Olan Monk em entrevista: “O Auto Life é o último lançamento que fiz para performance”

Olan Monk em entrevista: “O Auto Life é o último lançamento que fiz para performance”

| Outubro 4, 2021 3:34 pm

Olan Monk em entrevista: “O Auto Life é o último lançamento que fiz para performance”

| Outubro 4, 2021 3:34 pm

As ideias de vida e de morte parecem fascinar Olan Monk. O seu álbum de estreia, Love/Dead, foi gravado entre a costa de Connemara, no oeste da Irlanda, e um tribunal no sul de Londres, e foi descrito pelo próprio como “uma reflexão sobre a efemeridade da vida e a certeza da morte”. O seu sucessor, Auto Life, editado na última sexta-feira, é uma reflexão pós-moderna sobre a fama, a performance e a morte do artista no contemporâneo, “um adeus à idolatria onde a cultura é absorvida pela natureza como um corpo de volta ao solo fértil”. 

É também o primeiro registo desenvolvido pelo artista multidisciplinar irlandês quando este já se encontrava a viver em Portugal. Depois de uma fértil estadia no Porto, que ajudou a informar as tonalidades góticas do seu novo EP, o músico e performer sediado em Lisboa concentrou os seus esforços nas atividades da promotora-tornada-editora C.A.N.V.A.S., que ajudou a fundar com o músico e compositor Lugh O’Neill e que tem servido de base para uma crescente rede de músicos e artistas de diferentes geografias (Apocope, a mais recente compilação da C.A.N.V.A.S., reuniu os nomes da egípcia Nada el Shazly, Hulubalang, dos indonésios Gabber Modus, e o jordano Bashar Suleiman num compêndio que aprofunda os diferentes significados de música popular).

A propósito do seu novo lançamento, que conta com as contribuições de Jam City e Elvin Brandhi em duas faixas bónus (podem descarregá-las digitalmente através do Bandcamp e da distribuidora inglesa Boomkat), estivemos à conversa com Olan sobre processos de gravação (ou “a performance fictícia do ato a solo”), as noções de migração que premeiam a experiência irlandesa e os vários arquétipos do estrelato na era moderna.

Para quem não conhece, o que é a C.A.N.V.A.S.? Um coletivo, uma editora, uma promotora? E como é que surgiu este projeto?

Eu sinto que estou a representar apenas metade da voz por trás da C.A.N.V.A.S., que é obviamente uma grande parte do que eu faço. Tenho que ter cuidado relativamente a isso, portanto, porque a C.A.N.V.A.S. é um projeto que fundei com um grande amigo e colaborador. Em 2018, arrancámos como editora, mas temos vindo a realizar eventos desde 2014. Este amigo e colaborador é o Lugh O’Neill, que responde pelo nome artístico Lugh — és capaz de ter visto ou ouvido alguns dos seus lançamentos, ou até mesmo algumas das suas performances. Ele também já esteve em Portugal algumas vezes.

Sim, cheguei a vê-lo uma vez.

Excelente! Onde foi? No Café au Lait?

Sim, no Café au Lait.

Perfeito! Sim, faz sentido. Pronto, nós começámos a trabalhar na C.A.N.V.A.S. quando morávamos juntos em Londres em 2014. Na altura era um pouco diferente, queríamos começar a organizar eventos e estávamos a morar com um grupo de amigos lá. E foi assim que tudo começou, começamos a programar eventos para apresentar as músicas novas que estávamos a fazer e que as pessoas que conhecíamos estavam a fazer. Era tudo muito informal.

