Tokyo Story: A City Pop em 25 Discos

Tokyo Story: A City Pop em 25 Discos

| Setembro 22, 2022 1:00 pm

Tokyo Story: A City Pop em 25 Discos

| Setembro 22, 2022 1:00 pm

O último Inverno atravessava uma fase particularmente chuvosa quando me reencontrei com a City Pop. Foram precisos apenas cinco segundos sem rede na estação de metro, e sem o acesso infinito ao streaming, para vasculhar o que lá andava perdido na audioteca do telemóvel. Nos momentos de solidão, aparecem os velhos amigos: aí estava, o sempre fiel Tatsuro Yamashita, com as suas melodias luminosas, prontas a serem cantadas a plenos pulmões, soubesse eu japonês. Os seus álbuns acompanharam-me durante essa semana. A curiosidade foi aumentando ao ponto de me ver a explorar outros discos e outros autores, e uma certa obsessão com listas deste que vos escreve levou a que se formasse mais uma: desta feita, um rascunho do que poderia ser uma selecção essencial, mas nunca definitiva, de álbuns desta variante da Pop japonesa que tomou de assalto a música da era digital. Chegado o Verão, é altura de a apresentar, e não poderia ser de outra forma ou noutra altura — tudo o que se segue “grita” por sol tórrido, águas cristalinas, pés na areia e ancas em movimento.

Para os menos esclarecidos: este “género” — expressão tabu e redutora que irei adoptar para efeitos de simplificação — engloba, para o bem e para o mal, alguma da música Pop feita no Japão nos anos 70 e 80. Apesar de maioritariamente interpretada em japonês, a City Pop bebeu de vários subgéneros “smooth” da música anglo-saxónica reinante durante o final dos “setentas” e início dos “oitentas”: desde o Rock perfumado de Jazz dos californianos Steely Dan até à Disco Soul de uns Earth, Wind & Fire, e com alguns acenos ao Funk dos Chic e à Tropicália brasileira, o cocktail resultante era um de canções adocicadas e veraneantes. Nos seus melhores exemplos adicionava a sensibilidade melódica de alguns predestinados e já experientes songwriters como “Harry” Hosono ou o já referido Yamashita, que se poderiam bater, a qualquer momento, com os grandes hitmakers norte-americanos e britânicos. Um dos aspectos mais curiosos e dignos de estudo é justamente a forma como os músicos por detrás do fenómeno City Pop alcançaram a proeza de reinterpretar alguma da Pop mais “cheesy”, melosa e de gosto mais questionável da história em obras verdadeiramente magnéticas e resplandecentes, devidas em grande parte à destreza instrumental inegável dos seus intérpretes e à atenção ao detalhe obsessiva dos seus produtores.

Esta apropriação estética é totalmente concordante com uma “americanização” da cultura japonesa a partir dos anos 60 (ver: qualquer filme do Ozu), e alguns dos toques “tropicais” remetem-nos para Martin Denny, compositor conhecido como o “pai da Exótica”, cuja música era transmitida em larga escala na rádio japonesa do pós-Guerra. Esta ligação entre Japão e América terá tanto de simbólica como teve de prática, nas próprias canções: vários são os exemplos de temas confortavelmente guiados pela lingua-mãe nipónica nos versos iniciais que não resistem à tentação de se transformarem num hit de rádio americana à chegada do refrão, explodindo em vogais abertas e triunfais, muitas vezes num inglês algo rudimentar. Talvez essa tendência estivesse relacionada com uma tentativa de agradar ao seu público-alvo: na altura do seu lançamento, a City Pop tornou-se na banda sonora dos jovens urbanos e com educação de elite de uma Tóquio num “boom” de industrialização, oferecendo uma nova dose de brilho e néons aos arranha-céus da capital. Quase podemos imaginar um desses proto-yuppies, siderado com as linhas de baixo e os sintetizadores que ecoavam do auto-rádio do seu Honda ou do seu Walkman — ambos produzidos no Japão por esta altura.

O ressurgimento da City Pop não é novidade: desde o início da última década que “arqueólogos” do sampling, do Hip-Hop à Vaporwave, desenterraram alguns destes tesouros japoneses, que rapidamente se tornaram virais no YouTube ou figuraram no topo das tabelas do streaming. Com a ajuda do TikTok, para uns, e de editoras como a Light In The Attic e as suas maravilhosas compilações, para outros, o fenómeno chegou rapidamente ao Ocidente, ao ponto de as lojas de vinis do bairro de Shibuya estarem agora saturadas de peregrinos e fãs ávidos por descobrirem ouro desta era, sejam eles neo-hipsters de Seattle ou vasculhadores veteranos do circuito underground de Berlim. Certamente que algum tipo de fascínio e fetichização da cultura nipónica, por via do anime e de toda uma estetização algo redutora de um país, levou a que a popularidade da City Pop rebentasse — como tal, o propósito da lista é também o de fazer justiça às canções e aos músicos, e apenas a esses.

Falando de critérios: a City Pop não é nenhum monólito. Convencionou-se que este estilo de largo espectro tanto pode englobar o Rock groovy de Tatsuro Yamashita como a Pop sofisticada de Haruomi Hosono ou os synths fervilhantes de Junko Yagami. Ainda assim, decidi deixar de lado alguns nomes (alguns deles brilhantes) que tornariam esse conjunto demasiado vasto, quer por algumas incompatibilidades estéticas com o “movimento” ou um menor alinhamento temporal: casos da maior parte do catálogo de Hosono e Sakamoto na Yellow Magic Orchestra — talvez o mais próximo que o Japão teve de uns Kraftwerk —, as melodias elegantes de Yasuaki Shimizu, a folk pop de Yumi Arai, ou os Happy End, a grande banda rock japonesa dos 60s e 70s. Nem tudo o que se fez no Japão nestas décadas foi City Pop e, por esse motivo, tentámos evitar generalizações convenientes, ainda que alguns desses discos mencionados tenham sido pedras-de-toque e faróis decisivos para a lista que se segue.

