Any Shape You Take | Saddle Creek | agosto de 2021
Any Shape You Take é um daqueles discos dos quais só seria necessário retirar duas ou três canções ao acaso para perceber que quem as escreveu entra numa lista restrita de songwriters: os que fazem desse processo de escrever música (tão extenuante, obsessivo ou doentio até para alguns dos melhores nessa arte) parecer uma coisa completamente natural, fácil, inata. Enquanto que uns fazem uso de uma alquimia complexa e hermética para criar (vem à cabeça um Kevin Shields, por exemplo), outros parecem ser capazes de esconjurar canções a partir do nada, dando a impressão de que é possível que lhes surja uma melodia memorável ao pequeno-almoço, no metro, no duche, neste preciso segundo. Millenials como Alex G ou Frankie Cosmos são dois dos que têm esse tipo de talento, tal como o tinham “pais” do do-it-yourself na linha de Robert Pollard (Guided By Voices) ou Calvin Johnson (Beat Happening). Indigo De Souza é um desses prodígios.
Esse talento tão genuíno e despojado reflecte-se também no tom confessional e espontâneo das canções. I Love My Mom, lançado em 2018 e reeditado este ano pela mesma Saddle Creek que edita este segundo álbum, era o primeiro documento de uma mente agitada, incapaz de racionalizar e que preferia canalizar toda essa emoção à flôr da pele numa pop vulnerável mas aguerrida, disfórica e eufórica, desconfortável mas enternecedora. A solidão, a família, o amor e a alienação são temas recorrentes, muitas vezes ilustrados com imagens vívidas de violência ou analogias sexuais e mitológicas, sempre deixando a impressão de que com Indigo não fica muito por dizer.
Ao longo destas dez novas canções, confissões de coração aberto repletas de pensamentos sinistros, auto-destrutivos e obsessivos conseguem quase passar despercebidas. Tamanha intensidade é camuflada maioritariamente por um slacker rock quase veraneante, cheio de refrões enérgicos, a fazer lembrar alguns dos nomes da K Records dos 90s. Os riffs viciantes e as linhas de guitarra em contra-corrente seguem-se a grande ritmo, mas a estrutura das canções é simples e a sensação geral é de que esta é música que não se leva demasiado a sério. Esse ambiente despretensioso funciona como pano de fundo para a franqueza das canções, mas também como veículo para maximizar a carga emocional dos temas de maior energia catártica: “Real Pain” termina num crescendo de noise de guitarra aos quais se juntam gritos, guinchos e gemidos, incluídos no disco após contribuição online dos fãs. Que uma canção sobre o processamento da dor culmine numa orquestra de gritos e em “I wanna kick, wanna scream” parece revelar justamente o tipo de pensamento natural e instintivo que guia o songwriting de Indigo.
A escrita é económica, a linguagem mínima e as frases são dispersas e quase diarísticas, mas Indigo demonstra uma capacidade rara de subverter aquilo que poderiam ser banalidades e lugares-comuns em palavras-de-ordem de uma sinceridade tal que se tornam autênticos mantras de real significado e poder transformador. Essa subversão, genuína e não intencional, acontece não raras vezes ao longo de Any Shape You Take, quando Indigo nos retira o tapete de debaixo dos pés: na viciante “Die/Cry”, o verso “I’d rather die than see you cry” transforma-se no mais único “I’d rather die before you die” e os “I love you” da última faixa do disco são seguidos imediatamente por “kill me in the morning”.
Essa mesma “Kill Me”, simultaneamente primeiro single e closer do disco, termina com “fuck me ‘til my brains start dripping / down to the second floor in our home / kill me, and clean up, and if they ask you / where I am, we’ll tell them that I was all done / tell them that I wasn’t having much fun”. Esta estrofe final desenha a imagem definitiva de um disco que é um exercício musicado de expulsão de demónios, cheio do característico humor sórdido de Indigo e da sua voz de uma confiança e urgência comoventes. Para além do faro pop e sentido de melodia irrepreensíveis dos temas, outro dos grandes destaques de Any Shape You Take é a flexibilidade da voz desta natural da Carolina do Norte, talvez melhor representada em “Bad Dream”. O falsetto monumental com ecos de Liz Fraser no verso “I’m having a hard time sleeping” é o ponto do disco em que até o ouvinte menos atento vai parar e perguntar “o que acabou de acontecer?”. A esse momento dramático, Indigo junta ainda vários versos repetidos no modo inexpressivo de uma Courtney Barnett ou por tremolos no final das palavras ao estilo de Angel Olsen, exibindo as diversas faces da sua voz pujante.
Essa imprevisibilidade e agilidade são transversais à música da cantautora e a este novo álbum. Desarma-nos com o que diz, com a espécie de compilação de folhas de diário rasgadas que é este conjunto de canções; e com a forma de o dizer, na sua voz ao mesmo tempo ferida mas resoluta. Também nos surpreende musicalmente, quando viaja graciosamente por vários estilos e inicia o disco com o auto-tune de “17” ou nos assalta com “Hold U”, um perfeito hit do TikTok à espera de acontecer e um irresistível hino à amizade, sendo de longe o momento mais gingão do disco.
Talvez o verso mais comovente se encontre em “Late Night Crawler”: “Maybe we’re bigger than staying in the very same place” parece ser uma conclusão mobilizadora para um disco tão cheio de tristeza, desespero e dor. Essa visão transformadora do sofrimento torna um disco tão pessoal e íntimo numa obra também universal: em Any Shape You Take, Indigo faz-nos querer mudar com ela.Texto redigido por Luís Sobrado