwork do disco. No que diz respeito à imagem e fotos promocionais, tive o privilégio de poder utilizar fotografias do Pedro Roque e de ter a ajuda da Sara Inglês nas artes finais e o resultado ficou muito próximo daquilo que eu imaginei. 

Porque é que decidiste intitular este projeto de João Vairinhos e não outro nome além do teu próprio? 

João Vairinhos – Quando comecei a fazer a música para o blog BranMorrighan, tinha pensado em usar um nome diferente, mas depois pensei que isso iria limitar um pouco aquilo que eu ia fazer no futuro. Imagina que eu lançava este disco com o nome X. No próximo trabalho, provavelmente ia pensar que teria de fazer algo no seguimento dessa abordagem. Se a ideia de começar a fazer música sozinho foi precisamente a de me libertar de contextos específicos, de sentir liberdade criativa total, fez mais sentido usar o meu nome. Não é uma questão de ego, porque eu adoro colaborar nas músicas de outros e duas das três músicas do EP têm elementos gravados por outras pessoas.  Eu sinto é que, com o meu nome, estou mais livre para fazer o que eu quiser e, o que dá o fio condutor às músicas que são disponibilizadas, sou eu. Isso não invalida que, futuramente, não faça outro tipo de projetos com nomes diferentes, mais ligados a determinadas sonoridades específicas. 

Quais são as tuas principais referências musicais em nome próprio? 

João Vairinhos – Se há uns anos era mais simples dizer-te quais eram as referências em cada projeto, hoje já não acho assim tão simples. Considero que, inevitavelmente, as referências punk-hardcore que tenho do passado vão estar sempre presente na forma como abordo a música. Passei muitos anos a tocar música no contexto punk-hardcore e esse ainda é um contexto que me interessa, portanto o som cru e “áspero” é uma dimensão estética que faz parte das minhas referências e isso nota-se. Ao longo do tempo, fui ganhando o gosto por sonoridades mais industriais, darkwave e eletrónicas, e essa mistura de influências tem um impacto óbvio nas músicas que faço hoje. Falando de nomes em concreto e, tendo em conta o Vénia, a abordagem do Trent Reznor dos Nine Inch Nails é algo que considero interessante, mesmo sem apreciar tudo aquilo que ele produz, porque mostrou-me que um disco pode ter músicas com ambientes diversos sem parecer uma compilação de temas soltos.  Lembro-me que, durante a composição do disco, ouvi muito John Carpenter, Jóhann Jóhannsson – o compositor que fez a banda sonora do filme Mandy -, os Belief Defect e os Pact Infernal, que misturam sons industriais com ritmos tribais. Olhando para trás consigo perceber que as referências musicais do passado fizeram uma espécie de simbiose com o que ouvia na altura em que estava a compor o Vénia. Os Cult of Luna também foram uma influência para mim há uns anos e, apesar de já não ouvir com frequência, refiro-a sempre que me fazem esta pergunta, pois ajudou-me a mudar a forma como via a bateria numa música “pesada”. Há 15 anos foi importante para mim ouvir um baterista a posicionar a bateria como se fosse mais uma camada sonora, sem dar prioridade à complexidade ou ao número de pancadas por minuto. 


Qual era para ti um nome de sonho para uma colaboração? 

João Vairinhos – Os nomes que digo assim quase sem pensar muito são o Michael Gira, a Chelsea Wolfe e o John Carpenter. Claro que valorizo a música que eles fazem, mas mais do que isso, estas personagens intrigam-me e despertam-me curiosidade sobre o seu processo criativo e forma como transformam as suas ideias em músicas. Há um senhor que produz música ambiente com um projeto chamado Loscil e essa também era uma colaboração que não me importava nada de fazer. Em Portugal, por exemplo gostava de tentar remixar ou fazer reinterpretações de músicas que não tem nada a ver com aquilo que eu produzo. Estou a tentar ir por esse tipo de caminho, porque acho que é um exercício interessante. Também gostava de tentar experiências relacionadas com peças sonoras para filme/teatro. 

Já tens alguma coisa planeada para o futuro? 

João Vairinhos – Com datas certas, não. Como referi há pouco, tenho estado a compor mais músicas e a fazer mais baterias para outros discos e, para já, não estou preocupado com cronogramas para lançamentos futuros. No passado ano de 2020, tendo em conta as circunstâncias, foi dos anos mais produtivos para mim na música, em termos criativos. Com o projeto a solo, pode ser que dê alguns concertos em 2021. 
Obrigada João. Não sei se tens mais algo a acrescentar?

João Vairinhos – Gostava de deixar uma palavra de agradecimento pela entrevista e não posso deixar de referir a importância do vosso trabalho no apoio à divulgação de artistas independentes nacionais e internacionais. Já conheci muito boa música a partir de notícias da Threshold, por isso.. continuem!


Entrevista por: Sónia Felizardo

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