Explicados o “porquê?” e o “como?” desta lista, venha a música:

Sugar Babe – Songs
1975 · Niagara

Songs, na sua brevidade, não poderia ser um título mais adequado para aquele que mais merece o rótulo de disco fundador da City Pop. Sugar Babe era, para todos os efeitos, uma banda composta por vários elementos. Mas, na prática, era o duo dinâmico de Tatsuro Yamashita e Taeko Ohnuki, que viriam a ser os dois primeiros pontas-de-lança do movimento com os discos lançados a solo nos anos seguintes. Parece quase injusto, ou algum tipo de batota divina, ter dois nomes deste calibre na mesma equipa: Yamashita era dotado de uma queda inegável para a melodia e para ritmos sedutores, e Ohnuki possuía uma voz límpida e representava o lado mais sofisticado e classicista da banda. Foram ainda assistidos por Eiichi Ohtaki, um super-produtor e guitarrista dos Happy End, o mais importante conjunto nipónico dos 70s e o que mais influenciou o som inicial da City Pop. Juntos, deixaram-nos apenas um disco. O resto é história, aquela que se segue.

Momento Essencial: Os primeiros 15 segundos de “Down Town” anunciam um clássico do Pop Rock por direito próprio. Poderia figurar ao lado de qualquer hit de Harry Wilson ou Todd Rundgren ou mestres dessa estirpe: é música despretensiosa e desarmante, tal é a sua alegria de uma inocência quase adolescente.

Tatsuro Yamashita – Spacy
1977 · RCA

Entra “Love Space”: a certa altura, levo as mãos à cabeça em jeito de espanto e só consigo sorrir ao pensar no talento de Yamashita, e no quanto queria ser como ele — isto não é uma análise racional, é a confissão apaixonada de um fanboy. A sua voz emana carisma em todas as notas e percebe-se à distância que é um daqueles músicos tão dotados que faz parecer fácil e natural tudo aquilo em que toca. Não poderíamos ser julgados por vê-lo quase como indolente ou distante: a sua música é técnica e complexa, mas ao mesmo tempo tão leve que flutua, como Federer sobre os courts ou Zidane sobre os relvados. A partir daí, seguem-se baladas delicadas (“Candy”) e Funk devasso (“Solid Slider”), mas o tesouro estava mesmo na porta de entrada.

Momento Essencial: O ataque vocal de Tatsuro aos 20 segundos de “Love Space”, e o desabar de todo um arranjo instrumental absolutamente kitsch, cheio de nuances e brilhante ao ponto de ofuscar.

Taeko Ohnuki – Sunshower
1977 · PanAm

Depois de findos os Sugar Babe, Taeko Ohnuki lançou-se no que viria a ser uma longa carreira a solo, que começou com o jazzy e delicado Grey Skies, e ao qual se seguiu este icónico Sunshower. Um dos mais reconhecíveis álbuns da City Pop devido ao gigante fenómeno algorítmico do YouTube, a segunda obra a solo de Ohnuki é bem mais do que um “meme” de Internet ou fonte interminável de samples para os produtores da Vaporwave: é, por direito próprio, uma das grandes criações da Pop dos anos 70, sem olhar a proveniência. A produção é exuberante e conta com Ryuchi Sakamoto (sim, esse mesmo) a cargo dos arranjos para orquestra de cordas e sopros, sempre luxuriantes (“Summer Connection”), certeiros (“Kusuri O Takusan”) e cinemáticos (“Nani Mo Iranai”). A percussão é fina e subtil e, juntamente com as teclas de Sakamoto e a voz serena de Ohnuki, é criada uma atmosfera de felicidade e despreocupação quase embriagada, tão leve como uma brisa num dia quente.

Momento Essencial: Mais raras do que canções memoráveis pelo seu refrão são canções memoráveis pela sua “bridge”. Lembro-me imediatamente de algumas canções dos Radiohead, de George Harrison ou de Springsteen em que isso sucede, e “Tokai” é outro desses exemplos. Aí pelo fim do primeiro minuto de canção, um coro introduz dois versos que viram a canção do avesso, mostram o yin do seu yang (ou algum seu equivalente de filosofia nipónica) e dá-se um momento terno, delicado e instrumentalmente belíssimo em que uma nova face do tema se revela. Só depois pode vir o “release”, a libertação do refrão.

Masayoshi Takanaka – An Insatiable High
1977 · Kitty

Mais um dos discos recentemente reeditados pela estimada Light In The Attic, An Insatiable High é talvez a obra definitiva do guitarrista e compositor Masayoshi Takanaka. O seu domínio da guitarra ultrapassa em grande medida um manuseio proficiente do instrumento em formas menos convencionais: é talvez o maior “guitar hero” do Rock japonês, dotado de técnica prodigiosa e instinto virtuoso, mas sempre com uma forte aptidão para servir as suas canções com a guitarra, ao invés de se servir delas para práticas de auto-indulgência. Os ritmos funky de “Sexy Dance” e “E.S.P.” combinam na perfeição com a capa icónica do disco, transmitindo uma mesma energia e vitalidade e um certo tipo de optimismo transversal a muitos discos da City Pop. É por isso que precisamos deles.

Momento Essencial: O riff de “Sexy Dance” é dos mais memoráveis que já nos chegaram do Japão. A leveza e entusiasmo da meia-dúzia de notas que saem da guitarra de Takanaka tornam a canção contagiante e viciante, “feel-good-music” desavergonhada.