Quando me mudei para o Porto, no final de 2017 ou início de 2018, o Lugh já se encontrava a residir em Berlim e decidimos começar a C.A.N.VA.S. como uma editora em 2018. Temos gerido a editora desde então, estamos há três anos em operação e é muito baseado nessa parceria. É algo que eu e o Lugh coordenamos juntos. E funciona, de certa forma, de um modo comunicativo ou colectivo. Trabalhamos com muitas outras pessoas também, mas de um ponto de vista mais transparente ou honesto – ou realista – é baseado nesta parceria entre mim e o Lugh. Portanto, tendemos a fazer todo o tipo de trabalho administrativo. E colaboramos com muitos artistas: engenheiros de masterização, engenheiros de som, designers gráficos, artistas visuais, músicos, performers e muitos outros criativos e pessoas que trabalham com música para perceberem o que fazemos, mas tudo se resume a isso. Essa é a base. Não me consigo recordar do resto da pergunta, foi como é que a C.A.N.V.A.S. surgiu?

Sim, como é que a C.A.N.V.A.S. surgiu, mas acho que já falaste sobre isso.

Acho que mais importante do que responder como aconteceu é talvez por que é que aconteceu. Começamos isto porque percebemos que nos estávamos a dispersar de um núcleo, de uma espécie de lugar onde baseávamos as nossas atividades. E então, quando começamos a C.A.N.V.A.S., já nos encontrávamos a morar em países diferentes. Havia o desejo de encontrar uma maneira de continuar a ter uma comunidade em torno da música, apesar da probabilidade de continuarmos a mudar-nos ser grande e de que as pessoas com quem trabalhamos não estão vinculadas por uma única localização geográfica. A C.A.N.V.A.S. meio que se baseou nessa ideia de dispersão, portanto, e de tentar encontrar uma forma de trabalhar com as pessoas, mesmo que não estivéssemos sempre no mesmo lugar.  

Falas muito sobre ideias de lugar e não-lugar, de estar em todo o lado e em lado nenhum, que são conceitos relacionados, como disseste numa entrevista, com “ideias eternas da Irlanda como o exílio e a emigração”. Poderias expandir um pouco mais sobre essas ideias? E de que modo é que a experiência irlandesa informa o teu trabalho?

Sim, é algo sobre a qual quero falar provisoriamente. Porque só posso falar realmente sobre a minha própria experiência. E embora seja algo muito relacionável e relacionado com outras experiências históricas – que são irlandesas e que estão relacionadas com a Irlanda – e com a experiência de outras pessoas, acho que, quando falo sobre essas coisas, falo também de um ponto de vista pessoal. Então prefiro basear-me nisso e não fazer muitas declarações gerais. Acho que também me concentraria mais na ideia de dispersão, ou talvez nessa ideia de migração e nomadismo, e na ideia de construir comunidades que são de alguma forma nómadas ou dispersas. Acho que na Irlanda isso é muito real, ainda encontro irlandeses em todos os lugares que vou. E parece que isso está inscrito na nossa história e experiência social. É uma ilha. 

Portanto, mesmo geograficamente, há uma longa história de pessoas que deixam a ilha por diferentes motivos e que acabam por regressar em diferentes alturas. E sim, acho que isso foi algo que influenciou a maneira como escolhemos iniciar este projeto. Não pensamos nisso conceptualmente. Nesse sentido, foi apenas uma espécie de experiência vivida. Eu e o Lugh vivemos nalguns sítios diferentes naquela época, e eu dava por mim continuamente em movimento. E isso deixa-me sempre algo surpreso. Talvez não surpreso, mas sinto-me sempre um pouco comovido de algum modo. Ainda me move e ainda me afeta quando conheço outras pessoas, não apenas irlandeses, mas outras pessoas que têm essa experiência de viver em lugares diferentes, ou de ter uma espécie de mix de origens ou de relacionamentos com lugares diferentes, e o modo como essas experiências informam a tua identidade cultural ou a tua relação com uma sociedade, seja uma sociedade em que tu viveste ou de onde vieste ou aquela que tu escolheste juntar-te de alguma forma por estares noutro lugar. Então, todas essas coisas, sem tentar entrar no tópico de política local, acho que informam um modo de vida e um modo de fazer música ou arte. Essa é a área que considero mais relevante para o que fazemos. É a forma como esse movimento afeta a prática criativa ou a co-criação da comunidade em torno da prática criativa.

