Moisés em entrevista: “Este álbum é claramente muito sobre mim e sobre muita coisa que se passou comigo”

Moisés em entrevista: “Este álbum é claramente muito sobre mim e sobre muita coisa que se passou comigo”

| Maio 12, 2022 3:15 am

Moisés em entrevista: “Este álbum é claramente muito sobre mim e sobre muita coisa que se passou comigo”

| Maio 12, 2022 3:15 am

Moisés Feliciano (ou simplisticamente, moisés) é um músico de 22 anos originário das Caldas da Rainha. O seu estilo de rap é uma das imensas provas da ininterrupta demonstração do hip hop em se deixar experimentar, ao reconstruir-se a partir de constantes metamorfoses, um fenómeno que tem ocorrido internacionalmente ao longo dos últimos dez anos. Em 2012, o hip hop mais industrial e experimental que vinha na mente de muitos era da autoria dos Death Grips. No entanto, o hip hop evoluiu de tal maneira que, apesar do trio californiano ainda ter um espaço reservado no coração da história do género, não está sequer de perto de ser único ou o mais extremista dentro destes experimentalismos que o género nos traz. Vemos letras e beats cada vez mais abstratos e crípticos, que pedem emprestadas vibes dos mais variados géneros. Internacionalmente, os maiores exemplos que podemos enunciar são Injury Reserve, JPEGMAFIA ou clipping., cada um por razões diferentes.

E onde entra moisés nesta equação? Pois bem, talvez sejam os ventos do experimentalismo no hip hop a finalmente chegarem ao nosso país (já não era sem tempo). Moisés procura constantemente inovar dentro dos seus beats, entrando em industrialismos e líricas crípticas com um bafo a r&b californiano no seu álbum de estreia, Valsa até ao Fim. No entanto, esta sonoridade não apareceu do nada: veio de uma intensiva experiência e evolução constante, desenvolvida ao longo de uma pandemia que durou tempo o suficiente para dar a moisés o tempo necessário para processar tudo o que se passa à sua volta, para o transmitir da forma mais artisticamente clara possível.

Nesta entrevista, feita via videochamada, falámos especialmente de todo o processo de moisés para chegar a este ponto artístico, enfatizando particularmente o novo álbum e o caminho que poderá ser traçado no futuro.

 

Vamos começar por uma pergunta mais cliché: o que te levou a fazer música?

M – Isso é de facto uma pergunta cliché, mas nunca sei como respondê-la…

Foram vários fatores, um deles sendo eu precisar de algo para conseguir extrair tudo o que tenho cá dentro. Já o fazia com cinema, mas a música deixou-me fazer isso mais facilmente. Ao mesmo tempo, comecei a fazer música só, tipo, a gozar. O primeiro som que alguma vez fiz foi um remix do “Old Town Road”, do Lil Nas X. Está perdido no meu drive, mas ainda o tenho. Foi literalmente assim que começou esta carreira, vá.

Ou seja, além de Brockhampton, Kanye West e outras inspirações de que falaste em outras entrevistas, tens também que agradecer ao Lil Nas X [risos]

M – Certo [risos].

Como é que a partir desse remix pensaste: “Epá, se calhar é mesmo isto que quero fazer”?

M – Basicamente, eu comprei um microfone para fazer ensaios audiovisuais, que era uma cena que eu curtia de fazer na altura. Depois, fiquei só a brincar, a fazer esse remix e fiquei tipo: “olha, vou só experimentar”, e comecei a fazer beats. Eu legitimamente não queria ser producer. Estava só a brincar e queria mais rappar e assim, do que fazer música no geral, mas eu não conhecia ninguém que fizesse música e fiquei: “ya, vou ter de arranjar beats para rimar de alguma forma”. Então decidi que o mais fácil seria eu aprender e começar a fazer isto sozinho.

Ao início, não conhecias alguém que fosse músico, mas agora arranjaste amigos na área. Aliás, chegaste a convidar três deles [Gonsalocomc (“pontas soltas”), Phaser (“anjoANJO”) e Vert Gum (“inseto frágil”)] para o Valsa até ao Fim. Dito isto: como é que estas amizades te influenciaram e fizeram evoluir enquanto artista?

