MIL ’22: alargar o passo para a surpresa no Cais

MIL ’22: alargar o passo para a surpresa no Cais

| Outubro 17, 2022 9:00 am

MIL ’22: alargar o passo para a surpresa no Cais

| Outubro 17, 2022 9:00 am

Não há nada como entrar numa discoteca no Cais do Sodré e não ter de pagar pela entrada, para logo a seguir entrar noutra e acontecer o mesmo: bastou mostrar a pulseira do MIL para conhecer discotecas como o B.leza ou espaços como o Auditório ETIC e para me surpreender com os concertos de artistas nacionais e internacionais. A sensação de liberdade ao deambular pelo Cais em contexto festivaleiro é o sonho de qualquer melómano notívago, ao longo de dois dias recheados de música nova. A decisão da organização em levar o festival para este espaço da cidade foi bastante feliz, não só pelo seu acesso mais facilitado como pelo dinamismo da zona, reservando o espaço do Hub Criativo no Beato para a Convenção.

No entanto, nem tudo foi um mar de rosas: o festival deixou muito a desejar pela sobreposição de horários no segundo e terceiro dia – o que me impossibilitou de ver concertos como o de Sónia Trópicos, Iolanda, As Docinhas, Puta da Silva ou rever Filipe Sambado para ouvir Revezo ao vivo – e sofreu pela falta de organização do primeiro dia que, em vez de estar estruturado como o dia 29 e 30, preparou uma festa de abertura de apenas uma hora (juntou as produtoras BLEID, Clara!, Blck Mamba e BRAVA! no B.leza, onde se fundiram vários géneros, desde afrobeat a techno). Se a duração de cada concerto já era pequena (45 minutos), a desorganização no primeiro dia veio tornar a missão festivaleira um desafio, onde foi preciso – como diria Sambado – alargar o passo. Vítima da costumeira sobreposição e do meu livre-arbítrio, o relato seguinte trata a minha odisseia musical, onde o algoritmo de decisões me levava sempre a determinado espaço e concerto, destruindo o meu desejo pessoano de estar em todo ao lado ao mesmo tempo.

 

Dia 29

A vida fez-me perder o concerto de chica, o que me deixou desde logo aborrecida. Chateada, fui em direção ao Musicbox, onde a música de Marta Knight me tranquilizou. A sala estava pouco composta, mas mesmo assim, a espanhola pareceu entusiasmada por estar a atuar no país vizinho, notório na sua entrega em palco, embora um pouco reservada graças aos nervos. A artista de vinte e três anos de Barcelona tocou a maior parte do seu mais recente lançamento Strange Times Forever, pautado pela ansiedade e pela insegurança de ser uma jovem adulta, num concerto muito bonito (habilidade típica de mulheres no indie), numa voz afinadíssima que brilhou sob a boa acústica da sala. Na música que dá nome ao seu novo álbum, Knight canta, “I just wanna make songs to listen to in my room” e foi mesmo essa a sensação com que ficamos, quando de repente, em pleno Musicbox, parecemos teletransportados para aquilo que imaginamos ser o seu quarto, lugar de escape, onde a sua voz apazigua qualquer um. O ponto alto do concerto foi quando tocou “I Hate Dancing” – imagino-a na rádio em pouco tempo – onde a simplicidade da balada e a naturalidade com que canta joga a seu favor. O concerto estava prestes a acabar quando tocou uma cover do seu conterrâneo Yung Beef, numa versão acústica e em espanhol, o que não deixou de ser um momento de camaradagem e representatividade na música espanhola. Acabado o concerto, a próxima paragem foi no Lounge para Charlotte Fever.

MIL

Charlotte Fever © Raquel Lima

 

Apertadíssima – existe se quer outra maneira de estar no Lounge? – cheia de calor e com uma mirrorball a espreitar ao alto – o mais recente requisito de Alex Turner – o concerto do duo francês, foi eufórico, divertido e teatral, tudo na medida certa – como os franceses sabem dosear. Cassandra Hettinger e Alexandre Mielczark formam um conjunto cheio de estilo – Cassandra, cheia de brilho e dotada de uma maravilhosa voz e Alexandre, o típico cool-french-guy com voz grave e dramática, semelhante à de Serge Gainsbourg – e a química entre eles colaborou muito para que o concerto se tivesse proporcionado da maneira que se desenrolou. A influência de Daft Punk nos sintetizadores e no teclado é evidente, o que tornou as músicas já de si sensuais – sobre fazer amor no campo ou nudismo na praia –, cheias de adrenalina, a soar a disco, trazendo instrumentos pouco convencionais como o keytar na mistura. A música é quirky, mesmo ao encontro do seu género french-pop solaire – algo que não vemos tão frequentemente em projetos recentes – e a performance não ficou nada aquém da expetativa alta com que fui. Despediram-se com o single “La Carioca” – música em que Bruno Pernadas poderia estar envolvido tal é a similitude – onde nos cantam au-revoir, deixando-nos encantados e a aguardar por mais música nova e regresso a Portugal.