Harry Hosono and the Yellow Magic Band – Paraiso
1978 · Alfa

Haruomi Hosono mereceria vários parágrafos para ele próprio: numa só década, foi co-fundador dos Happy End, banda seminal do Rock nipónico de onde surgiu o hit cinemático “Kaze Wo Atsumete”, aventurou-se a solo (como com o encantador Hosono House, de 73), e terminou como pioneiro da electrónica na Yellow Magic Orchestra, um projecto que se seguiu imediatamente ao lançamento de Paraiso. A par de Caramel Mama dos Tin Pan Alley, outro dos projectos contemporâneos do workahólico Hosono, Paraiso foi um dos primeiros álbuns a incutirem o tipo de instrumentação arrojada e a estética exótica que se vieram a tornar símbolos da City Pop: algumas faixas do disco evocam a Tropicália brasileira (“Paraiso”), ou até os ritmos caribenhos (“Worry Beads”) que inspiraram Paul Simon e David Byrne na década seguinte, e a percussão de Tatsuo Hayashi e Nobu Saito é constantemente desconcertante. Por entre acenos ao psicadelismo nas margens das canções, a atmosfera torna-se húmida, soalheira e alienígena, fazendo de Paraiso um dos mais divertidos e bizarros discos de Verão da história.

Momento Essencial: As harmonias do refrão de “Femme Fatale” e os três, quatro, cinco, infinitos teclados e órgãos que surgem e desaparecem ao longo da canção criam uma atmosfera luxuriante e de um exoticismo onírico.

Haruomi Hosono/Shigeru Suzuki/Tatsuro Yamashita – Pacific
1978 · CBS / SONY

Com três dos maiores nomes da pop japonesa em colaboração, Pacific foi um dos discos formativos do que viria a ser a City Pop pós-1980. As influências exóticas que Hosono apresentara em Paraiso de forma maioritariamente acústica seriam aqui reinterpretadas num ambiente mais “electrificado” e com maior abertura a experimentações para lá da estrutura clássica de uma canção pop. É um disco melódico e exploratório, que poderíamos ouvir a bordo de um qualquer navio luxuoso navegando a baía de Sagami, possivelmente no seu lounge bar futurista.

Momento Essencial: As ondas embatem nas rochas quando surge o segundo movimento da terceira faixa do disco. O brilharete de Yamashita começara minutos antes, com um solo infinito de guitarra, mas é nestes acordes de piano irresistivelmente jazzy e hollywoodescos que chegamos ao bom-porto de “ノスタルジア・オブ・アイランド (Nosutarujia Obu Airando)”, um título quase auto-descritivo: “A Ilha da Nostalgia”.

Yukihiro Takahashi – Saravah!
1978 · King

Saravah! é uma das obras provenientes do universo alargado da Yellow Magic Orchestra, assinado pelo percussionista da banda, Yukihiro Takahashi, e coadjuvado de forma decisiva pelo baixo de Haruomi Hosono e pelos arranjos exuberantes de Ryuchi Sakamoto. Sendo o seu primeiro disco a solo após abandonar a Sadistic Mika Band que partilhava com o virtuoso guitarrista Masayoshi Takanaka, Saravah! é injustamente considerado uma obra menor da discografia de Takahashi, e tornou-se o álbum que melhor projecta um certo revivalismo do Easy Listening hollywoodesco na estética da City Pop. Porém, com actores deste calibre nada poderia ser “easy”, daí que esta reinterpretação siga o estilo aprimorado e infinitivamente criativo a que estes músicos nos viriam a habituar: esse género quase exageradamente orquestral e adornado de “lounge music” sofre as mutações devidas nas mãos de Takahashi e companhia para se tornar na Pop elegante de “Present” ou na Disco vitaminada de “Elastic Dummy”, ou em covers bem-humorados de standards clássicos como “Volare” ou “Mood Indigo”. Ouvir Saravah! é sermos transportados para uma noite num casino decadente da Costa Oeste — charuto preso nos dentes, o gelo prestes a desintegrar-se no whiskey que descansa sob as luzes da mesa de poker e, ao fundo, uma banda tocando sozinha nas sombras, soltando os ritmos exóticos que nos fazem esquecer tudo o que já perdemos ao jogo. Enquanto houver banda para tocar, a noite é nossa.

Momento Essencial: O último tema, “Present”, é uma apresentação com “panache” de todos os talentos e personas musicais de Takahashi: ouvimos o seu lado glam-rocker no inevitável solo de guitarra, ou a sua face de baladeiro ao estilo de Bryan Ferry, ou de aficionado da “chanson” francesa no respeito pela performance vocal. Mas ouvimos primeiramente, logo aos dez segundos de canção, o Takahashi mago dos sintetizadores: o belíssimo motivo de teclado é um tesouro, especialmente quando acompanhado pelos acordes delicados do piano de Sakamoto.

Taeko Ohnuki – Mignonne
1978 · RCA

O terceiro disco a solo de Taeko Ohnuki representou um pico de sofisticação instrumental na sua Pop de melodias irrepreensíveis. Pelas frestas da sua voz límpida entram algumas luzes do Jazz e da Folk, com arranjos orquestrais e frondosos que nos podem transportar para as canções de Joni Mitchell por alturas de Hejira, saído dois anos antes deste caloroso Mignonne. A produção é do mais alto nível que a City Pop alcançou, tanto nos momentos de composição mais intrincada (“Iidasenakute”) como hipnotizante “4:00 A.M.”. Taeko era, por esta altura, a rainha da City Pop.

Momento Essencial: O arranjo de cordas irrestível que abre caminho para um solo de saxofone no último minuto da faixa inaugural, a fantástica “じゃじゃ馬娘 (Jajauma Musume)”.

