MUPA’22: à descoberta de uma nova realidade cultural
MUPA’22: à descoberta de uma nova realidade cultural
MUPA’22: à descoberta de uma nova realidade cultural
A cidade de Beja recebeu, de 22 a 26 de junho, a 3ª edição do MUPA – Música na Planície. Face a edição limitada de 2021, motivada pelo contexto pandémico, o MUPA’22 decidiu aumentar a parada, com uma programação mais vasta, distribuída por vários locais emblemáticos da cidade. A reportagem que se segue não se trata de um relatório exaustivo de tudo o que experienciámos nesta cidade, mas sim uma compilação dos melhores momentos.
22 de junho
O festival arrancou calmamente n’A Pracinha, cafetaria, livraria e mercearia bio, com um dia dedicado às exposições de Vilas e Cláudia Sofia e à visualização do documentário Batida de Lisboa, realizado por Rita Maia e Vasco Viana e estreado no IndieLisboa 2019. Um dia que nos permitiu ambientar à cidade e às suas rotinas. Batida de Lisboa é um documentário que nos leva a conhecer as fundações da música de dança criada nos subúrbios de Lisboa por artistas de diferentes gerações, oriundos de países de expressão portuguesa, como Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné Bissau, inspirados pelas tradições musicais que lhes são familiares, assim como a dura realidade segregatória que têm de enfrentar diariamente. Editoras e promotoras como a Príncipe Discos, SAF e Celeste/Mariposa são retratadas no documentário através de testemunhos de DJ Marfox, DJ Nigga Fox, Deejay Teelio, Deedz B, Vado Mas Ki Ás, assim como de antigos músicos conceituados, como Julinho da Concertina, e são exemplos de como as comunidades se podem unir para combater este estigma e celebrar a vida. Apesar de pouco valorizada e compreendida fora das suas comunidades, a obra destes artistas é altamente aplaudida no estrangeiro.
23 de junho
O segundo dia de festival ficou marcado pela aposta na música de cariz imersivo, refinado e orgânico. Clothilde, projeto de Sofia Mestre baseado na manipulação de sintetizadores modulares, foi a primeira atuação a que tivemos o prazer de assistir no Salão da Santa Casa da Misericórdia. O ruído estrutural de baixas frequências moldou-se em torno da hipersensibilidade do improviso elétrico, do crescendo de vibrações e tonalidades, das oscilações e melodias. Ao longo da atuação houve uma procura pelo equilíbrio entre as baixas e as altas frequências, culminando numa descompensação entrópica.
Riccardo La Floresta foi quem se seguiu. O artista de Modena, Itália, propôs-se a reinventar a sonoridade produzida pela bateria e assim nasceu o “drummophone”, instrumento que tem vindo a aprimorar ao longo da sua carreira. Antes de iniciar a performance, Riccardo explicou o funcionamento do instrumento: recorre a compressores que levam à vibração da pele de quatros tambores, todos eles diferentes entre si, convertendo os tambores em instrumentos de sopro; aconselhou-nos também a mover-nos pela sala para estarmos expostos a diferentes impressões. À medida que as ressonâncias iam sendo produzidas, o artista influenciava a quantidade de ar que chegava aos tambores, assim como a sua afinação. O som liminar resultante transportou-nos para o domínio do transe, revelando-se como uma experiência sensorial elevada ao expoente, com o batimento cardíaco a alinhar-se com a vibração gerada pelos quatro tambores.