M –  Os três que estão no álbum são pessoas que já há muito tempo, pelo menos desde que os conheci – principalmente o Miguel (ou Phaser), por já o conhecer há mais tempo – estiveram sempre lá para mim e deram-me muita força para continuar a fazer música. Mostraram apoio pelo que eu estava a fazer e isso foi muito bom para mim como artista. Ver outros músicos, principalmente uns que gosto muito, que têm trabalhos mesmo incríveis e que estão também eles a mudar tudo o que é música em Portugal, ajudou-me a ganhar mais confiança enquanto artista. Além disso, colaborar com eles ajudou-me mesmo muito a deixar as coisas fluírem mais naturalmente e a deixar de meter tanto peso em fazer tudo de uma forma absolutamente perfeita. Eu gostei muito da dinâmica de deixar outra pessoa fazer só o que quisesse com algo que eu comecei.

Até agora, todas as tuas músicas tinham sido lançadas a solo, mas cá temos estas colaborações. O que é que te fez pensar: “trazer um ou outro artista para aqui seria curtido”?

M – Desde que comecei a fazer música que eu curtia de trabalhar com mais artistas. Eu tenho outro projeto com um amigo meu que vem desde que comecei a fazer música. Eu gosto muito de colaboração. Acho que é uma forma eficaz de crescer e de aprender novas técnicas e visões sobre a música. Até agora tinha sido tudo a solo porque eu ainda não estava muito confortável com alguém a trabalhar com as minhas cenas, mas agora, com este álbum, pensei mesmo “já chega de estar sozinho, eu às vezes preciso de uma ajudinha” e queria muito ter a cena de alguém entrar numa produção minha. Além de mc/rapper/cantor, whatever, sou produtor e acho que essa é a vertente que quase toda a gente mais aprecia na minha música e eu queria bué meter artistas na minha produção para ver o que poderia acontecer.

Tu já disseste, em entrevista para o Rimas e Batidas, que demoraste um ano a fazer o Valsa até ao Fim, o que significa que este álbum ainda apanhou uma parte agressiva da pandemia, algo que está em comum com o 100 sonhos, gravado e escrito num outro confinamento. Dito isto: crês que os tempos pandémicos te moldaram enquanto artista?

M – Sim [risos]. Sim, claro. Moldaram-me muito enquanto pessoa, também, mas não consigo explicar como.

Como ficou a interligação entre a pessoa e o artista?

M – Como assim?

Por exemplo, numa entrevista ao jornal da UBI, na era do 100 sonhos, disseste que te focavas demasiado no “eu”, e que talvez devesses parar de ficar tão focado em ti mesmo na tua música. No entanto, este álbum parece ainda focado no “eu”. Qual a relação para esta interligação entre os dois “eus”? Continuas com essa mentalidade de tentar mudar o teu foco para algo além de ti mesmo?

M – Este álbum é claramente muito sobre mim e sobre muita coisa que se passou comigo, mas ao mesmo tempo não o é. Por exemplo, o “anjoANJO”, além de ser sobre mim, é também sobre uma pessoa importante para o Miguel e eu acho que é o som que está mais fora dessa cena de me focar em mim e na minha história. Pá, mas ya, é algo de que eu não consigo fugir. É o que eu estou a experienciar: eu escrevo sobre mim e sobre visões de um futuro melhor ou pior e eu acho que a minha música vai ser sempre assim, apesar de eu ainda querer explorar o surrealismo na minha escrita e criar mundos através do que eu escrevo. Aliás, acho que já criei alguns mundos sonoros neste álbum, mas acho também que a minha música vai estar sempre conectada comigo e com aquilo que eu estou a viver no momento.

Tanto no Rimas e Batidas como no jornal da UBI, disseste que não és exatamente muito fã dos teus projetos mais antigos. No entanto, achas que existe algo que fazias no teu primeiro EP [sobre viver] – ou no teu remix de Lil Nas X [risos] – que ainda hoje adotas no teu processo criativo?

M – O processo de fazer música é parecido: sou só eu a tentar perceber o que está a acontecer à frente dos meus olhos durante várias horas [risos].

