Pedro Branco em entrevista: “A música entrou não muito cedo na minha vida mas entrou de forma intensa”
Pedro Branco em entrevista: “A música entrou não muito cedo na minha vida mas entrou de forma intensa”
Pedro Branco em entrevista: “A música entrou não muito cedo na minha vida mas entrou de forma intensa”
Pedro Branco é um músico e guitarrista lisboeta cujo percurso artístico passa pela sua envolvência em diversos projetos – faz parte das bandas que acompanham Tiago Bettencourt, Marinho, Nadia Schilling, Pedro Lucas. Já partilhou palcos com Noiserv, Lena D’Água, Benjamin e Salvador Sobral. Nas lides jazzísticas, já integrou um duo com o contrabaixista João Hasselberg e o projeto Old Mountain, com o baterista João Sousa. Atualmente é um dos Charlies dos You Can’t Win, Charlie Brown.
A vontade de se lançar a solo e mostrar de que era feito musicalmente esteve lá desde sempre. A pandemia e o regresso a casa dos pais foram o catalisador crucial para o artista encontrar o tempo necessário para se focar em si e na sua capacidade de composição, num processo de aprendizagem solitária e de descoberta. Reuniu toda a música que já tinha escrito e gravado até à data e dedicou-se a idealizar música nova. Desta aventura nasceu A Narrativa Épica do Quotidiano, ethos de Pedro Branco.
No passado mês de junho trocámos umas impressões com o artista acerca do seu disco de estreia a solo, a metodologia de exploração e autodidatismo que o guiou, a experiência estimulante nos You Can’t Win, Charlie Brown, a arte de viver apenas da música, entre outros.
De modo a iniciar esta entrevista, gostava de ficar a conhecer um pouco melhor o teu extenso passado musical. Tudo começou com a guitarra, que entrou na tua vida por volta dos 12/13 anos. Seguiu-se uma licenciatura em Jazz e Música Moderna, na Universidade Lusíada, em Lisboa, e um mestrado em Performance Jazz, no Conservatório de Amesterdão. O que despertou a devoção pela música? Foi algo imposto desde cedo pela família e que mais tarde se transformou numa vocação? Quando é que soubeste que era isso que querias fazer na vida?
Pedro Branco: A música entrou não muito cedo na minha vida mas entrou de forma intensa. A memória de receber a minha primeira guitarra e de imediatamente começar a procurar sons e a encontrar formas de fazer pequenas canções e melodias que me faziam sentido está muito presente. A guitarra serviu para imediatamente existir em vida real coisas que estavam na minha cabeça, mesmo que fossem melodias inocentes ou trechos musicais não particularmente interessantes. Ninguém na minha família estava ligado à música, quer direta ou indiretamente, por isso todo o meu percurso inicial foi muito autodidata, até entrar para a primeira escola de música, mas mesmo aí sempre fiz um percurso meio iconoclasta. Por volta dos meus 18 anos decidi que ser músico era o que queria da vida e tinha que trabalhar a todo o custo para acontecer, e foi aí que enveredei pela fase mais académica da minha vida. Estou muito grato por todas as experiências que a escola me deu, apesar de lhe conseguir reconhecer ainda muitos defeitos.
Retratando o teu percurso artístico, integraste um duo com o contrabaixista João Hasselberg, o projeto Old Mountain com o baterista João Sousa, a banda do Tiago Bettencourt, o que representou uma mudança face ao já que tinhas consolidado na tua carreira até à data, e isso abriu-te as portas para tocares nas bandas da Lena D’Água, Benjamin e Salvador Sobral. Atualmente fazes parte dos You Can’t Win, Charlie Brown, aos quais te juntaste em 2019, nos concertos de celebração do 10º aniversário. O que te levou a quereres lançar-te em nome próprio nesta fase da carreira?
PB: Já há muito tempo que queria lançar algo em nome próprio sem ter que depender de alguém para o fazer. Escrevo canções já há muito tempo e tinha muita coisa na gaveta. A pandemia veio-me trazer tempo e uma necessidade de ter que me abstrair de uma realidade que não estava nada a ser fácil de lidar. Há muita coisa muito bonita em tocar música de outras pessoas e dar-lhes um bocadinho de nós, é algo que adoro fazer. Ir para a estrada com os meus melhores amigos também é fantástico. No entanto há algo em lançar algo que é completamente nosso que não é possível encontrar de outra forma, a não ser de facto fazê-lo. Existe um liberdade de processos e uma razão para o fazer quase poético que vem de um sítio diferente, mais urgente no meu caso. A razão para fazer a música é quase inevitável, é só descobrir o meio, o caminho e o canal para a fazer.
