Circuit des Yeux em entrevista: “Estou aqui pelas pessoas e emocionada pelas conexões pessoais”

Circuit des Yeux em entrevista: “Estou aqui pelas pessoas e emocionada pelas conexões pessoais”

| Outubro 20, 2022 2:13 am

Circuit des Yeux em entrevista: “Estou aqui pelas pessoas e emocionada pelas conexões pessoais”

| Outubro 20, 2022 2:13 am

Dona de uma voz portentosa e performática, capaz de alcançar quatro oitavas e aturdir completamente quem a ouve, Circuit des Yeux é o ADN musical de Haley Fohr, artista proveniente do Indiana, EUA, agora residente em Chicago. Concebido em 2007, Circuit des Yeux figura-se como a porta de entrada para a mente de Fohr, o acesso pleno às suas emoções cruas e verdadeiras.

A essência inicial de Circuit des Yeux residia na interseção do folk experimental, sombrio e de baixa fidelidade, tendo daí resultado três registos de estúdio – Symphone (2008), Sirenum (2009) e Portrait (2011) – todos com o selo da De Stijl. Trabalhos como Overdue (2013), gravado em conjunto com Cooper Crain (Cave e Bitchin Bajas), começaram a despontar o lado demarcadamente etéreo e denso de Fohr. O primor e a complexidade dos arranjos foram evoluindo naturalmente, como é perceptível nas obras que se sucederam – In Plain Speech (2015) e Reaching for Indigo (2017).

Em paralelo, Fohr assumiu-se também como Jackie Lynn, persona manifestamente espirituosa e imaginativa, alimentada por influências country, disco e synth pop, que serviu de veículo de exibição de partes suas a que provavelmente não teríamos acesso. De Jackie Lynn fomos agraciados com o disco homónimo (2016) e Jacquelin (2020).

Merecedor do carimbo da reputada Matador, -io aterrou em 2021 como o registo mais “pessoal e intuitivo” de Circuit des Yeux. Alicerçado em arranjos orquestrais compostos com a ajuda de mais de uma dúzia de músicos das cenas jazz, experimental e clássica de Chicago, -io é um álbum que começou a ser escrito ainda no ano de 2019, com o intuito de explorar o “trabalho árduo de encontrar alegria”. Por culpa das vicissitudes da vida, o processo criativo acabou por percorrer uma trajetória completamente oposta à pretendida e ficar fortemente associado ao luto e ao trauma – cuidou da avó nos últimos meses de vida, um dos seus amigos mais próximos cometeu suicídio e teve ainda de lidar com as suas próprias lutas internas, como a depressão e o stress-pós traumático.

A propósito da passagem de Circuit des Yeux por Portugal, estivemos à conversa com Haley Fohr sobre a sua relação com os instrumentos que toca, as memórias que guarda do nosso país e as incertezas que o futuro carrega.
Um ano após o lançamento de -io, Circuit des Yeux tocou nos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e em vários países europeus. Que reações teve até agora?

Tive o privilégio de atuar com um ensemble maior para este álbum, com algumas das melhores seções de cordas do mundo. Tem sido um sonho tornado realidade. Penso que a maioria dos concertos tem sido um sucesso – as pessoas parecem comovidas. Eu sei que me comove ter a possibilidade de atuar tão frequentemente e de interagir com amantes de música pelo mundo fora. É uma maneira especial de existir.

Três das músicas que compõem -io serão re-imaginadas por Claire Rousay esta semana. Como surgiu este encontro? Deu-lhe algum tipo de orientação?

Eu descobri a música da Claire durante a pandemia em 2021. Fiquei rendida pela maneira como consegue tornar pequenos gestos em grandes mundos. O seu estilo de música é muito íntimo, e isso foi algo que eu senti falta durante a quarentena. O verão passado, eu e a Matador queríamos encontrar uma forma especial para celebrar o primeiro aniversário de -io. Uma reimaginação feita pela Claire estava no topo da minha lista. Não lhe dei qualquer tipo de orientação, sei que passou centenas de horas a fazer remixes. O resultado é tão especial, não poderia estar mais feliz.

Recentemente, também ousou reimaginar um tema de outros artistas. O que a levou a reinterpretar o tema dos Bauhaus “Double Dare”?

O In the Flat Field dos Bauhaus é um disco que adoro desde o secundário. Há uma energia neste álbum muito visceral e poderosa. Depois de concluir -io, tudo pareceu muito cinematográfico, mas sério. Reinterpretar esta canção foi muito divertido para mim e fez-me sentir empoderada e witchy. Venho de um passado muito DIY e punk, por isso tocar esta música parece o regresso a uma certa parte de mim. Falando em inspiração, qual foi a maior mudança que experimentou desde que começou a fazer música?

Acho que o número de pessoas envolvidas na minha música e passar tempo com elas foram as maiores mudanças. Durante quase 5-7 anos, Circuit des Yeux era apenas trabalho meu. Eu escrevi, produzi, atuei, agendei os meus concertos, lancei os meus próprios discos, etc. Atuei várias vezes para uma a cinco pessoas. Foi difícil, mas retive muito dessa experiência na altura. Agora toco para centenas, milhares de pessoas, tenho uma banda, equipa de tour e imprensa, editora. Tem tudo crescido tanto que até parece um emprego/ vida/ existência diferente. Não sou a melhor a comunicar, mas estou a aprender. Quanto mais pessoas, melhor!

Como multi-instrumentista, como é a sua relação com os diferentes instrumentos que toca?