Tatsuro Yamashita – Moonglow
1979 · Air

Depois de um 1978 dedicado aos ambientes exploratórios de Pacific e a um disco a solo de menor fulgor comercial, o eclético Go Ahead!, a pressão da indústria discográfica abateu-se também sobre Tatsuro, a quem era exigido que fosse o cabeça-de-cartaz deste novo movimento de música urbana e cosmopolita, o espelho do boom económico e social que ocorria no Japão por esta altura. Correm rumores de que Moonglow terá sido projectado pelo próprio Yamashita como o seu último disco. Afinal de contas, falamos de um perfeccionista incorrígivel, que passou toda a sua carreira à procura dessa perfeição em forma de canção Pop, e tudo o que não chegasse perto dela era indigno de ver a luz do dia — trata-se de um músico que, recentemente, destruiu todas as suas demos para que as ideias meio-cozinhadas que foi tendo ao longo dos últimos cinquenta anos não viessem a ser lançadas postumamente. A pressão criativa levou a que lançasse o seu disco mais relaxado e espontâneo até à data, com momentos “a cappella” em “Nightwing”, grooves pecaminosos em “Rainy Walk” ou “Funky Flushing” (que ofereceu este vídeo hipnotizante), e ainda uma obra-prima de Soul atmosférica em “Storm”. Apesar da aparente descontracção de Tatsuro, o primor técnico mantém-se intacto, com a presença dos habituais all-stars Sakamoto, Hosono, Sato e Takahashi na banda de acompanhamento.

Momento Essencial: Pelos quatro minutos de “Storm”, uma orquestra de cordas em ciclone devasta a canção e leva-a ao seu pico dramático, num toque cinemático que se tornaria característico dos melhores trabalhos de Yamashita.

Miki Matsubara – Pocket Park
1980 · See-Saw

Lançado em 1980, Pocket Park situa-se temporalmente num eixo imaginário entre as duas fases da City Pop: uma primeira mais rica instrumentalmente e de maior atenção à melodia, e uma segunda particularmente cafeínada, imaginada mais para a pista de dança do que para o auto-rádio ao pôr-do-sol. A voz imperativa de Matsubara é versátil o suficiente para nunca a sentirmos fora do seu elemento, tanto sobre os sintetizadores tropicais de “Ai Wa Energy” como em momentos de sentimentalismo exacerbado (“Soushite Watashi Ga”) ou acompanhada por guitarradas emprestadas pelo Glam Rock (“Trouble Maker”). Mas quando surgem as luzes da Disco e os ritmos contagiantes do quatro-por-quatro sentimos que tudo muda, e para melhor: Matsubara exala confiança em “Mind Game”, que poderia ter saído de qualquer disco dos ABBA, ou particularmente em “Stay With Me”, um dos hits improváveis da City Pop ao longo dos últimos anos e uma autêntica bola-de-espelhos em forma de canção. Pocket Park é um álbum imperfeito, mas um marco importante num período de transição do movimento, e generoso em singles contagiantes.

Momento Essencial: Poderá soar herege não nomear algum momento de “Stay With Me” como o essencial deste disco, mas um soft-spot particular por “Manhattan Wind” faz com que a sexta faixa de Pocket Park leve o prémio: uma introdução sumptuosa de sopros introduz a canção, mas por volta dos 15 segundos somos surpreendidos pela percussão metálica e por um piano inquieto e brincalhão — são estes os elementos que guiam toda a canção e a levam à dimensão festiva e apoteótica do seu incrível refrão.

Tatsuro Yamashita – Ride On Time
1980 · Air

É-me difícil não tornar todo este texto numa extensa carta de amor a Tatsuro Yamashita, parte admissão de coração aberto, parte homenagem a alguém que acredito ser um dos maiores talentos da história da Pop, infeliz e injustamente tornado alvo de demasiadas remisturas, samples e adaptações que, de certo modo, confinam um songwriter de eleição ao estatuto de mero “poster boy” deste revivalismo recente. Ride On Time é o disco em que todos os talentos de Yamashita parecem aproximar-se do seu zénite, enquanto songwriter, criador de melodias, cantor, produtor e “entertainer”. O disco segue um modelo já usual, ao apresentar uma primeira metade mais funky, com a sedutora faixa-título ou a fervilhante “Silent Screamer”, e uma segunda parte de tranquilidade oceânica. Termina ao fim de 42 minutos sem qualquer segundo de desleixo, revelando o lado minucioso e excepcionalmente profissional deste artesão da canção. Nas várias baladas de amor que escreveu ao longo da carreira, uma boa dose delas com títulos dolorosamente kitsch, Tatsuro parece ir revelando sorrateiramente que o destinatário, o verdadeiro “you” dos seus temas, não se trata de qualquer figura material ou qualquer corpo de beleza idílica, mas sim das próprias canções, os veículos da sua dedicação infinita à música Pop. A julgar pela quantidade de temas que já escreveu e da sua longevidade como artista (afinal de contas, editou Softly há poucas semanas, o seu 21º disco de originais), não nos restam grandes dúvidas: entre Tatsuro e as canções, o amor é correspondido.

Momento Essencial: Ao bater no primeiro dos seis-minutos-que-parecem-dois da faixa-título, Tatsuro liga “Ride On Time” à corrente: desce a bola de espelhos, sobe uma plataforma escondida nas profundezas do palco e com ela surgem os músicos que electrificam a canção, até aí guiada por um piano melódico e pela voz elástica de Yamashita. Começa a festa, que bem podia ser infinita.

Minako Yoshida – Monochrome
1980 · Alfa

Minako Yoshida é ainda hoje considerada uma das mais poderosas e inconfundíveis vozes da Pop japonesa, um mezzo-soprano versátil o suficiente para comandar a presença num pequeno palco Soul do seu óptimo disco de 1977, Twilight Zone, ou para projectar uma canção estratosfera acima no Boogie de Monochrome, o seu maior sucesso comercial. Para além de compositora e liricista principal, Minako acumulou ainda o cargo de produtora, uma função que confiava normalmente ao seu habitual colaborador e “sensei”, Tatsuro Yamashita. O resultado é francamente impressionante: canções como “Tornado” ou “Rainy Day demonstram uma leveza e sentido de estilo ao nível dos grandes discos da City Pop, e há até espaço para certos detalhes desconcertantes e surpreendentes, como o final abrupto de “Black Moon” ou o órgão gospel de “Sunset”. Um disco nocturno e delicado, sem espaço para o fogo-de-artifício ou as epifanias de verão de outros registos, insere-se neste movimento da City Pop como um dos seus mais finos exemplares da inclusão de elementos do Jazz, da Soul e outros géneros “americanos” no cancioneiro nipónico das décadas de 70 e 80.