Também falas sobre a importância de “colectivizar” uma comunidade cada vez mais dispersa de artistas. Como é que consegues manter o número crescente de artistas envolvidos no C.A.N.V.A.S. juntos?

Sim, é uma boa pergunta. E acho que, considerando o último ano e meio a viver numa pandemia, isso acabou por ganhar um novo significado. Sinto que quando começamos já era meio que garantido que, dada a existência da internet, já havia essa possibilidade de comunidades dispersas se formarem em torno de projetos criativos ou interesses compartilhados em qualquer lugar do mundo. Acho que isso também pode ter mudado no último ano e meio. É engraçado que os nossos processos continuaram a seguir a mesma direção, mas durante um tempo nós não nos vimos de todo. Acho que essa foi talvez a maior diferença. Acho que ao morar no Porto durante alguns anos descobri que ainda havia gente a querer vir para cá. Era um sítio ótimo para poder realizar eventos e para as pessoas visitarem e aparecerem e serem imediatamente incluídas numa comunidade musical local, que já existia. Isso permitiu criar uma base para a nossa prática ou para nos unir. Fazíamos coisas remotamente, mas havia momentos ao longo do ano em que realizávamos e recebíamos eventos ou tínhamos performances que nos fixavam num lugar temporariamente, e isso foi muito importante para a forma como continuamos enquanto grupo.

Durante os últimos anos de pandemia, inscrevemo-nos nalguns projetos e iniciamos outros com a [Elvin] Brandhi, uma artista com quem trabalhamos várias vezes. E lançámos a compilação Apocope, que foi talvez uma das de maior alcance em termos de colaborações. Trabalhamos com uma grande variedade de artistas neste lançamento como a Nadah El Shazly, do Cairo, Hulubalang, da Indonésia, e a Brandhi, que é nómada. E eu meio que me conectei com essas pessoas e outros artistas como o Bashar Suleiman, a Alpha Maid, o Billy Bultheel e o Lugh. Conseguimos concretizar um projeto de crédito partilhado sem nunca estar no mesmo lugar. Talvez tenhamos que encontrar outras maneiras de continuar a fazer isto, portanto. E há muita comunicação aí, muitos contactos. Muitas dessas coisas acontecem online, muitas acontecem remotamente, houve muitas conversas entre mim, o Lugh e a Brandhi. A Brandhi também esteve em muitas conversas longas remotamente, ligando a partir de diferentes lugares.

Eu diria talvez que esse tipo de criação coletiva, como uma colaboração ou uma compilação de músicas criadas em torno de um tema, como a apócope, é outra maneira de encontrar um código aberto avançado para reunir artistas de diferentes localizações geográficas específicas. E sim, acho que isso mudou. Diria que talvez seja assim que encontramos maneiras de continuar. Agora estamos a voltar aos eventos ao vivo, mas já se passou muito tempo.

TM: Qual foi a sensação de sair de um lugar como Londres, onde estudaste, para ir para uma cidade como o Porto?

Conheço muitas pessoas em Portugal que decidiram viver em Londres, ou já viveram em Londres, e depois regressaram a Portugal. No meu caso, eu cresci no oeste da Irlanda, no meio do nada. Passei por uma série de fases em que saí de casa, quando era jovem, e meio que continuei a mudar-me. E acabei por ficar em Londres por alguns anos, era onde estava baseado. Era praticamente o fim do meu tempo lá e decidi que precisava de algum tipo de mudança. Estava à procura de oportunidades para me mudar para outro sítio e fiz uma proposta de investigação que foi aceite pela Universidade do Porto. Essa tornou-se a minha base nos anos seguintes, e acho que estou feliz por ainda cá estar.