A noite no salão terminou com o fruto da residência artística de Tellurian, projeto que uniu ao longo de cinco dias Carincur, João Pedro Fonseca (Zabra) e o Coro do Carmo de Beja, com a premissa de idealizar uma realidade alternativa em que “as correntes tradicionais mais ligadas à matéria orgânica” coexistem com as “correntes contemporâneas ligadas ao digital”. O concerto iniciou-se com as atmosferas incisivas e tenebrosas de Carincur e João Pedro Fonseca, mergulhadas em vermelhidão. Os vocais hauntológicos e a percussão violenta, similar a uma trovoada cuja frequência vai aumentando, vieram conferir maior intensidade à atuação, antes do coro de 10 vozes entrar em palco. O elemento ritualista assumiu o seu lugar, a luz que assolava os artistas era agora branca e as palavras proferidas pelo coro eram completamente irreconhecíveis, após serem filtradas pelos mecanismos digitais de produção. As vozes tornaram-se cada vez mais familiares ao ouvido, refletindo um momento de acalmia, que rapidamente se transformou em confusão, banhada novamente pela luz vermelha. A desorganização de texturas e vozes, suportada pelos risos demoníacos do coro, trouxe consigo a percussão forte e seca que marcara o início do concerto, instalando o caos total. Foi com a interpretação de “Meu Lírio Roxo do Campo”, protagonizada apenas pelo coro, sob uma luz também ela roxa, que o concerto chegou ao seu fim. São iniciativas destas que permitem revitalizar a cultural popular e tradicional e trazê-la tanto para o presente como o futuro.
24 de junho
A noite de sexta-feira desenrolou-se no Campo de Jogos do Bairro da Conceição e teve como protagonista Aya. Muito comunicativa, a produtora de Manchester, anteriormente conhecida por LOFT, advertiu o público de que iria interpretar música de dança, ou pelo menos iria tentar, dado o experimentalismo da sua eletrónica desconstruída presente em im hole, disco de estreia editado em 2021 pela conceituada Hyperdub. “somewhere between the 8th and 9th floor” abriu a atuação, uma introdução do que poderíamos esperar nos próximos 40 minutos. Ritmos acutilantes e imprevisíveis, texturas frias, clínicas e atmosféricas pautaram a performance de uma artista exultante em palco, que a certa altura desbravou caminho até ao público para se sentir rodeada pela euforia dos presentes. Do alinhamento fizeram parte temas como “what if i should fall asleep and slipp under”, dis yacky”, “the only solution i have found is to simply jump higher”, “Emley lights us moor”, que conta com o participação vocal de Iceboy Violet em estúdio. Foi também possível escutar uma versão drum’n’bass de “If [redacted] Thinks He’s Having This As A Remix He Can Frankly Do One” e ainda a reinterpretação do “B£E”, tema da autoria de Space Afrika e Blackhaine, artistas com quem a produtora tem fortes laços de amizade.
Por volta da meia noite subiu a palco o produtor britânico Rian Treanor, filho de Mark Fell, nome fortemente ligado à conceptualização e desconstrução sonora da cultura techno/rave. Rian seguiu as pisadas do pai na reimaginação da cultura clubbing, brindando o público com um som altamente disruptivo e polirritmado, que bebe das influências IDM, drum’n’bass, singeli e footwork, as duas últimas frutas da residência artística no Boutique Studio do coletivo Nyege Nyege em 2018, e do seu interesse em conferir uma ótica futurista à música de raízes africanas ancestrais.
A noite prosseguiu com dois artistas ligados a Nyege Nyege. O primeiro em acção foi De Schuurman, discípulo do bubbling house, género que nasceu nos anos 80 a partir de um pequeno lapso do DJ Moortje, assumindo-se uma parte crucial da identidade dos clubes afro-diaspóricos dos Países Baixos. O produtor neerlandês trouxe consigo Bubbling Inside, disco que compila faixas produzidas diretamente para as pistas de danças entre 2007 e 2009, tal como uma dança bem peculiar em que o seu braço estava praticamente agarrado ao deck enquanto movia o resto do corpo. Os ritmos borbulhantes revestidos por samples de R&B, synths de trance e oscilações de electrohouse e dancehall levaram a malta presente no Campo de Jogos do Bairro da Conceição ao delírio, principalmente quando se escutou a rendição de “Satisfaction” de Benny Benassi.
A pista de dança já estava em polvorosa e DJ Diaki veio atear completamente o rastilho. Antes de iniciar a sua atuação, o muito bem-disposto DJ e jornalista do Mali assegurou que era louco e que a música que iria passar naquela noite seria também ela completamente tresloucada. Diaki é um dos maiores representantes do Balani Show, uma forma intensa de música eletrónica de dança que pretende estreitar a lacuna entre o tradicional e o moderno. Suportada pelo balafon, um grande xilofone feito de armação de bambu e com teclas de madeira, criado no Mali no século XIV, o Balani Show tem “sonorizado as festas e celebrações nas ruas de Bamako, capital do Mali, desde o final dos anos 90” e em Beja não foi diferente. Foram sensivelmente 90 minutos de música rave caótica, alucinada e transcendente, com diferentes ritmos tocados ao mesmo tempo, na ordem dos 180 a 200 bpms.