Momento Essencial: O relógio de “Midnight Driver” já passa dos cinco minutos de canção quando subitamente a voz em camadas de pergunta-e-resposta de Minako desaparece. Os tambores rolam e por momentos fica a sensação que a canção estará a terminar. Mas a percussão que paira sobre o riff viciante de baixo dura mais do que o esperado e, aí sim, pressentimos o que aí virá: o solo épico de guitarra, tão longo e inevitável que, sozinho, parece completar o caminho que separa Chicago de Tóquio.

Mioko Yamaguchi – Yume Hiko
1980 · F-Label

Ainda no ano da viragem de década surge o açucarado Yume Hiko, disco de estreia de Mioko Yamaguchi. É aquele que melhor revela a sensibilidade melódica da artista de Tóquio, precedendo Nirvana e Tsukihime, discos de 1981 e 1983 que simbolizaram incursões em terrenos mais inóspitos da Pop electrónica. Os sintetizadores, produzidos em colaboração com o muito solicitado Akira Inuoe, assumem diversas formas e feitios e ditam a atmosfera do disco, seduzindo-nos com rebuçados como “Lover” ou com a valsa Soul da penúltima faixa. A virtuosidade dos teclados será o grande motivo de interesse de Yume Hiko, um disco repleto de melodias memoráveis, glissandos espantosos e riffs encantatórios, cada um deles um sample de Vaporwave à espera de acontecer. Contudo, Myoko revela ainda outro talento particular: os “up-up-up-up and down” do tema inicial, os “na-na-na-na-na-na” de “いつかゆられて遠い国 (Itsuka Yura Rete Tōi Kuni)” são alguns dos motivos sonoros que Yamaguchi parece especialmente apta a criar, pequenos “iscos” de inspiração quase dadaísta que ganham forma para lá da linguagem e que, talvez por isso, nos enfeitiçam e aprisionam às suas canções.

Momento Essencial: Uma série de escalas de sintetizador, reproduzindo algo que poderíamos classificar como uma melodia “tradicional” nipónica, introduzem “Lover” de forma subtil e graciosa: pelos 40 segundos, surge a secção rítmica e dá-se o passe de mágica que torna a segunda faixa de Yume Hiko uma das mais encantadoras canções do período City Pop, bela de uma forma quase pueril e flutuante, de uma generosidade melódica da qual podemos bem não ser merecedores.

Eiichi Ohtaki – A Long Vacation
1981 · Niagara

Alguns segundos são suficientes para A Long Vacation nos parecer um lugar familiar e confortável. O piano e as melodias remetem imediatamente para os Beach Boys e a Pop veranenante e relaxada do grupo californiano. Juntamente com Hosono, Eiichi Ohtaki foi membro dos Happy End, e ambos desenvolveram uma parceria de songwriting com dinâmicas reminiscentes de Lennon e McCartney. A banda recebeu, aliás, diversas comparações aos Beatles — uma comparação com tanto de óbvia como de adequada: o talento para a melodia transparece em qualquer canção dos Happy End e a produção foi evoluindo para um registo semelhante ao de George Martin. É esse registo, orquestral e barroco, que Ohtaki aplica também em A Long Vacation. Com Beach Boys e Beatles como influências, o que poderia correr mal?

Momento Essencial: As melodias vocais no refrão de “Canary Islands Nite”, dignas dos grandes momentos de simbiose entre Brian Wilson e Mike Love.

Tatsuro Yamashita – For You
1982 · Air

For You está para a City Pop da mesma forma que Kind Of Blue está para o Jazz ou Nevermind para o Grunge. São obras reconhecidas e reconhecíveis para além do espectro onde se inseriram inicialmente e, embora os méritos, vendas e notoriedade geral de For You não se consigam comparar com os das outras duas obras, a sua importância é similar. É o disco que, em grande medida, justifica toda esta lista — foi a introdução da maior parte dos peregrinos aos templos da City Pop, e é hoje o seu livro sagrado. Algumas das doutrinas decisivas encontram-se na sua primeira metade: a abertura efeverscente de “Sparkle” é guiada por riffs preciosos, vozes em coro e adornos de saxofone; a máquina bem-oleada de “Music Book”, com a adição subtil da orquestra de cordas; o refrão catchy de “Morning Glory”. É seguramente um disco construído à volta dos seus grandes momentos: fugindo à fórmula de coesão e linearidade do anterior trabalho de Tatsuro, Ride On Time, For You apresenta vários interlúdios instrumentais que antecipam eficazmente e maximizam o “punch” dos hits, como acontece na perfeita “Love Talkin’”, o último momento apoteótico do álbum. É fácil imaginar For You como um disco de conforto para muitos: todas as suas canções são um sorriso, injecções de ginga só comparáveis com as da Música Popular Brasileira, máquinas de teletransporte em suporte de áudio, para lugares onde só uma felicidade quimérica e impossível é permitida. For You é um disco-casa, mas é também um causador recorrente de epifanias, de uma carga nostálgica tal que a era para a qual somos transportados pode bem nunca ter existido. Mas devia.