Portanto sim, a minha experiência de me mudar de Londres para o Porto é que… acho que vale a pena reforçar que foi quando começamos a C.A.N.V.A.S.. O Lugh já estava em Berlim e foi muito importante para ele ter tido a experiência de deixar a Irlanda e morar em sítios diferentes como Londres e Berlim. E para mim foi o Porto. Tornou-se um lugar onde eu poderia fazer isto. Estou muito grato por esta experiência. Acho que o Porto é uma cidade tão pequena em muitos aspetos comparada com Londres, mas tem tantas coisas que Londres nunca poderia ter. Então talvez tenha sido bom perceber que nem sempre é preciso estar na maior cidade para encontrar uma maneira de viver da música. Para mim, viver no Porto foi extremamente benéfico em termos de querer viver enquanto músico. Encontrei uma comunidade ótima em torno da música e arte, que foi extremamente acolhedora e inquestionável. Sinto que [o Porto] tem uma das melhores cenas de música DIY que eu já experienciei.

Vês-te mais como um músico ou um performer?

É engraçado porque acho que passei os últimos anos a dizer que era um performer e não um músico. E provavelmente só no ano passado é que cheguei a algum tipo de paz com a ideia de me tornar num músico novamente. Portanto, não é uma resposta direta, mas acho que demonstra a minha maneira de pensar ou sentir em relação a essa questão. Acho que durante uns anos pensei que a performance fosse talvez mais honesta em termos de descrever o que eu fazia, não era necessariamente sempre no contexto musical. E depois, nos últimos anos, acho que de alguma forma voltei a pensar que existe uma maneira de fazer música que envolva a performance, mas que a música não deve deixar de ser mencionada e que deve ser tida em consideração. Construir uma prática em torno da música e participar disso. 

Criar uma comunidade em torno da música é o mais importante, na verdade. Essa é talvez a minha resposta neste momento.

Consideras a tua música como uma continuação de tua prática de performance, então?

Sim, mas acho que colocaria as coisas de outra maneira. É como se minha prática de performance viesse da minha prática musical. Acho que é importante não nos identificarmos sempre com a ideia de ser algo, perceber apenas o que podes fazer e praticar. Eu vejo-me menos como um performer no último ano e meio em que não atuei. E ainda me vejo como um músico, continuo a fazer música de alguma forma. Isso meio que mudou as coisas para mim. Estou muito feliz por voltar à performance, mas é como músico que o estou a fazer.

Sobre o teu novo EP, Auto Life. Podes falar-me um pouco sobre como foi o processo de gravação?

Sim, é uma questão engraçada. Fiquei contente quando esta entrevista surgiu, não sei se a Threshold é sediada no Porto ou não?

Não é baseado em lugar nenhum, é muito online na verdade. Mas é portuguesa, sim.

Porque o Auto Life é o primeiro trabalho que gravei enquanto vivia em Portugal. Há coisas que vieram de antes, algumas demos e ideias e gravações que eu comecei quando ainda estava em Londres ou talvez na Irlanda por um tempo, mas foi no Porto que as peças se juntaram realmente. Encontrei-me num estúdio que estava a partilhar com algumas pessoas e meio que me isolei lá, a fazer música e pensar. Na verdade, para fazer a ligação com a última questão: o Auto Life é o último lançamento que fiz para performance. Fui convidado para fazer alguns espetáculos ao vivo e comecei a escrever músicas para apresentar. Eu nem sabia se alguma vez as iria lançar, então acabei a tocá-las durante uns tempos nalguns desses espetáculos. Fui convidado a abrir para Eartheater nalguns espetáculos em Londres em 2019 e foi aí que toquei algumas dessas músicas ao vivo pela primeira vez. Ao mesmo tempo, eu estava a ir para o estúdio e a gravar as sessões e meio que a improvisar e a editar e a compor, mas sempre com a performance em mente a pensar: “Como é que eu cantaria?”, “Como seria a música se eu atuasse na vida real?”. E então, eventualmente, comecei a pensar que estas canções poderiam funcionar como um lançamento. São bastante clássicas e meio que se moldaram pela espécie de áurea gótica do Porto, que é o que se está a passar lá neste momento.