Se pudesses descrever a tua sonoridade em pouca palavras, o que dirias?
PB: Apesar de não me agradar muito dar rótulos à minha música (ou a qualquer uma na verdade), mesmo sabendo que os mesmos são necessários em parte, não consigo encaixar a minha música, particularmente a deste disco, em nenhum sítio. Maioritariamente é música instrumental, apesar da vozes que de vez em quando aparecem, e vai beber a muito sítio. Foi um disco feito de forma honesta e a querer expressar muita da inquietude que ia e vai na minha cabeça. É um retrato do tempo que estava a viver, quer pessoal quer como o ambiente em que estava inserido. O facto de me ter quase obrigado a usar a minha primeira guitarra clássica moldou talvez um pouco o som do disco, mas o que pode ser visto como uma limitação penso que deu direção. Podes explicar um pouco do conceito por detrás de A Narrativa Épica do Quotidiano e da mensagem que pretendes transmitir com o teu disco de estreia?
PB: Durante muito tempo pensei muito a que soaria o meu disco de estreia a solo. Lembro-me de a certa altura escrever algumas peças para octeto, depois andei a experimentar muita eletrónica. Pensei em vários músicos para se juntarem, mas por alguma razão nunca consegui recolher material suficiente para sentir que tinha um disco que valesse a pena pôr cá fora. No início da pandemia comecei a gravar algumas ideias com o telefone, e aquele som fascinou-me. Uma crueza e personalidade que de repente davam vida a muitas das minhas ideias musicais, e decidi que esse poderia ser o caminho para me entreter naquelas horas infindáveis, no entanto nunca pensei que isso pudesse dar um disco que valesse a pena acabar sequer. Por alguma razão comecei a mostrar algumas das gravações ao Salvador (TIPO) e ao David (Noiserv) e eles deram-me um grande empurrão para acabar aquilo e trabalhar ainda mais. Eu não sentia a confiança necessária para achar sequer que aquilo podia ser o meu disco de estreia.
Quando o Salvador me disse que andava a ouvir o disco em loop e que andava completamente viciado pensei que talvez tivesse ali alguma coisa que fizesse sentido partilhar, e depois foi só trabalhar para que acontecesse. Quanto à mensagem, não há grande mensagem, é só o mesmo objetivo de sempre: tentar fazer a música mais bonita e profunda que estiver ao meu alcance e tentar ser verdadeiro em cada nota que dou, sem artifícios ou atalhos.
Numa entrevista que deste recentemente, reforças a ideia de que o disco não pretende “romantizar a pandemia”, e que funciona melhor como um regresso simbólico a um local onde cresceste e aprendeste a tocar. Sentes que terias editado na mesma o disco se não fosse esta conjugação da pandemia com o retorno a casa dos pais?
PB: Essa afirmação surge de muitas das conversas que surgiram durante a pandemia até sobre saúde mental, o termos de ser produtivos à força, o estar ligados mas separados. Os músicos sentiram uma grande pressão para continuarem a ser relevantes, toda a gente mostrava o que andava a fazer num espetáculo quase absurdo. Eu não acho que as pessoas tivessem que ser produtivas na pandemia, eu só o fui porque dependi disso para equilibrar a minha saúde mental. Foi uma espécie de lugar seguro que consegui encontrar. Este disco como ele existe não teria existido de todo, teria editado outra coisa qualquer, mas este disco foi o resultado de muitas escolhas que fiz ao longo dos anos, que culminaram numa situação que espero que nunca mais se repita.
A criação de A Narrativa Épica do Quotidiano foi bastante autodidata e tiveste mesmo de aprender de raiz todo o processo de gravação. Podes-nos falar um pouco mais sobre isso?
