Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer
Recordings From The Åland Islands

| Março 19, 2022 5:03 am

Recordings From The Åland IslandsInternational Anthem Recording Co. | março de 2022

 

O cientista Charles Darwin quando viajou até às Ilhas Galápagos revolucionou a biologia com a teoria da evolução das espécies, aqui arrisco afirmar que Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer revolucionaram igualmente a música experimental e ambiental com a sua ida às ilhas Åland. Mas já lá vamos… este arquipélago é constituído por mais de 6,500 ilhas situadas no Mar Báltico entre a Suécia e a Finlândia, sendo uma região autónoma do território finlandês cuja língua oficial é o sueco. A fabulosa particularidade deste conjunto de ilhas é que apenas 60 dessas terras são habitadas pela população. Diz-se por norma que por detrás de um bom disco, costuma estar também uma boa história. Jeremiah Chiu provém de Chicago, local onde deu os primeiros passos ao tocar violino e piano, sendo que no secundário começou a interessar-se pelos sintetizadores e pela música eletrónica, tendo como inspiração Raymond Scott e Suzanne Ciani. Atualmente reside em Los Angeles, a desempenhar  funções enquanto artista nas áreas do designer gráfico e da educação, sempre com o foco de convergir as artes, a publicidade e a tecnologia nos seus trabalhos profissionais. Fora do espetro musical, a sua conexão com a editora International Anthem vai muito além disso com direito à sua esplêndida quota parte nos diversos artworks de outros artistas que compõem o catálogo de discos da editora americana. 

Marta Sofia Honer inicia-se na música precocemente aos 3 anos, vinda de uma família com raízes musicais clássicas, visto que a sua mãe que lecionava violino e viola de arco. Formada na vertente clássica de orquestra e em música de câmara, rapidamente desviou-se desses caminhos para se dedicar unicamente a sessões de estúdio para programas de TV, filmes e colaborações para outros artistas. É de salientar os inúmeros trabalhos do seu currículo, passando pelo aclamado filme “Promising Young Woman” que teve várias nomeações para os Óscares de 2021, na série “The Good Place” e ainda participou em álbuns de estrelas da cultura pop como Beyoncé, Ariana Grande e Mariah Carey

Jeremiah Chiu e Marta Sofia Honer conheceram-se na intensa e fértil cena musical de Chicago onde partilhavam as suas ideias e projetos, contudo em 2017 decidiram embarcar na aventura de irem visitar as desconhecidas ilhas Åland com o objetivo de ajudar duas amigas (a mãe Sage Reed e a filha Jannika Reed) a criarem o Hotel Slava no pequeno município de Kumlinge. O nome desta ilha significa “passagem rochosa” que teve direito a dedicatória especial na música “Rocky  Passage”. Após terminarem essa tarefa regressaram aos EUA, contudo ambos ficaram maravilhados com o privilégio que tiveram ao vivenciar um lugar tão especial e tranquilo como aquelas ilhas. Deu-se então a possibilidade de um regresso no verão de 2019 através de uma bolsa do departamento de cultura de Kumlinge que os convidou a gravar e a atuar numa igreja medieval dessa pequena comunidade.

O chilrear dos pássaros a desfrutarem do seu habitat cruza-se na densidade misteriosa dos sintetizadores modulares de Jeremiah Chiu na abertura do disco em “In Åland Air”. Os sinos escutados em “On The Other Sea” contrapõem-se à brisa e ao som das marés que circundam aquela zona da Escandinávia, eclodindo os primeiros tons graves da viola de arco. “Snåcko” é mais uma dedicatória a outra ilha que fica próxima de Kumlinge que tenta espoletar esse mundo rural e florestal onde paira o eterno sossego. 

Um dos pontos altos do álbum ocorre em “Stureby House Piano” com uma estonteante composição ao piano, apenas interrompida por uma fortuita conversa caseira vivida naquele mágico lugar. O sonho de algum dia vislumbrar aquelas viagens e paisagens é desencadeado através das sucessivas gravações de campo escutadas em “Voices” ou “By Foot By Sea”, formando-se a ilusão de um sentimento em como aquelas serenas memórias ali retratadas fossem manifestamente íntimas e pessoais. A flutuação permanente adensa-se com os sopros da flauta em “Archipelago” e com o sufoco das cordas da viola de arco, tema onde Marta Sofia Honer explica ser uma referência à total privação de sol deste povo nórdico em pleno Inverno.

O final apoteótico com “Under the Midnight Sun” é o tema mais amplo e expansivo, uma autêntica luz ao fundo do túnel que fecha um ciclo experienciado por este magnífico duo. A colagem minimalista de “Recordings From The Åland Islands” entre elementos acústicos e eletrónicos é construída de forma notável e meticulosa, tornando-se numa evidente produção artística singular com um valor imensurável, equivalente a uma obra divina de arte-sacra. 

Curiosamente o genial cineasta Ingmar Bergman passou também muito dos seus anos de vida na pacata, tranquila e misteriosa ilha, a ilha de Farö. Recordando algumas das suas últimas palavras quando lhe foi questionado se viver ali naquela pequena ilha representava a solidão, Bergman prontamente respondeu que não, mas sim o prazer de estar com o “maravilhoso mundo do silêncio de um Deus sem respostas”. 

Talvez seja este o segredo, aceitar e respeitar afincadamente esse tal Deus solitário que simboliza a relação consciente do homem-natureza através da simples finitude de uma ilha.

Fotografias de Joyce Kim

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