Portanto acabei por entrar nesse mundo e ficava até muito tarde no estúdio, passava lá muito tempo. E então, eventualmente, quando tudo se uniu, lancei o meu álbum de gravações, Love / Dead, que foi gravado entre Londres e a Irlanda. Estava a pensar lançar o Auto Life como um EP para suceder o álbum e voltar a tocar ao vivo, e este parecia ser o melhor momento para o fazer, obviamente, depois de quase um ano a prepará-lo. É também o momento em que acho estranho ouvi-lo, porque foi feits antes de tudo ficar parado, quando a performance ainda fazia parte da minha vida e da vida de muitas pessoas. Passou por esse período de estagnação, portanto, e agora está a voltar ao mundo, para um momento onde tudo isso pode voltar a ser possível. É como ligar as duas épocas, de certo modo.

Uma das minhas faixas favoritas neste lançamento é a “Last Days”. Cheguei a ver-te tocá-la uma duas vezes antes da pandemia e lembro-me que soava muito abrasiva, parecia que estávamos mesmo na presença de um guitarrista, enquanto que em estúdio soa tudo um pouco mais distante e frio. Tens usado estas performances para testar novo material?

Sim, penso que é válido. Acho que levo muito tempo para fazer as coisas. Acho que algumas pessoas percebem isso, as pessoas que estão por perto talvez sintam que isso acontece. E é algo que eu aprendi a aceitar, porque às vezes gostava de ser mais rápido no processo, porque para mim leva muito tempo. Portanto sim, definitivamente tenho tentado diferentes versões dessa música há anos. A “Last Days” é a única música que começou quando eu ainda estava em Londres. Gravei a parte inicial de guitarra e bateria e a parte vocal que compõem a faixa enquanto estive em Londres, e depois mudei-me para Portugal. E então, alguns anos depois, acabei com essa versão e toquei-a ao vivo de maneiras diferentes.

É engraçado teres mencionado a guitarra porque acho que é muito importante. Algo que eu não disse é que a guitarra está presente em todo o EP. Acho que o Auto Life foi a minha espécie de regresso à função de guitarrista, tocar guitarra e aprender a apreciar e a aceitar isso novamente. Isso também aconteceu um bocado por acaso. Eu cresci a tocar guitarra e toquei em bandas durante muito tempo, mas por algum motivo acabei por deixá-la de lado por uns tempos enquanto estava em Londres. Fiz muito mais música eletrónica. Voltar para o Auto Life foi uma espécie de ponte entre essas duas coisas. É muito baseado na guitarra. Há uma guitarra em pelo menos um momento de quase todas as faixas, provavelmente. E a “Last Days” foi talvez a primeira faixa que compus com a guitarra novamente. E quando me viste a tocá-la ao vivo não havia guitarras por perto. Mas como disseste, ela está realmente presente, parece que está mesmo lá então talvez seja a tal ponte. Foi como uma espécie de abertura para o que se tornou o Auto Life, que era este tipo de música electrónica estranha com um peso muito grande na guitarra. É engraçado porque passei a maior parte da pandemia a tocar guitarra elétrica no sofá. É como se o círculo se tivesse completado.

Foi uma inclusão interessante. Tenho certeza de que não foi a primeira vez, mas agora consegues mesmo senti-la. É muito mais visceral.

Sim, tens razão. A guitarra é um instrumento muito visceral. Essa é a cena. Tocar um instrumento, ouvir tudo o que podes tocar com as tuas mãos… É gestual, não apenas visual, mas gestual. Mas é essa qualidade visceral e tonal, especialmente numa guitarra elétrica muito distorcida, que causa uma reação psico-acústica que eu acho que é muito visceral, como disseste.

Sobre o teu outro single, “Fameless”, onde incluíste gravações de ruído gerado por plateias de modo a combater o processo absurdo de gravar uma música — um ato que descreves como sendo extremamente solitário. Enquanto artista, e com uma pandemia que te impossibilitou de atuar ao vivo durante tanto tempo, suponho que isso tenha tomado novos contornos.