Momento Essencial: A percussão de Jun Aoyama comanda “Love Talkin’ (Honey It’s You)”, mantendo uma batida dançante à qual se juntam o piano eléctrico e os sintetizadores que dão forma ao tema. O refrão é triunfal e a performance vocal de Tatsuro é digna dos melhores vocalistas da sua era mas, numa imensidão de pequenos detalhes de produção, um destaca-se: justamente a meio da canção, a harpa (sim, a harpa!) de Keiko Yamakawa protagoniza uma espécie de abertura bíblica do Mar Vermelho, por onde entra disparado o inevitável solo de guitarra. Talvez a melhor canção do cânon City Pop.

Makoto Matsushita – First Light
1982 · Air

First Light é um dos discos mais impecavelmente produzidos e coerentemente montados desta fornada nipónica. Desde os primeiros floreados de sintetizador na faixa-título até às harmonias vocais que terminam “Sunset”, mergulhamos nas águas tranquilas de alguma praia do Pacífico. Este dia de praia começa com tanto de festivo e abafado, nas viciantes “First Light” e “One Hot Love”, como de melancólico e vagaroso, na baladona “Love Was Really Gone”. Possivelmente no caminho de regresso a casa, já com um pôr-do-sol em tons de roxo e laranja, podemos ser surpreendidos por um aguaceiro: “September Rain” é uma faixa representativa dos brilhantes arranjos melódicos de Matsushita e da guitarra-baixo preponderante de Yasuo Tomikura, dois elementos que nunca nos abandonam durante o álbum e que fazem dele uma peça essencial deste cânon.

Momento Essencial: Já nos dois minutos finais de “Love Was Really Gone”, um acorde martelado do piano eléctrico de Hidetoshi Yamada dá o tiro-de-partida: a este sprint final juntam-se o baixo, a guitarra e a voz de Matsushita que, juntos, formam o clímax da canção, com a infinita repetição das quatro palavras do seu título. A cauda do tema oferece-nos um breve adorno orquestral que torna toda esta canção-fantasia ainda mais grandiosa.

Hiroshi Sato – Awakening
1982 · Alfa

Awakening é a obra essencial da carreira a solo de Hiroshi Sato, um dos mais respeitados teclistas da tradição pop japonesa. Previamente a este disco, contribuiu de forma decisiva na criação da sonoridade dominante da City Pop, com participações em álbuns de todos os outros grandes nomes do género, como Yamashita, Ohnuki, Hosono e Yoshida. Curiosamente, é uma viagem à América que precipita a criação de Awakening, e é dela que surgem as suas principais inspirações temáticas e sobretudo instrumentais: o primeiro instrumento que salta à vista para lá dos teclados multiformes de Sato é a voz de Wendy Matthews, intérprete canadiana que o músico nipónico conheceu nessa sua aventura transpacífica e que dá o seu contributo a mais de metade das canções do disco; o segundo instrumento é o curioso Linn LM-1, uma drum machine que terá enfeitiçado Sato algures em Los Angeles, ao ponto de oferecer os seus ritmos sintéticos à totalidade do álbum. As canções são maioritariamente interpretadas em inglês e os seus títulos revelam-se evidentes: “You’re My Baby”, “Blue And Moody Music”, “Only A Love Affair” são baladas de veludo e boas peças de exposição da faceta delicodoce e pinga-amor da City Pop.

Momento Essencial: O ritmo de “Say Goodbye” começa groovy e gingão, e a certa altura somos surpreendidos pelos filtros daftpunkianos aplicados à voz de Sato, que rapidamente dão origem a um refrão irrestível, acompanhado pelos riffs sempre imaculados da guitarra de Yamashita.

Yuming – Pearl Pierce
1982 · Express

Yumi Arai, Yumi Matsutoya, Yumin ou Yuming: a multiplicidade de nomes artísticos desta intérprete nipónica é proporcional à multiplicidade dos seus talentos: foi ela um dos mais intensos clarões da New Music, o movimento que antecedeu e serviu de base estilística do que viria ser a City Pop. Tem dois impressionantes registos no catálogo vindos de 1973 e 74, Hiko-Ki Gumo e Misslim, ambos de uma Folk trabalhada e elegante, de um faro para a melodia digno dos Fleetwood Mac. Os tons de bege e baunilha dessa fase da carreira de Yumi Arai acabaram por evoluir para pantones berrantes de rosa, azul e amarelo nos anos seguintes, e é dessa segunda etapa mais colorida e rítmica que surge a principal contribuição de Yumi Arai (agora assinando como Yuming) para este segundo acto da City Pop, um ato chamado “anos 80”: Pearl Pierce é um disco de 45 minutos divididos em duas metades, uma primeira mais vitaminada e energética (com destaque para as primeiras quatro faixas), e uma segunda dada às power ballads, apontando a um possível fim de noite entre amigos e demasiada cerveja num karaoke bar de Shinjuku (“Dang Dang”).

Momento Essencial: A quarta faixa, “フォーカス (Fōkasu)”, é um banquete de detalhes luxuriantes de produção, desde um virtuoso órgão Hammond até alguns apontamentos de trompetes e trombones em surdina, passando por um solo de saxofone ou pelo baixo escorregadio e pela guitarra veraneante que guiam a canção. Todos estes adornos são mérito da coordenação de Masataka Matsutoya, talentoso músico que seria também futuro marido de Yumi.

Takako Mamiya – Love Trip
1982 · Kitty

Love Trip foi um dos grandes beneficiários do bendito algoritmo de YouTube que levou a… bem, que levou a “tudo isto”, a esta redescoberta da City Pop e sua chegada ao Ocidente. Takako Mamiya é essencialmente um OVNI: pouco se sabe sobre ela, o que fez antes de Love Trip e o seu paradeiro depois deste seu único disco. O fenómeno desta mulher-mistério foi tamanho que a Universal já reeditou o álbum ao longo da última década, e Love Trip é hoje um dos melhores e mais sólidos documentos já desenterrados pelos Indiana Jones da City Pop: contém todos os seus emblemas, desde os sintetizadores açucarados, os magníficos solos de sopros e os ocasionais arranjos de orquestra, sem esquecer a ambiência nocturna das omnipresentes linhas de baixo. “Mayonaka No Joke” será uma das causas do reconhecimento tardio dado a Mamiya: a terceira faixa do disco entraria em qualquer lista de “greatest hits” deste nosso adorado género.