25 de julho
O pátio exterior da Capela de Nossa Senhora da Piedade acolheu as festividades no sábado. Com a torre do Castelo de Beja a servir de cenário, entraram em palco os África Negra. Compostos atualmente por seis pessoas (voz, duas guitarras, bateria, baixo e percussão), mantendo apenas da formação original o vocalista “General João Séria” e o guitarrista Leonildo Barros, os África Negra contam com mais de 40 anos de história. Embaixadores do som de São Tomé e Príncipe, ajudaram a fomentar uma identidade cultural numa jovem nação independente. Na bagagem trouxeram Antologia Vol.1, compilação assinada pela Bongo Joe Records, onde foram incluídos temas antigos e descatalogados, remasterizados a partir de bobines originais. Ao longo de duas horas o pátio tornou-se num autêntico fundão – bailes ao ar livre que uniam as comunidades locais em torno da Rumba e do Puxa, realizados entre 1972 e 1974, época em que a ilha ainda estava sob a ocupação das forças portuguesas. O concerto começou de modo lânguido, com uma espécie de jam session, indo de encontro ao mood do público ainda cansado do dia anterior. No meio de algumas dificuldades técnicas (a corda de uma das guitarras partiu-se), a banda foi subindo o tom de alegria e entusiasmo com as suas canções que retratam histórias de amor e de vivência diária. Do alinhamento de 22 de canções, escutaram-se temas como “Alice” e “Madalena Meu Amor”, interpretada pelo “General” e entoada pelo público. O concerto terminou com o “General” no meio do público, num momento bem íntimo, a extrair os melhores passos de dança de cada um e a estender o microfone a quem quisesse cantar. “Viva Portugal, Viva São Tomé, somos todos irmãos”, foi assim que os Africa Negra se despediram após uma impressionante atuação em que não lhes faltou o fôlego.
Após o jantar, foi a vez de Ghoya entrar em ação. Rapper e ativista cabo-verdiano, Ghoya faz uso de uma voz potente para cantar em crioulo. Co-fundador do grupo Mentis Afro no ano de 2007, lançou o seu disco de estreia a solo em 2009, 1 Vida So Ka Ta Txiga, o que lhe valeu um lugar de destaque no panorama do rap nacional. Após uma pausa forçada de 10 anos, Ghoya voltou ao estúdio para gravar “Erranti”. Com um excelente flow e produção, a curta atuação foi marcada por canções escritas há 15 anos, que representam a tomada de ações face à adversidade e as consequências que daí advêm. A certa altura, o artista confessou-se emocionado e agradecido à sociedade por poder “cantar crioulo em Beja”, sem esquecer todo a luta e o sacrífico que lhe permitiram chegar aqui. Comovido, abandonou o palco abruptamente, mas após um pedido bem caloroso do público, acabou por voltar. Neste regresso, Ghoya lançou o repto ao público para que quem o quisesse acompanhar em palco num próximo tema, este seria o momento. Um rapaz decidido aventurou-se em palco e pode-se dizer que soube estar à altura dos acontecimentos. O concerto terminou logo após e Ghoya agradeceu do fundo do coração aos presentes.
A noite fria que se fazia sentir encerrou com as atuações incendiárias de dois artistas da Jokkoo, coletivo artístico musical sediado em Barcelona, fundado em 2017 com o intuito e a necessidade de explorar e difundir a eletrónica contemporânea e vanguardista do continente africano e da sua diáspora. Mbodj, alter-ego de Maguette Dieng, foi a primeira a subir a palco, iniciando o seu set com ambiências barbitúricas, ricas em ritmos dub e dotadas de um bass bem pesado. Os momentos cadenciados foram gradualmente transformados numa desordem transgressiva, atingindo por vezes a crueza típica das sonoridades pós-industriais. Foi neste mesmo registo que Baba Sy entrou a pés juntos. A agressividade subiu de tom, aproximando mesmo do noise, com alguns vocais de grindcore à mistura, do som típico da Durban House, dando também uma perninha à batida e ao repertório da Tia Maria Produções. Foi mesmo daqueles casos em que afirmamos “minha nossa, este homem está a partir tudo”.