Sim, é verdade. Acho que está tudo um bocado reformulado. Acho que essa é uma das grandes vantagens de fazer qualquer coisa e depois deixá-la. Não podes controlá-la. Portanto, talvez o melhor e o pior de certas situações frustrantes é que as coisas adquirem um novo significado. Sinto que isso é verdade nessa faixa. E talvez seja um alívio. Acho que há algo sobre a ideia de reconhecer o quão estranho isso é, e o quão estranho deve ser fazer música sem eventos comunitários a acontecer. Acho que a música mudou muito durante a pandemia. Tem sido um tipo de experiência muito diferente. Talvez haja algo aí, não sei. Acho que que é como disseste mesmo [risos].

Também gostaria de te ouvir falar sobre o que descreves como “os vários disfarces ou arquétipos” da “performance ficcional do ato a solo” — a rockstar e o trapstar —, que penso que encapsula na perfeição a tua visão.

Fico feliz por ouvir isso. Às vezes sinto que digo essas coisas e não devia [risos]. Soa ridículo em alguns aspetos, é uma declaração mesmo ridícula. Espero que as pessoas percebam que eu acho que a música pop, em especial, deve ter um peso e acho que descrevi o que faço como um tipo de pop pesada. E digo isto de duas maneiras: quer dizer que pode soar pesado, mas que também estou a tentar estar ciente do tipo de contexto – social e cultural – em que a música pop está a ser produzida, feita e partilhada, e o modo como eu participo nisso ou jogo com isso. 

Eu penso, portanto, na forma como o rock e o trap são pensados, e como essas duas coisas evoluíram com um certo grau de separação na qual existe uma espécie de contraste ou atrito. Não acredito que essa separação seja real, acho que os dois têm raízes comuns na música blues. E com isso vem muita vida cultural, que tem muito a ver com a forma como essas músicas saem frequentemente de um grupo marginalizado ou oprimido. E então isso traz consigo imensas questões sobre o tipo de apropriação e segregação a que esses géneros foram submetidos durante tanto tempo, e como isso desempenhou um papel importante no desenvolvimento da cultura pop e da música pop ocidental. Acho que, tal como a música pop americana, a cultura e a indústria formaram-se a partir da história recente.

Portanto, sem me alongar muito sobre o assunto, até porque acho que não falo com qualquer grau de autoridade sobre essas coisas, mas apenas para reconhecer que estou ciente de que estou a brincar com coisas que foram vistas de uma forma muito leve e superficial. Essa ideia da rockstar/trapstar, é muito difícil não te identificares com isso. Mas depois, num outro nível, há algo muito mais profundo, talvez, que é tentar entender o que são, de onde vêm e o que realmente significam estas coisas enormes e de que forma podemos contribuir para elas e talvez desconstruí-las ou reconsiderá-las um pouco. Acho que há algo de lúdico naquilo que procuro exprimir com o Auto Life, como uma espécie de consciência com significado ou um grau de autoconsciência, mas há uma ludicidade que advém talvez da tentativa de ir além dessas coisas em direção a algo menos definido e mais desconhecido de alguma forma.

Para terminar, como é que surgiu esta colaboração com o Jam City?

Enquanto gravava o Auto Life, conheci o Jam City numa performance que fiz no Reino Unido. Partilhamos algumas músicas e isso levou à ‘”Bruised Fruit” e à “Burnout”. Atuei em Portugal com a Elvin Brandhi e os vocais na “Bruised Fruit” vieram de um espectáculo ao vivo que fizemos na Galeria Zé Dos Bois, em Lisboa. Ambas as faixas são baseadas em instrumentais que o Jam City nos enviou. A “Bruised Fruit” foi fortemente remisturada pela Brandhi e a “Burnout” é o meu próprio edit do instrumental do Jam City. Também adicionei algumas das guitarras e vozes do Auto Life em ambas. Foi muito divertido. Tenho um enorme respeito por ambos os artistas e mal posso esperar pela próxima colaboração.

Fotografia: Inês Baptista

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