Fico frustrada às vezes. Há apenas algumas horas no dia e eu gostava de ser ótima em tudo! Eu passo por fases – longos meses onde estou a aperfeiçoar algo, passando para outro aspeto na minha arte. O meu instrumento preferido é a minha guitarra Gibson 12 de 1968. Chama-se Boom, e tem um significado muito profundo – quase espiritual – na minha vida. Passámos por muito juntas. Relativamente à minha voz, isso é outra parte muito pessoal para mim. Penso que exploro mais através da minha voz. Julgo que é a forma mais fluente de comunicar. Geralmente sou atraída ao antigo, ao vintage, aos instrumentos analógicos. Gosto de coisas que tenham um passado. Mas estou a tentar dar uma oportunidade a ferramentas mais futuristas, como o sofware e o midi.

Começou a editar discos na De Stijl no início da sua carreira. Mais tarde juntou-se à Thrill Jockey e lançou In Plain Speech, editou Reaching For Indigo na Drag City e finalmente, foi recebido pela Matador para lançar -io. Como funcionou todo esse processo de troca de editoras ao longo dos anos?

Sinto-me muito felizarda por ter trabalhado com tantas editoras independentes lendárias. Acho que é importante dizer que De Stijl e Thrill Jockey, naquela altura da minha carreira, foram as únicas com disponibilidade para trabalhar comigo. O Clint da De Stijl encontrou-me no começo da minha queda pela arte. Eu tinha dezassete anos e comecei a experimentar no meu quarto de infância. Quando acabei In Plain Speech, enviei o álbum a vinte editoras. A Bettina da Thrill Jockey foi a única a responder, é uma pessoa muito importante e ajudou-me a crescer na minha carreira. Eu acho que ao crescer artisticamente, fui procurando pelo lugar certo numa editora. É arriscado continuar em movimento até encontrares o espaço perfeito. Ambas as editoras são excelentes para artistas, mas neste momento na minha vida, sinto que a Matador é a casa onde é suposto eu residir. Já aconteceu escrever uma música que claramente tinha a energia de Jackie Lynn e depois usá-la para Circuit des Yeux?

Nunca aconteceu! É uma boa questão mas, honestamente, não. Vivem em diferentes zonas do meu cérebro. É difícil de descrever, mas raramente as duas se cruzam.

Durante a pandemia, encontrou a obra de Fernando Pessoa, poeta português conhecido pelos seus muitos heterónimos. Ele pareceu realmente ajudá-la a entender a dor e o sofrimento. Jackie Lynn é a sua maneira de decompor a alma como Pessoa fez?

Penso que Jackie Lynn funciona de forma semelhante a alguns heterónimos de Pessoa. Eles desenham uma faceta diferente da minha existência, forçam-me a viver e a lidar com a vida a partir de uma perspetiva diferente. Ela ajuda-me a honrar algo numa forma temática que utiliza partes de mim que talvez se tivessem mantido subterrâneas se não fosse por ela. Eu consigo definitivamente ver outros heterónimos a desabrochar ao longo da minha carreira.

Visitou Portugal várias vezes nos últimos anos. Esteve cá em agosto, para atuar no festival gótico Extramuralhas, em Leiria, e agora volta nos próximos dias para 3 datas, em Lisboa, Espinho e Braga. Do que mais gosta no nosso país e que memórias guarda?

Portugal é um sítio muito especial. Para mim, é um dos meus países preferidos do mundo. Adoro a maneira como as famílias tomam conta dos mais velhos, como os vizinhos mantêm as ruas limpas, a comida deliciosa, e as grandes risadas quando o sol se põe. Tenho sempre uma estadia tranquila e vivificante em Portugal. Tenho uma memória muito engraçada com o Bill Callahan numa marisqueira há alguns anos, quando experimentámos percebes. Nenhum de nós gostou do sabor, e rimos à mesa enquanto tentávamos engolir aquilo.Disse numa entrevista que realizou no ano passado que a esperança com a sua música é que as pessoas possam interiorizá-la e ter uma experiência muito pessoal com suas emoções, sentido-se posteriormente mais leves. Alguém se identificou com essas emoções e as compartilhou consigo?

Sim. Durante esta tour muitas pessoas têm vindo até mim para partilhar histórias privadas de tempos mais conturbados – gravidade e leveza. Julgo que é um tempo complicado mental e emocionalmente para a humanidade. Estou aqui pelas pessoas e emocionada pelas conexões pessoais.

Disse também que escreve todos os seus álbuns quando se sente em perigo e quando precisa de se salvar, e que adoraria compor um álbum quando a sua mente estiver mais leve e se sentir conectada a alguma outra parte de si mesma. Está a mover-se nessa direção, ainda a persegue, explorando o trabalho de encontrar alegria?

Absolutamente. Estou a divertir-me a escrever música nova. Estou a gostar da transição para a primavera, e o frio do inverno. Sinto-me sortuda pelos amigos e músicos que tenho junto a mim. Sinto-me muito inspirada e sinto mais alegria ultimamente. Acho que é algo para o qual terei sempre de trabalhar – mas por hoje, sinto-me bem.

O que podemos esperar de Circuit des Yeux no futuro, sabendo que neste momento vários músicos, ironicamente após um período de reclusão forçada, permanecem nos lugares familiares diante das incertezas futuras?
Sempre pensei em cada tour como se fosse a minha última. Nunca se sabe o que pode acontecer. Como artista, fui sempre confrontada com a incerteza. Estou a tentar não ter medo e viver no presente. Estou a tentar criar mais, e talvez mais rápido. Mas também é altura de disfrutar o que temos… ouvir os ponteiros do relógio mais alto obriga-nos a apreciar o tempo que nos resta. Sinto-me inspirada e pronta para continuar.

Circuit des Yeux atuou ontem na Culturgest, em Lisboa. Segue-se hoje o concerto no gnration, em Braga, e no dia seguinte, no Auditório de Espinho.

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