PB: A minha primeira ideia era pôr umas gravações no Bandcamp só com voice memos do telefone. Depois à medida que fui trabalhando nas canções comecei a pensar que era quase um desperdício usar aquele material daquela forma, até porque muitas das malhas pediam outros arranjos e outros instrumentos. O único problema é que não tinha forma de gravar a não ser com uma mesa de mistura que não funcionava bem e um microfone péssimo, por isso dei por mim a comprar algum material (também muito barato obviamente) e a experimentar por mim mesmo gravar as minhas ideias. Foi um processo muito inspirador e recompensador também, percebi algumas coisas que não sabia como funcionavam até então e tive que explorar quase outras formas de pensar a música. Fez-me redefinir e descobrir muita coisa no meu som de guitarra e no meu approach ao instrumento. Acabei por também misturar o disco quase sem o querer fazer. Tive a ajuda preciosa do Nuno Monteiro para finalizar umas coisas na mistura e depois também com o seu trabalho brilhante de masterização. Nunca pensei que pudesse gravar e misturar o meu próprio disco, mas a verdade é que acho que lhe deu um som muito característico do qual estou orgulhoso, que não poderia ter sido atingido se não tivesse feito esse caminho sozinho. A experiência nos You Can’t Win, Charlie Brown foi muito benéfica e deu-te maior confiança na escrita e na capacidade de usares a voz. Neste primeiro registo em nome próprio cantas em músicas como “Faixa Certa” e “Cinco Minutos Antes”. O que te levou a apostar na tua voz sem estares rodeado do habitual coro de vozes dos YCW,CB?
PB: Já há algum tempo que andava a tentar escrever canções, quase desde a altura em que escrevi para o Afonso Cabral no meu disco com o João Hasselberg (“Eyes From Above” do disco Dancing Our Way to Death). Quando começámos a escrever o disco de Charlies comecei a ter uma razão para explorar novamente a escrita de canções com letra e duma forma que ainda não tinha feito muito na minha carreira. Uma das ideias foi a “Composição da Fuga” que surgiu mais ou menos na mesma altura mas achei que não encaixava muito no universo de YCW,CB. A “Cinco Minutos Antes” surgiu quase como uma piada quando o David me desafiou para fazermos um hino para a equipa de basquetebol onde ele jogava na altura, e eu fiz logo os acordes como ficaram na música. Infelizmente achámos que não era material para hino então seguimos outro caminho, mas eu sempre tive muito carinho por aquela ideia de o ter a cantar no meu disco, então acabámos por fazer a letra a meias e ele a melodia vocal que canta.
Sem YCW,CB provavelmente eu não teria a coragem para cantar, eles deram-me sempre muita confiança e muita escola de certa forma. Eu passei de não cantar a cantar uma terceira voz enquanto toco um riff complicado de tocar. Tive que estudar diariamente como não o fazia há já muito tempo, foi como aprender um novo instrumento que não sabia que tinha. A clausura e a solidão da pandemia, bem como alguns relacionamentos falhados (olá clichês) também fizeram com que sentisse a necessidade de dizer algumas coisas nas canções que não diria na vida real, o que também ajuda a vincar aquela marca do tempo tão forte do disco.
Faixas como “Lisboa”, “Composição de Fuga” e “Norman” foram aquelas que mais gostámos de ouvir no disco. Podes-nos contar um pouco mais sobre elas, e já agora, sobre a escolha dos títulos das músicas que compõe o disco?
PB: A “Lisboa” e a “Norman” foram músicas repescadas do tal meu disco com o João Hasselberg, e que eu decidi regravar porque achei que encaixavam perfeitamente no ambiente e na estética deste disco. A “Norman” aliás tinha um nome bastante mais comprido mas encurtei para ter títulos só em português e um nome próprio neste caso. Adicionei alguns elementos para lhes dar uma nova vida quase, e para não se tornarem num objeto redundante. A “Composição da Fuga” foi uma música que surgiu enquanto andava a tentar escrever para YCW,CB e que acabou por ficar para o meu disco a solo. Foi um processo oposto à “Clemência”, que era suposto ficar para o meu disco a solo e depois ficou para Charlies. A beleza das canções é que muitas vezes são elas que escolhem o seu próprio caminho. Quando escrevi a canção imaginei a voz da Angel Olsen a cantá-la, então sempre tive como referência uma voz feminina para a música. Infelizmente não consegui uma voz feminina que a quisesse cantar então acabei por ser eu, mas sentia que faltava qualquer coisa.
Por ter sido uma presença tão importante durante o processo inicial do disco e por me ter dado tanta confiança até na questão de utilizar a minha voz decidi desafiar o Salvador a cantar. Ele felizmente aceitou e a primeira gravação que ele me mandou foi a que ficou no disco. A forma como as nossas vozes combinam deixa-me muito feliz, porque ele compensa a fragilidade da minha voz com um timbre lindo que enche qualquer sala. Quanto aos títulos das músicas, muitos deles são completamente aleatórios e são só palavras que eu gosto de ouvir juntas, outras têm um significado bastante literal e outras só a representação de uma ideia através de uma metáfora que me fizesse sentido. Não gosto muito de dar títulos que prendam as pessoas a uma imagem, gosto que seja o ouvinte a criar essa mesma imagem.