O que continua dos meus trabalhos antigos? Não sei.. Eu sinto que todo o trabalho que eu fiz até aqui é um crescimento do que fiz anteriormente e que em cada projeto eu tenho pedaços daquilo que fiz antes, mas construídos de outra forma: com mais qualidade e detalhe. Até porque eu estou a aprender a fazer as coisas soarem melhores.

O que ficou do início? Talvez a rawness. Consegues notar que foi gravado com um microfone não muito bom e numa sala não protegida. Mesmo no Valsa até ao Fim, sinto que os sons são mais… vá, profissionais. Mesmo assim, consegues notar a estética de “isto foi feito no meu quarto”. Isso é importante para mim: o Do-It-Yourself.

Apesar disso, sempre melhoraste e quiseste explorar coisas novas. Por exemplo, nos teus projetos anteriores havia, na mesma, um certo experimentalismo, mas notavam-se algumas vibes mais r&b e com um bocadinho de rap californiano (especialmente no teu primeiro EP). No fundo, foste ficando cada vez mais abstrato, roçando quase o industrial no Valsa até ao Fim. Já para não falar do flow mais agressivo e confiante. Como descreves essa transformação e o que te fez ir para uma vibe mais industrial?

M – Tem muito a ver com o que tenho andado a ouvir. É tudo vibes um bocado mais grime-y. Kanye West foi uma influência gigante para mim como artista desde sempre, mas agora este álbum foi muito mais focado no Yeezus. Tentei incorporar essa estética na minha e tentar fazer fluir essas duas coisas.

Eu tentei realmente ir para o abstrato e para o industrial, que é uma cena que ainda quero explorar ainda mais. Isso tem também a ver com o que está a acontecer no mundo da música, principalmente no hip hop experimental, que é uma introdução dessa vertente bué industrial nos sons. Apesar de achar que fiz uma cena diferente, é o que está a acontecer agora no género.

Além do hip hop, há outros géneros musicais que estejam a influenciar o teu processo criativo?

M – Sim, muito. Eu acho que todos os géneros musicais kinda que me influenciam. Agora ando muito na vibe de música brasileira. Ando a malhar completamente nessa cena e quero tentar meter isso com o meu twistzinho. Mas o rock foi sem dúvida o género musical mais importante para além do hip hop. Eu ouço rock mais agressivo, mas ouço também indie rock e cenas mais alternativas. Também tenho uns toques de pop, sem dúvida: um pop mais indie, kinda. É mais por essas vibes que eu andei ao longo deste álbum.

Ou seja, o teu objetivo é tentar incorporar cada vez mais esses teu hábitos musicais para criar música mais eclética, sempre moldando-te no processo.

M – Ya, é o que eu tento fazer com a minha música, em geral: construir sobre o que já fiz antes e adaptar-me a outros géneros e a outras coisas que eu ando a ouvir e que penso “tenho que fazer alguma coisa com esta cena. Isto é mesmo fixe e quero dar um twistzinho”.

E o que mais tens ouvido nestes últimos tempos?

M – Vais me obrigar a ir ao Spotify [risos].

Força [risos].

M – Pá, então… Não sei se já ouviste falar de um álbum que saiu há pouco tempo, chama-se Valsa até ao Fim [risos].

[Risos] Não, mas já me disseram para ouvir [risos]. Dizem-me que está fixe.

M – [Risos]. Mas a sério: tenho ouvido um álbum brasileiro de dois artistas, o FBC e o Vhoor. Chama-se Baile e é fenomenal. Acho que é um álbum mesmo incrível que transforma o trap numa cena mais divertida. É muito bom e fiquei surpreendíssimo com este projeto.

Ouvi também o álbum do Pedro Mafama [Por este rio abaixo], que é fantástico: um dos melhores projetos em Portugal feito nos últimos tempos. Os Fumo Ninja estão também a fazer uma coisa muito fixe com Olhos de Cetim. Eu ouvi pela primeira vez enquanto estava a pintar e fiquei muito feliz com o álbum: é fantástico. Also, adoro a capa. É mesmo incrível.

