
Gadutra em entrevista: “Criar espaços para todes é transformar, é não se submeter por necessidade”
Gadutra em entrevista: “Criar espaços para todes é transformar, é não se submeter por necessidade”

Gadutra em entrevista: “Criar espaços para todes é transformar, é não se submeter por necessidade”
Gadutra, artista do Rio de Janeiro, deixa uma marca importante e poderosa nos circuitos artísticos lisboetas desde 2017. Com um portfólio que compreende performance, murais, produção musical, pintura, tatuagem, fotografia e zines, edita em Janeiro de 2022 o seu mais recente trabalho, lagarta.
Conversámos com Gadutra sobre lagarta e sobre a maneira como ela se enquadra num mundo que muitas vezes marginaliza expressões fora do cis-heteronormativismo e da branquitude. lagarta é um disco que podia ser descrito por uma quase-infinidade de géneros e etiquetas. Há alguma que prefiras para o teu trabalho ou não sentes que haja necessidade de o fazer?
Gadutra: Não sinto necessidade de definir gênero para nenhuma criação, acho que isso é uma tendência de imprensa para tentar organizar setores, facilitar e dificultar alguns acessos. A ideia de transitar é grande essência para minha produção, me impulsiona a validar curiosidades, experimentar e descobrir novas formas do que posso ser.
Que discos e trabalhos artísticos te acompanharam enquanto compunhas lagarta? Deixaste que os discos que ias ouvindo permeassem o teu trabalho ou já tinhas uma ideia de como este disco ia ser quando começaste a escrevê-lo?
G: Na música, a criação de lagarta foi super afetada por sons de artistas como Podeserdesligado, Caterina Barbieri, Letricia, Arca, Ventura Profana, Evaya, Aisha Devi, Lyzza, Sarah Davachi, ABRA e Arushi Jain. Mas, apesar de sentir que o disco tem uma construção estruturalmente pensada, algumas músicas já existiam previamente, já outras foram criadas no intuito de continuar/ligar essa narrativa. Sempre tendo a aleatoriedade como parceira.
O teu trabalho tem muitas multiplicidades — pintura, tatuagem, murais, fotografia, algumas publicações em zines. Como é que vês a ligação entre estas diferentes modalidades? Associarias partes diferentes da tua identidade a diferentes formas de produção artística?
G: Sinto que uma grande busca na minha pesquisa é entender o que há de mim em cada uma dessas médias e veículos, por mais que sejam linguagens bastante distintas. Ou seja, como Gadutra se manifesta nas diferenças. Perceber cada vez mais o que conduz isso tudo, como as decisões criam formas e limites que constroem o eu agora. Acho um processo super bonito ver desenhos, fotos ou músicas antigas, por perceber que existem sempre traços de singularidade, principalmente nas ideias mais cruas.
Fotografia de Lucas Vogel
Em lagarta noto duas correntes que são vocalizadas — por um lado há a inclusão (“aqui há espaço para todes” em edrüs) e por outro lado a transformação e insurgência (“não, eu não serei submissa” em caosa). Podias comentar estes dois lados? Consegues imaginar um a existir sem o outro?
G: As duas fazem parte de um todo. Criar espaços para todes é transformar, é não se submeter por necessidade. Há também uma terceira corrente na última faixa, que não deixa de fazer parte desse ciclo, e para mim diz sobre ansiedade. A ansiedade que gera a transformação, a transformação que gera a inclusão.
Em “caosa” há uma forte mensagem contra o conformismo, contra as prisões socialmente erguidas à volta das expressões menos tradicionais, vocalizada, como já comentei, numa frase forte e simples: “não, eu não serei submissa”. De que forma surgiram estas questões mais politizadas na tua música? Ou sentes que a tua música não teria existido sem uma vontade de falar sobre estas questões?
G: “Caosa” foi uma proposta que fiz à Tita Maravilha de criarmos uma peça sobre o caos. Somos duas pessoas altamente atravessadas por violências de um mundo que não ensina a amar quem somos, por isso não é possível não termos os reflexos dessa indignação em nossas publicações. Mas a faixa também traz a essência da gambiarra que nos ensina a remontar cacos, atravessar e deleitar na abundância que é transitar.
O teu álbum conta com várias colaborações e durante a tua carreira tiveste colaborações com diferentes artistas. Como surgiram estas colaborações? Apesar das muitas colaborações, tens bastantes produções a solo. Sentes que há uma diferença grande entre produzir e compor ambos?
G: Adoro cocriar. Pra mim, é um exercício muito prazeroso de calar o ego, redefinir respeito e de fato chegar a resultados mais inesperados. Por muitos momentos pensei em ter todas as faixas do álbum composta por colaborações, era bem possível, mas algumas faixas já eram uma peça pronta sem participações. E até que esses contornos definem bem o que liga todos os universos do álbum. O processo das faixas solo é introspectivo, prefiro estar sozinha, e assim que tenho a faixa pronta já é quase que imutável, não faz tanta diferença ouvir opiniões de fora, a peça já cumpre seu propósito. Mas com certeza vou continuar colaborando futuramente, ainda tenho muitas amigas que quero registrar com.Numa entrevista à Parq falas sobre a necessidade de espaço para expressões fora da branquitude, fora do eurocentrismo, fora da heteronormatividade em Portugal, um país de brandos [e brancos] costumes que historicamente se recusa a debater a sua herança colonial e com a sua dose forte de conservadorismo. Sentes que tem havido mudanças no sentido de abrir o discurso artístico a novas formas de expressão?
G: Responder essa primeira pergunta não basta. Não existem mudanças o suficiente. Junto a isso percebo uma tendência tóxica de artistas super privilegiades surfando numa onda hype de produções “amadoras” ou “low cost” que só reforça o quanto as produções marginalizadas continuam ditando tendências. Um ciclo exploratório, onde somos exaltadas apenas no que convém às grandes marcas/produções, como sempre ensinou a colonialidade.
Todas as minhas criações, exposições ou articulações de trabalho sempre foram altamente pautadas numa negociação com esse sistema. Ou seja, parece que não há conforto, não há uma estrutura realmente sustentável que investe ou paga dignamente as margens sem se beneficiar de maneira demonstrativa da própria. Os valores de comunidade que precisamos resgatar parecem restritos a povos que estão sendo dizimados nesse instante.
A Troublemaker Records e tu própria conseguiram sedimentar-se dentro da cena artística portuguesa sem que a vossa expressão fosse absorvida pelos discursos homogenizantes da sociedade, mantendo sempre um foco criticamente necessário na vossa identidade. Quando tantos conceitos artísticos são definidos pela elite do mainstream, de que forma é que artistas de backgrounds e identidades com pouca representação podem singrar e mudar o status quo sem serem absorvidos pelo mesmo?
G: Pensar a última pergunta me faz questionar proximidades mais tangentes, do tipo: quantas pessoas imigrantes, trans ou racializadas fazem parte da vossa equipe? Até quando as curadorias e direções continuarão sendo brancas e europeias? Estão “aliades” prontes para ceder?
lagarta de Gadutra saiu no dia 22 de Janeiro de 2022 e já está disponível pelo Bandcamp da Troublemaker Records.
Entrevista por José Almeida
Fotografia de Bruno Saavedra