Artwork de A Narrativa Épica do Quotidiano
Noutra entrevista tua, ficámos a saber que és um músico que consegue viver exclusivamente da música e que, além disso, dás aulas numa faculdade. Consideras que estás a viver o sonho de qualquer artista, isto é, de viver apenas da sua própria arte?
PB: Não sei muito bem. Eu neste momento sinto-me extremamente realizado com as poucas coisas que já consegui e com os objetivos a que me propus. Adoro tocar em projetos como o do Tiago Bettencourt, em que sinto que consigo ser eu próprio a tocar e estou a tocar com amigos pelo país todo, adoro estar a criar música e a aprender diariamente com os You Can’t Win, Charlie Brown, adoro não ter rédeas e explorar em todos os concertos com os Old Mountain, e claro que é um sonho ser assim que ganho a vida. No entanto o objetivo maior é tentar chegar ao máximo número possível de pessoas com a minha música e inspirar alguém tal como muitos dos meus heróis me inspiraram a mim, acho que esse sim é o sonho. Se a minha música ajudar a que as pessoas consigam encontrar um bocado mais de sentido nesta coisa aleatória que é a vida, ou se as ajudar a chegar àquele sítio em particular que só chegamos quando algumas notas se encontram então para mim já vale todo o esforço.
Além dos inúmeros projetos que manténs e das bandas com que tocas, arranjaste tempo para conferir uma vertente mais jazz a temas de Marco Paulo, na companhia do contrabaixista Carlos Barreto e do baterista João Sousa. Como surgiu essa ideia?
PB: A ideia surgiu depois do Tiago Bettencourt me ter mostrado um disco do Marco Paulo que eu não conhecia chamado Ver e Amar. Na verdade, não conhecia eu nem conhece quase ninguém, até o próprio já se esqueceu que o tinha gravado. O Tiago mostrou-me e disse que era uma grande malha e eu não fiquei logo convencido, depois fui para casa ouvir e fiquei completamente rendido. Adoro os arranjos meio Festival da Canção com sopros e cordas, adoro ouvi-lo a interpretar aquelas canções daquela época mas já à sua maneira tão característica, mesmo a abordagem da secção rítmica é meio jazzística. Basicamente ouvi o disco e pensei que podia ser engraçado tocá-lo num contexto que nunca explorei muito e que faz muito parte da história do meu instrumento, o trio de jazz. Por alguma razão nunca toquei muito em trio como algumas das minhas maiores referências de guitarra e como muitos dos meus colegas, sempre toquei imenso em duos com bateristas ou com formações menos convencionais, então achei um desafio interessante pegar nestas canções e expô-las a um formato tão clássico mas ao mesmo tempo sem perder a piada que é estarmos de facto a interpretar o reportório do Marco Paulo.
Há uns anos tivemos um concerto que correu super bem com Old Mountain em que o convidado foi o Carlos Barretto então pensei que podia ser o elemento fundamental para esta ideia. No primeiro ensaio desafiei-o a vir tocar connosco mas não lhe disse o que íamos tocar, só lhe disse no final, não fosse ele dizer que não. Entretanto já demos vários concertos surpreendentemente e as pessoas reagem sempre muito bem mesmo. Nos concertos tocamos as músicas desse disco mas tocamos também os grandes êxitos e a reação das pessoas é sempre muito engraçada, porque por um lado reconhecem as melodias familiares e querem-se rir mas por outro lado estão a ouvir um trio de jazz então sentem que têm que nos levar a sério. É um exercício engraçado o sentimento de desconforto que se sente na sala mas ao mesmo tempo de descoberta. Se tudo correr bem no início do próximo ano gravamos e espero que possamos apresentar o projeto em muitos sítios.
Há alguma mensagem que gostarias de deixar aos leitores desta entrevista?
PB: Que tratem bem o próximo, que não se sintam mal em gastar dinheiro em cultura, que sejam felizes, que ponham coisas em perspetiva, que bebam muita água, que pensem que em vez de pagar 15€ num negroni no Lux podem comprar um disco a um músico que admirem para ele poder pagar 15€ num negroni, que vão a exposições e museus, que vão jantar fora ao restaurante da vossa esquina, que não apitem no trânsito, que se consigam pôr no papel do outro antes de julgar, que mantenham uma distância socialmente aceitável uns dos outros na altura de colocar a toalha na praia, que digam coisas na cara mas só se valer a pena, e que não sejam preguiçosos na altura de ouvir nova música porque provavelmente ainda nem descobriram a vossa banda preferida.
A Narrativa Épica do Quotidiano foi editado a 27 de maio e pode ser escuta na íntegra abaixo.