26 de julho
O último dia do MUPA decorreu na Associação Dadores de Sangue, inserida no Bairro Social. Sendo este um dos dias gratuitos do festival (a par de quinta-feira), juntaram-se muitos vizinhos curiosos para assistir às festividades, enquanto matavam a fome com as bifanas ou as sardinhas que ali mesmo estavam a ser assadas e a sede com a clássica imperial, qual arraial qual quê. DJ STA, artista de Beja, foi a primeira a atuar e trouxe consigo uma vibe super bem-disposta. Passando pela afrohouse, batida e algum funk, nomeadamente a versão da radio-friendly “How Deep Is Your Love?”, STA açucarou a tarde de todos os presentes e abriu a pista da melhor maneira.
Seguiu-se a rainha do drill tuga, Cookie Jane. Com o apoio de Phoebe (Bruno Trigo Gonçalves) nos decks, Cookie percorreu os singles editados entre 2020 e 2021 – “Enemies Aplaudem”, “RDD”, “Lucy” e “Trudumtumtum” – sempre um com um flow impecável, a sacar rimas como “Rainha não é só sentar no trono”. Apesar de curta, a atuação foi bastante agradável e ninguém no público ficou indiferente à simpatia da artista.
Föllakzoid subiram a palco por volta das 21h15. A banda chilena era a principal atração do dia, sendo a presença no MUPA uma datas da digressão europeia de apresentação de I, disco lançado em agosto de 2019, prevista para o início de 2020. O trio liderado por Domingæ García-Huidobro atuou no dia anterior na ADAO, no Barreiro. Percorrendo os quatros temas que compõe I, os Föllakzoid fizeram jus à ancestralidade que os define, uma linguagem musical que se rege pela aproximação a um estado de transe. A introdução temorosa, instigada pela bateria precisa e matemática e pela eletrónica sombria, abriu alas à guitarra de Domingæ, que se juntou aos outros elementos da banda uns minutos mais tarde. Os movimentos delicados e audaciosos de Domi, enquanto fumava elegantemente o seu cigarro, contrastavam com o drone primordial da sua guitarra, ora envolto em reverb ora em phaser. Ao todo foram 40 minutos de krautrock e minimalismo muito bem executados, mas que no fundo souberam a pouco pela curta duração do concerto.
Quando DJ Firmeza entrou em palco já o sol se tinha posto. A incontornável figura da Príncipe Discos veio encerrar da melhor maneira a festa no bairro, deixando o público completamente rendido a seus pés, desde os miúdos, que seguiam de perto tudo o que produtor fazia, até aos graúdos, que estavam completamente exuberantes. Não era só nos decks que Firmeza dava tudo com os seus beats hipnóticos e crus. Era também com as suas danças vibrantes, agitando no ar freneticamente a toalha que usava para limpar o suor, como se o seu clube tivesse acabo de vencer o título nacional. Infelizmente, a sua performance teve de ser encurtada devido à hora tardia em que nos encontrávamos. Fica o registo da excelente celebração da música de dança.
Terminada a 3ª edição do MUPA, queremos expressar o nosso agradecimento a todos aqueles que nos acolheram tão confortavelmente nesta cidade. Tivemos o prazer de experienciar um cartaz alicerçado nos coletivos mais relevantes da música de dança dos últimos anos – Príncipe, Nyege Nyege e Jookol; conhecer artistas que apostam em modos de composição baseados no improviso e no desvio à norma; testemunhar a força de bandas consagradas com carreiras que se estendem por muitas décadas; sentir a simbiose entre sonoridades contemporâneas e tradicionais. Foram cincos dias que nos deixaram com vontade de voltar a futuras edições, de partilhar com os nossos amigos o quão ótima foi esta experiência em Beja, cidade que luta arduamente por trazer cultura de valor para os seus habitantes, e o quão profissional foi toda a organização. Até à próxima, MUPA!
Fotografia: Henrique Horta, Bruno Soares