Momento Essencial: “All Or Nothing” tem uma óptima passagem do verso para o refrão com o uso sempre eficaz da sétima, mas a canção ilumina-se já no seu último minuto: as palavras que dão título ao tema entram em repetição, e a dado momento sobem uma oitava na voz de Mamiya, renovando-lhe o brilho.

Tomoko Aran – Fuyu Kukan
1983 · Warner Bros

Mais um dos discos desta era cuja existência poderia ser justificada apenas e só pela sua capa icónica, Fuyu Kukan é, felizmente, bem mais do que isso. É um dos melhores espécimes da incorporação de elementos da Synthpop e da New Wave nas melodias vocais que caracterizavam o estilo, ajudando a inaugurar o género que viria a ficar conhecido como Techno Kayō. “I’m In Love” e “Midnight Pretenders”, com o seu baixo musculado e órgãos irresistíveis (o último deles recentemente samplado por The Weeknd ), tornaram-se dois dos fenómenos da City Pop, mas as drum machines, sintetizadores alienígenas e vozes processadas de “ひと夏のタペストリー (Hito Natsu No Tapesutorī)” ou “HANNYA” chegam a ser bizarros e perturbadores, roçando o ambiente soturno do Pós-Punk. Esta obra de Tomoko Aran revela muitos dos traços retro-futuristas de onde beberam os produtores da Vaporwave.

Momento Essencial: As primeiras notas do sintetizador de “Midnight Pretenders” anunciam o que aí vem: um clássico.

Anri – Timely!!
1983 · For Life

Anri é o nome artístico de Eiko Kawashima, um dos nomes mais prolíficos da Pop japonesa cuja discografia se estende ao longo de seis décadas diferentes, desde os primeiros singles em 1978 até ao lançamento de bandas sonoras na companhia de Mariya Takeuchi no passado ano de 2021. Timely foi o seu grande êxito, disco feito à medida para ser ouvido num qualquer bar da praia do verão de 83, e de onde surgem viciantes como “Windy Summer” ou “Remember Summer Days” — sim, pelos títulos percebemos que a coerência temática continua lá. Salvo algumas overdoses de sentimentalismo aqui e ali, é um dos álbuns de maior imediatismo Pop desta lista, com uma produção límpida e gingona do guru Toshiki Kadomatsu e um sem-número de refrões irrestíveis.

Momento Essencial: “”Here we are, windy summeeeeeer…”: este trecho diabólico de refrão é catchy ao ponto de justificar lembrança imediata da próxima vez que uma rajada de vento vos dominar o cabelo em Agosto.

Toshiki Kadomatsu – After 5 Clash
1984 · Air

Toshiki Kadomatsu foi o principal herdeiro do principado Pop japonês no seguimento de Yamashita, tornando-se o intérprete com mais sucesso comercial deste novo lado da City Pop pós-1980: o lado electrificado e nocturno, cheio de néons e vias-rápidas vazias de madrugada, que nos tentam a carregar no acelerador do nosso Corolla GT, agora a caminho da discoteca e não do bar da praia. O baixo quase insultuosamente saliente e impressionante de Tomohito Aoki é a grande estrela e força-motriz de After 5 Clash, juntando-se a ele o habitual xarope melódico e as batidas contagiantes que tornam toda esta experiência entretida ao ponto de se colocarem questões perigosas: valerá a pena qualquer tipo de análise sociológica, contextual, instrumental ou lírica a um disco quando há música… “assim”? Música com esse poder, de conseguir fazer parecer o seu valor artístico quase acessório quando comparado com o seu valor de entretenimento. After 5 Clash é um desses discos, uma obra tão excessiva e tão genial que só resta deixarmo-nos levar por ela — e, no final, levantar e aplaudir.

Momento Essencial: Qualquer disco que abra com a proposta de “If you wanna dance… TONIGHT!” está condenado à glória, e não há nada que falhe nessa faixa inaugural. Menção honrosa vai para “Step Into The Light”, uma fantasia Harajuku versus Bronx com grandes semelhanças à clássica “The Message” dos Grandmaster Flash saída dois anos antes, incursão breve no Disco Rap que tanto poderá provocar gargalhadas, tal o caricato da situação, como êxtase genuíno.

Mariya Takeuchi – Variety
1984 · Air

Hora da honestidade: Variety está muito longe de ser das melhores obras desta lista, e talvez outras fossem mais merecedoras de menção. Mas os méritos singulares de “Plastic Love” elevam este álbum ao patamar de clássico e de um dos mais reconhecíveis discos da City Pop. Como tal, não poderia ser deixado de fora: alguns dos mais de 50 milhões de visualizações no YouTube desse clássico foram o “rabbit hole” pelo qual muitos chegaram ao País das Maravilhas. Uns limitaram-se a espreitar, mas outros ainda descem o buraco: tudo graças a Takeuchi e ao seu marido e co-compositor da canção… Tatsuro Yamashita, claro está. “Mou Ichido” e “Todokanu Omoi” conseguem captar algum do poder sedutor (e cheio de influências Soul) de “Plastic Love”, mas a popularidade de Variety vive mais de bons momentos do que de um conjunto coeso.

Momento Essencial: Que “Plastic Love” e a City Pop estejam a ser redescobertos quase quarenta anos depois do seu aparecimento é praticamente um milagre, pelo qual temos de agradecer à Internet. A produção da faixa é luminosa, cheia de detalhes e nuances, entre os quais um truque clássico de Yamashita: a sucessão de sétimas no final do terceiro verso de cada estrofe, que soltam as rédeas da canção e a transformam numa obra-prima da Soul Pop dos anos 80.

