Mabe Fratti
Será que ahora podremos entendernos

| Agosto 4, 2021 7:09 pm
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Será que ahora podremos entendernos | Unheard Of Hope | junho de 2021

8.3/10

Chegada a ameaça do lockdown na primavera de 2020, Mabe Fratti viu-se instalada no cluster artístico de La Orduña, numa antiga fábrica abandonada a duas horas da Cidade do México. Nascida na Guatemala e parte da vibrante cena experimental da capital azteca, Fratti nem teria planeado criar o sucessor de Pies Sobre La Tierra, o seu primeiro disco e uma espécie de ensaio musicado de auto-análise lançado em 2019, mas a inviabilidade de sair do complexo levou à concepção de Será que ahora podremos entendernos.

Apenas pelo título, percebemos que este é um disco em que, talvez no tempo certo, a compositora se revela preocupada com a comunicação, e embora não fique claro quem são emissor e receptor deste diálogo conturbado, ficamos com a ideia de que esta será uma batalha interior de Fratti: em “Cuerpo De Água” pergunta-nos, em spoken word, “como sabes si lo que sientes es lo que dices?”, que funcionaria quase como possível subtítulo do disco. Esta sua obsessão com o diálogo não é novidade: lançou um EP em 2018 chamado Aprendiendo A Hablar, e Será Que Ahora é a sua reflexão actual sobre o tema, que termina numa descida pelo “rabbit hole” da sua fixação inicial. Talvez seja esse desejo de expressão que leva a que Fratti use um violoncelo como instrumento-base de todas as suas composições — um dos instrumentos que melhor replica a vibração e a materialidade de uma voz humana.

De forma inteligente, sem dúvida propositada, e possivelmente até provocadora, a escrita de Fratti é francamente económica. Em “Mil Formas De Decirlo”, repete-se a palavra “balbuceo”. O balbuciar, essa forma primitiva de comunicação invocada por Fratti, parece revelar o espírito que tenta capturar também na sua música, baseada numa aproximação fundamental e metódica à composição, geralmente à volta de loops simples (ou balbuceios?) de violoncelo que vão crescendo à medida que são acompanhados por novas camadas de percussão e sintetizador. Desde início, a impressão que fica é a de que toda a soma de sons é reduzida ao absolutamente primordial e essencial, algo que traz à memória as canções cruas e despidas de um Arthur Russell, um nome difícil de não associar a outra songwriter cujo instrumento é o cello. “Nadie Sabe” abre o disco com uma linha de violoncelo que lembra quase uma dança, numa atmosfera bucólica criada pelas gravações de aves capturadas por Fratti nas imediações de La Orduña, até serem acompanhados por um bando de sintetizadores luminosos.

Mas no grande momento pop do álbum, movido a synths e drum machines, “En Médio” evoca o shoegaze etéreo de uns Slowdive, em que a batida ressonante é acompanhada por um violoncelo que quase podemos imaginar a ser utilizado como a guitarra de Neil Halstead. Por alguns momentos, o minimalismo de sala vazia e o ambiente de intimidade parece desaparecer, e é subitamente substituído por uma ascensão cósmica de Fratti e seu instrumento. A forma natural com que a dimensão e o próprio espaço das canções se transforma é uma das grandes conquistas do disco — num minuto, Fratti canta-nos ao ouvido, e no seguinte canta-nos desde o espaço.

“Início Vinculo Final” irrompe num western de dissonância e é a peça central que divide Será Que Ahora nas suas duas metades — a primeira mais assumidamente vocal e estruturada; a segunda com maior foco no dissecar das potencialidades do violoncelo, mais rítmica e dispersa. Alguns dos momentos mais comoventes de Será Que Ahora surgem nessa segunda metade, quando a voz maioritariamente em falsetto de Fratti se conjuga com os loops exploratórios das cordas e juntos criam uma atmosfera hipnótica, quase meditativa, como em “Aire”. A maior parte do disco surgiu a partir de momentos de improvisação, uns deles criados em conjunto com músicos residentes em La Orduña e outros à distância, como com a compositora texana Claire Rousay, que empresta sons de ambiente e de objectos do dia-a-dia a “Hacia El Vacío”. É quase difícil de imaginar que um conjunto de canções aparentemente tão cuidado tenha sido criado “ao acaso”: não existem notas a mais ou fora do lugar, e todas elas acrescentam algo de importante. Mas talvez seja este “entendimento” (passe a referência ao título da obra) entre o lado mais orgânico e espontâneo da improvisação com a delicadeza da produção que torna tão fluido o andamento do disco, tanto nos momentos mais directos como nos mais experimentais.

Acaba por ser curioso que um disco tão obstinado acerca da comunicação ou de falta dela esteja tão alicerçado na colaboração e no contributo de outros artistas, numa sinergia peculiar que se terá formado em La Orduña. É comovente perceber que o principal trunfo de um dos grandes discos gravados e lançados em tempo de isolamento é a comunhão.

Texto redigido por Luís Sobrado

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