Epá, não tenho andado a ouvir muita coisa porque ando em processo de mudanças. Está tudo um bocado confuso e não tenho tido assim muitas oportunidade, mas tenho de ouvir o álbum do Pusha T [It’s Almost Dry: Pharell vs. Ye], já ouvi falar muito bem daquilo. Tenho de ouvir também o novo álbum das Wet Leg. Já ouvi um som ou dois e deixou-me muito ansioso para ouvir o resto.

Sim, as Wet Leg parecem ir buscar um indie que agrada tanto aos que ouvem indie mais comercial como aos hipsters.

M – Sim, exato. Eu ouvi um ou dois sons e fiquei: “ya, estão aqui a fazer uma fusão muito interessante, mesmo”.

Mudando um bocadinho de assunto: sendo tu ex-estudante de Cinema na Universidade da Beira Interior e consequentemente tendo uma quanta experiência em fazer filmes, como conseguiste transferir a narrativa cinemática para a música, tanto instrumentalmente como liricamente?

M – Eu sinto que é uma coisa que consigo fazer bastante naturalmente e acho que o faço em todos os meus sons. Eu consigo criar um ambiente visual a partir do que eu faço e muitas vezes sinto que crio pequenos mundos e momentos cinematográficos, especialmente na faixa “insecto frágil”, deste último álbum: acho que é um dos sons mais cinematográficos que alguma vez fiz. Para mim, aquele som é uma curta metragem. Tipo, dura um minuto mas sinto que vivo lá durante vinte minutos, estás a ver? Estou a viver naquela melodia e estou só a flutuar por aquele mundo. Gosto muito de fazer isso, mas não é uma cena que eu faça propositadamente. Acho que é só por ver muitos filmes e eu acho que todas as artes que eu consumo vão transparecer na música que faço.

E o que é que a Covilhã te ensinou ao longo dos quatro anos em que lá moraste e como vês o setor cultural da cidade?

M – Eu acabei de me mudar há dois dias para a minha cidade, as Caldas da Rainha, e eu chego cá e estão a haver sete fucking eventos culturais pela cidade inteira no span de uma semana e fiquei overwhelmed. É muita coisa a acontecer e não estou habituado a isto. Eu gosto muito da Covilhã. É super peaceful e isso é mesmo incrível. Aliás, um sítio que me dá bué inspiração a fazer música, mas ao mesmo tempo está muito parado a nível cultural… e é uma pena, porque é uma cidade com muito potencial, mesmo.

Especialmente com a comunidade estudantil de lá, que não se fica só por comercialismos de discotecas como a Ex Libris e etc…

M – Certo. Mas para além disso tens alguns movimentos estudantis que tentam fazer alguma coisa mas não há uma base grande suficiente e eu sinto que há um público alvo suficientemente grande para se investir nisso.

Achas que a reabertura recente do Teatro Municipal da Covilhã – que tem apostado em dança contemporânea, teatro e música que vai desde o mais mainstream de Sérgio Godinho aos experimentalismos do Francisco Cipriano – pode ser o início de uma exploração desse potencial que achas que a Covilhã tem lá escondido?

M – Acho que sim, é possível, mas ao mesmo tempo é preciso movimentos feitos por artistas. É preciso apoio por parte da cidade, mas acima de tudo é preciso haver um quanto Do-It-Yourself. Acho que a arte desenvolve-se muito a partir da colaboração entre artistas.

Para terminar: qual é o teu objetivo como artista daqui para a frente?

M – É ver o que acontece, honestamente. Agora, quero viver mais um bocado da minha vida e tentar crescer mais um bocadinho para poder voltar a fazer música e falar acerca do que tem acontecido. Quero voltar a explorar mais géneros, quero produzir e fazer colaborações com outros artistas. Gostava mesmo de, talvez… sei lá, fazer projetos em conjunto com outros artistas e ser toda uma outra persona além de mim. Há tanta coisa no mundo da música que ainda quero explorar, mas especialmente a parte da colaboração: acho que me faz crescer muito e sinto que tenho muito mais que aprender com toda a gente, ainda por cima com esta comunidade gigante de artistas que anda a crescer cá em Portugal.

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