Os horizontes de Bristol gritam por um novo Jazz

Os horizontes de Bristol gritam por um novo Jazz

| Setembro 22, 2021 1:43 am

Os horizontes de Bristol gritam por um novo Jazz

| Setembro 22, 2021 1:43 am

A explosão da cena musical jazzística no Reino Unido começou a despertar o interesse e a atenção de um público sedento de festa, ritmos frenéticos elevados pela transcendência e o revivalismo de um som único assente na filosofia do-it-yourself e que representa toda uma comunidade multicultural emergente de jovens músicos.

A libertação e a constante desconstrução daquilo que é o jazz contemporâneo começou neste recente movimento onde convergem tanto a soul, jazz-funk, reggae, afrobeat e a eletrónica. Nos últimos anos apareceram figuras revolucionárias tais como Nubya Garcia e Shabaka Hutchings, impulsionados pelos seus inúmeros side-projects (Nérija, The Comet Is Coming, Sons of Kemet), ainda os bateristas Moses Boyd e Yussef Dayes também contribuíram bastante para esta visibilidade, além dos colectivos KOKOROKO e Ezra Collective, imbuídos num afrobeat desenfreado capaz de desassossegar qualquer plateia.

O renascimento desta vanguarda musical não se limita aos arredores e bairros londrinos, como é o fenómeno de Bristol. Esta cidade sempre teve uma vida cultural inquieta construída pelo legado histórico do trip-hop dos Massive Attack e dos Portishead e, agora, são os irreverentes IDLES a assumirem o papel de cabeças de cartaz deste caldeirão criativo situado no sudoeste inglês.

Apesar da gravitação em torno da UK jazz scene inspirar e influenciar positivamente outras cidades britânicas, Bristol nunca quis largar a sua identidade e conservou os tons obscuros, selvagens e a eletrónica pulsante que tanto caracterizam o trip-hop ou o post-punk.

A realidade é que pairam ensembles, coletivos, promotores e uma série de venues que colocam esta cidade como local de eleição para o jazz, que reclamam o talento de uma nova cena jazzística contemporânea excitante e entusiasmante. Com o objetivo de celebrar uma nova geração de músicos surgiram festivais como o Bristol International Jazz and Blues Festival, nascido em 2013, que pretendem dar plataforma aos projetos feitos localmente e assim desvendar o mito duradouro de que o jazz é um género musical restrito às elites.

Para além de uma programação constante dentro deste estilo musical, existem também espaços de concertos espalhados pela cidade, tais como os clubes Fiddlers, Leftbank e The Gallimaufry, que integram o circuito mundial de vários consagrados do jazz, como é o caso da Sun Ra Arkestra, e uma empolgante nova geração representada por nomes como Alfa Mist ou Kamaal Williams.

O verão de 2021, independentemente da crise pandémica, afigura-se assim como o apanágio perfeito para a consolidação do jazz em Bristol com o aparecimento de vários álbuns que proclamam uma identidade única e formidável no seio artístico musical.

Worm Disco Club

Worm Disco Club

A promotora independente Worm Disco Club desempenha um papel fundamental na divulgação de novos projetos que acontecem na cidade e na incessante tarefa de mostrar a nova linguagem do jazz ao vivo.

Esta história de sucesso foi iniciada por três amigos, DJ’s residentes aos domingos à tarde num pub onde passavam essencialmente música de dança, desde o afro-disco até ao tropical-funk. Reconhecidos imediatamente pela sua energia e sempre na procura da próxima grande cena, deu-se assim a oportunidade de criarem a Worm Discs em 2020.

Inesperadamente, a Worm Disco Club lança o seu primeiro trabalho discográfico, uma compilação muito especial que celebra o talento que emana nas ruas de Bristol, o aclamado New Horizons – A Bristol ‘Jazz’ Sound, que presenteou os seus fãs com as colaborações de Run Logan Run, Waldo’s Gift, Snazzback e Ishmael Ensemble.