Junko Yagami – Communication
1985 · Moon

Os primeiros segundos de “Imagination” são suficientes para percebermos que o que temos em mãos é um objecto estranho. Nas margens das cores garridas dos sintetizadores surgem linhas de baixo que quase parecem saídas de uma canção dos Pet Shop Boys, incessantes e propulsivas, e sujas de um cinzento quase londrino. A performance vocal de Yagami é efusiva e dominante, nunca se submetendo à produção futurista e arrojada de J.J. Stanley, tanto em temas como “Communication”, uma overdose de Funk que justificadamente se desdobrou em infinitos remixes direccionados para as pistas de dança, como na fantástica balada “1984”, algo que se pode assemelhar à reinterpretação Sci-Fi de um clássico da Soul numa realidade alternativa de Cronenberg. Communication levou a City Pop para lá dos seus limites até então conhecidos, bebendo das façanhas electrónicas da Yellow Light Orchestra de Sakamoto e Hosono e trazendo o género para algo mais próximo da Synthpop europeia, para um lugar nocturno e subterrâneo, longe da fantasia do Verão.

Momento Essencial: Já perto dos 20 segundos de canção, surge a linha de cinco notas vinda de um jogo de sinos sintético e estridente que dá início à viciante progressão de acordes de “Imagination”. São como cinco flashes, feixes de luz branca que se acendem e apagam a cada nota, daqueles que ofuscam os olhos sensíveis depois de uma noite de excessos na vida underground de Tóquio.

Momoko Kikuchi – Adventure
1986 · VAP

Parece adequado que o último e mais recente disco da lista seja uma espécie de portal para algo mais actual e presente do que a City Pop. As aventuras de Momoko Kikuchi soam e suam “ANOS 80” em letras garrafais por todos os poros, mas a “catchiness” e o faro Pop são tão declarados que podemos imaginar qualquer uma destas canções num genérico de anime da nossa infância. Momoko Kikuchi era já uma estrela antes do lançamento de Adventure: actriz e capa de revistas juvenis, teve este disco composto “à medida” da sua voz dócil e fácil ao ouvido. Já com os 90s à espreita, o magnetismo de artistas como Kikuchi levaria a que o “disco de autor” da City Pop cedesse lugar a uma nova e reluzente encarnação da J-Pop — não menos interessante, mas com muito mais gloss do que coração.

Momento Essencial: A linha de synth que irrompe aos 10 segundos de “Mystical Composer” e se manifesta em várias sonoridades ao longo da canção torna a sua atmosfera infalivelmente dançável.

10 Menções Honrosas:

Minako Yoshida – Flapper · 1976
Taeko Ohnuki – Grey Skies · 1976
Kingo Hamada – Midnight Cruisin · 1982
Meiko Nakahara – Friday Music · 1982
Akira Inoue/ Masataka Matsutoya/ Hiroshi Sato – Seaside Lovers: Memories In Beach House · 1983
Junko Yagami – Full Moon · 1983
Piper – Summer Breeze · 1983
Tatsura Yamashita – Big Wave · 1984
Kaoru Akimoto – Cologne · 1986
Toshiki Kadomatsu – Sea Is a Lady · 1987

20 discos de música pop (para lá da City Pop) japonesa das década de 70 e 80 que são igualmente merecedores de audição atenta:

Happy End – Kazemachi Roman · 1971
Haruomi Hosono – Hosono House · 1973
Yumi Arai – Misslim · 1974
Hako Yamasaki – Tobimasu · 1975
Nobue Kawana – Nobue No Umi · 1975
Yoshiko Sai – Mangekyo · 1975
Akiko Yano – Japanese Girl · 1976
Minako Yoshida – Twilight Zone · 1977
Ryuchi Sakamoto – Thousand Knives of Ryuichi Sakamoto · 1978
P-Model – In a Model Room · 1979
Yellow Magic Orchestra – Solid State Survivor · 1979
Akiko Yano – Tadaima · 1981
Yellow Magic Orchestra – BGM · 1981
Yukihiro Takahashi – Neuromantic · 1981
Haruomi Hosono – Philharmony · 1982
Yasuaki Shimizu – Kakashi · 1982
Haniwa-Chan – Kanashibari · 1984
Jun Togawa – Tamahime-Sama · 1984
Miharu Koshi – Parallelisme · 1984
Rajie – Espresso · 1985

 

Terminada a longa viagem intercontinental, algumas questões poderão surgir. Estaremos todos a passar por uma hipnotização colectiva pelo lado exótico, desconhecido e impossível de decifrar destas canções? Será que este movimento revivalista teria tanta força no Ocidente se não fossem os muitos e eficazes refrões em inglês? Será um género que vive mais de boas canções do que de bons discos? Haverá mais música deste tipo, deste nível, mais próxima cultural e geograficamente de nós e, se sim, porque não recebe a mesma atenção actualmente? E, por fim, o que é que a City Pop tem de tão mágico e encantatório?

As conclusões possíveis e as respostas que me sinto capaz de oferecer a todas essas questões acabam, invariavelmente, num encolher de ombros e no aleixismo conhecido: “a mim que me importa”. Talvez possa ficar para outro artigo, escrito por algum dos demais enfeitiçados. A City Pop é ao mesmo tempo futuro e passado, Oriente e Ocidente, uma fantasia demasiado brilhante para ser real. Mas o efeito transportador destes discos e canções é imenso: não fosse a existência de algum auto-controlo estaríamos todos a marcar o próximo avião para Tóquio, e é justamente essa ideia de evasão que nos faz voltar. À falta de voos low-cost e aeroportos funcionais, valham-nos a City Pop e os seus feitiços vindos do Sol Nascente, esse lugar mítico onde é sempre Verão.

 

Texto redigido por Luís Sobrado

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