Tendo uma programação diferenciada, sem se cingir a um único estilo musical, é já de louvar a importância deste colectivo para a vivacidade noturna que tem contagiado Bristol ao longo dos últimos anos com concertos memoráveis e que lhes valeu um palco intitulado “The Wormhole” no famoso Glastonbury Festival.

O futuro do jazz está em boas mãos e com certeza Bristol já é um dos locais prediletos para os melómanos e apaixonados pela reunião dos novos cruzamentos do jazz, com influências que percorrem o mundo fora e absorvem as culturas das grandes capitais geográficas, tal como acontece em Chicago, Melbourne ou na vizinha Londres.

Snazzback

Snazzback

Em meados de julho veio o tão aguardado segundo álbum dos Snazzback, um dos projetos que mais entusiasmo gerou no público que respira esta atmosfera fértil, sendo um passo da afirmação deste acarinhado ensemble vindo do poço criativo de Bristol para o resto do mundo.

Como diz o velho ditado, “as pessoas é que tornam os lugares especiais”, e “In The Place” é o exemplo perfeito disso, permitindo-nos viajar numa avalanche hipnótica dançável que nos transporta para o sítio certo para esta manifestação de amor, ou seja, o palco.

Snazzback é um jovem coletivo composto por sete instrumentistas que são uma autêntica fonte de energia renovável de ritmos alucinantes que incorporam o neo-jazz londrino, com dignas passagens pelo hip hop e o nu-funk. O soul relaxante das vozes de China Bowls e STANLÆY encaixa nesta colorida eletrónica improvisada, sustentadas pela exploração de ambientes tropicais, carregados de solos estratosféricos dos sopros e dos frenéticos feedbacks das guitarras escutados em “Triangle”. Ao longo das 12 músicas é patente uma tremenda e eclética fusão de estilos, assim como uma alternância constante de dinâmicas que demonstra a enorme química que existe entre os talentosos membros do coletivo, guiando-nos para esta aventura que queremos que nunca termine.

Waldo’s Gift

Waldo's Gift

Em 2017 eram dados os primeiros passos da aventura musical de três jovens rapazes que se reuniam todas as quartas-feiras no famoso The Gallimaufry, um dos locais emblemáticos e de referência desta nova cena jazz que paira sobre Bristol.

É através do experimentalismo de tocar ao vivo e da constante sede de improvisação de Alun Elliot-Williams na guitarra, Harry Stoneham no baixo e James Vine na bateria que dão asas a um som com influências vindas do math-rock, post-rock e, obviamente, com elementos do jazz, nascendo assim o trio Waldo’s Gift.

Com um som inspirado na espontaneidade do improviso carregado de reverb, os ecos da guitarra ao fluirem com o pulsar pesado do baixo desencadeiam uma linguagem sónica minuciosa. A magia acontece na exímia comunicação deste trio, cedendo aos impulsos uns dos outros, numa espécie de pergunta e resposta intermitente.

Tendo à partida um processo criativo diferente dos Snazzback, com quem partilham “residência” no The Gallimaufry, acabam por interagir de forma distinta com a plateia durante as suas atuações ao convidar outros artistas (Holysseus Fly dos Ishmael Ensemble) para pintarem durante o seu concerto. Além disso, costumam também compor arranjos musicais de algumas das suas principais influências tais como Aphex Twin, Radiohead, ABBA e Floating Points. O último trabalho discográfico foi o EP The Hut, constituído por 4 faixas, e surgiu em outubro de 2020 com o selo da Black Acre Records, que promove nomes como Alfa Mist, Branko, Romare e Quantic.

Run Logan Run

Run Logan Run

“Scorching energy music for the 21st century…” meus amigos, é isso mesmo que este power-duo transmite, ao serem considerados uma das grandes referências da nova cena jazz que Bristol, por apresentarem paisagens sonoras únicas e de uma fúria incontrolável. A força da natureza vinda do saxofone tenor de Andrew Neil Hayes juntamente com os poliritmos desenfreados do baterista Matt Brown fazem marcação cerrada ao free-jazz com elementos obscuros do punk, mergulhando ainda nas ondas profundas e enérgicas do stoner-rock, que automaticamente nos recordam o incrível álbum colaborativo de Peter Brotzmann com os nossos aclamados e estimados portugueses Black Bombaim.

No single de avanço do seu mais recente álbum, “Screaming With The Light On”, são cuspidos laivos psicadélicos que emergem num cosmos espiritual, onde o krautrock cru da bateria coordena aquilo que é um dos projetos mais ambiciosos e empolgantes do Reino Unido.

For a Brief Moment We Could Smell The Flowers é o extenso nome do terceiro álbum da banda, lançado em setembro com o selo da Worm Discs, gravado e produzido durante o confinamento. Este título representa uma reflexão acerca dos efeitos que a pandemia trouxe para a sociedade, uma alusão clara ao abrandamento do mundo cosmopolita.

Ishmael Ensemble

Quem acompanha o movimento da nova cena jazz do UK sabe que o coletivo Ishmael Ensemble é um dos nomes mais prolíficos e sonantes da atualidade. Conduzido pelo líder, compositor, produtor e saxofonista Pete Cunningham, este projeto é sobretudo a sua transcendente abordagem de criação através do jazz , impondo a sua sensibilidade musical muito influenciada pelo som de Bristol, associado ao trip-hop, dub, acid-jazz e eletrónica. Pete adotou o nome Ishmael inspirado numa personagem do livro Moby Dick, dando assim início ao seu percurso, produzindo essencialmente house music até mudar-se para o centro de Bristol em 2009.

Altamente aclamado pela crítica, conta já com participações em compilações da Soul Jazz Records, Bronswood Recordings (fundada por Gilles Peterson), e na lendária Blue Note Records, por onde lançou o álbum Blue Note Re:Imagined (2020), com o intuito de celebrar o catálogo extenso desse legado histórico através de uma reinterpretação com uma nova linguagem de talentosos e emergentes jovens músicos espalhados pelo Reino Unido.

O álbum de estreia A State of Flow lançado em 2019 e a sensacional colaboração com a trompetista britânica Yazz Ahmed foram o mote perfeito para despertar a atenção dos ouvidos atentos da imprensa internacional, que considerou o disco como um dos melhores desse mesmo ano.

Importa realçar o desafio constante de Pete ao convidar vários artistas para colaborarem nas suas obras, demonstrando ser um motor fundamental na divulgação dos novos talentos musicais que dão vida à cidade de Bristol.

O minimalismo eletrónico e o seu jazz fluorescente e explosivo de texturas experimentais chega com o segundo álbum intitulado Visions of Light, concebido em agosto de 2021. Logo na faixa inicial “Feater” é possível deliciar-nos com a respiração do saxofone, como se estivesse ali presente Pharoah Sanders, e com uma batida lenta e progressiva embelezada pela voz de Holly Wellington. De rompante vem “Wax Werk”, que nos leva para outra dimensão, a dimensão do trip-hop evocando a herança dos anos 90 dos Massive Attack. Após este turbilhão de emoções, em “Empty Hands” o jazz experimental de nuances shoegaze flui com os ecos cristalinos de “Looking Glass”, interpretados pela magnífica voz de Holly, aludindo ao universo de Björk, e, por fim, termina-se esta viagem na bolha eletrónica cinematográfica invocada por “The Gift”.

Dundundun

dundundun

Este coletivo composto por seis membros de Bristol incendeia qualquer pista de dança através de uma fusão efervescente de jazz com a eletrónica. Os seus ritmos afro-latinos articulam-se com um experimentalismo na improvisação cósmica dos sopros e linhas de baixo hipnóticas, os quais por sua vez se subjugam ao transe analógico louco característico dos sintetizadores Prophet e Moog. Nitidamente inspirados pelas almas da música ancestral do spiritual-jazz, o EP de estreia dos Dundundun, constituído por quatro eletrizantes faixas e lançado pela Worm Discs em março de 2021, tem ainda a honra de contar com um arranjo musical brilhante da clássica “Love In Outer Place” dos Sun Ra.

Texto redigido por Eduardo Coelho

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