Depois de Charlotte Fever, guardei a próxima paragem para o concerto dos Cassete Pirata. Chegada mesmo em cima da hora, mas a tempo da primeira canção e do aviso prévio que iriam apenas tocar os hits, com a válida justificação do set ser curto. Já conhecidos do público, a banda entrega músicos muito competentes, começando desde logo pela voz polida de João Firmino, passando pelo baixista António Quintino, o baterista João Pinheiro e as vozes e teclados de ouro de Joana Espadinha e Margarida Campelo, o que torna o conjunto numa pérola autêntica. No B.Leza, a casa já apinhada ia enchendo cada vez mais para ouvir canções como “Ferro e Brasa” e grande parte do registo do mais recente lançamento A Semente (2021). Escutámos canções como “A Próxima Paragem”, “A Torcer por Nós”, “Só Mais uma Hora” e “Ser Diferente”, música que levou o público a dançar enquanto gritava o refrão: “Aí quem me dera ser diferente/ Ser melhor que toda a gente”, acompanhando Firmino. Fiquei com pena de ir andando já que o cenário era ideal: a ponte sobre o Tejo estava iluminada, foi a primeira vez que vi Cassete Pirata – depois de os ter pedido em variadas ocasiões – e estava bastante satisfeita. Contudo, não queria perder o início do concerto seguinte, na porta ao lado, e dei corda aos sapatos para entrar no Titanic para ver Rosie Alena, já no palco, a preparar-se, cheia de simpatia no olhar.

MIL

Rosie Alena © João Beijinho

 

O que podia ser percecionado de fora como um concerto com potencial para ser aborrecido, – já que contava apenas com baixo e uma guitarra – provou-nos o oposto. Apresentou o seu EP de estreia Pixelated Images, lançado este ano, e promoveu timidamente a sua escuta em casa, tocando ainda uma música que a banda ainda não lançou. O concerto foi hipnotizante, em grande parte pela intensidade e potência da voz da inglesa, com a emoção de Angel Olsen e a doçura de Faye Webster ou Weyes Blood – como ouvimos quando tocou o tema “The Light”, proporcionando-nos um momento muito caloroso ou quando tocou o single “God’s Garden”, deixando a sala animada e a vibrar. O Titanic ficou com outro brilho; quem olhava para Rosie estava com olhos esbugalhados e talvez rasos de água em momentos de maior fragilidade, exemplo disso foi quando tocou a última faixa do seu EP, intitulada “Adore Me”, para fechar em grande. Não espero outra coisa se não a sua futura popularidade, porque o talento imensurável não será indiferente a ninguém, do alternativo ao mainstream – quem a ouve, adora-a.

A noite acabou com a música de Lewis OfMan, com o Musicbox a abarrotar. O público estava bastante expectante pela pequena amostra que fui capaz de apurar, ao encontrar amigos e conhecidos na Rua Cor de Rosa (oficialmente conhecida por Rua Nova do Carvalho), para misbehave (diga-se: portarmo-nos mal) com o músico francês. O som de OfMan é uma espécie de mistura bizarra e, ao mesmo tempo, orgânica, entre Daft Punk e Beastie Boys, sob uma ótica contemporânea do inglês A.G.Cook, talvez como referência. A sua energia em palco foi completamente contaminante, num one-man-only show, talvez o mais divertido do MIL, graças ao alinhamento de OfMan – maior parte veio de Sonic Poems (2022) – de onde tocou temas como “Such a good day” ou “Misbehave”, canção atrevida que conta com a colaboração do duo Coco & Clair Clair e tem como base a sample de “The Party” de Justice, com ligeira alteração lírica e registo bem mais lento (podia ser uma canção menos popular da discografia da Kesha como a “c u next tuesday”). Estavam todos muito divertidos quando OfMan tocou “Too Much Text” – tema universal que ultrapassa barreiras linguísticas e culturais: já todos mandamos uma mensagem, desligámos a internet, restando-nos apenas levar as mãos à cabeça; esta situação embaraçosa não perde a graça e músicas como “Dancy Boy”, onde vimos OfMan a testar a sua habilidade como dançarino, e “Energized”, que podia muito bem ser a banda sonora de um anúncio a uma bebida energética e digo-o de forma lisonjeadora, deixaram o público ao rubro. Quando o concerto acabou e o músico francês se despediu, o público, outrora tão empolgado, murchou, já que a noite na sua companhia podia ter durado muito mais tempo.

MIL

Lewis OfMan © João Beijinho

 

Dia 30

No terceiro e último dia do festival voltei a ficar aborrecida ao aperceber-me de que o concerto da violoncelista Mabe Fratti, nome de destaque no MIL, havia sido cancelado algumas semanas antes. Desanimada, o meu ponto de partida voltou a ser o Musicbox, onde fui ver o concerto de Los Yolos. O grupo de Barcelona estava incompleto – faltava Manuel Gómez, o baixista, no palco – o vocalista, Raúl Páez, explicou que o parceiro ficou preso no aeroporto de Lisboa, o que levou a gritar “Fuck the police!” – mas mesmo assim tocaram na íntegra o EP de estreia Rock Ciudad, do ano passado, e mostraram-se entusiasmados pelo convite do MIL. Já se tinham lançado antes no bandcamp, com um álbum de dez canções “(…) grabadas de forma amateur de las distintas formaciones de Los Yolos” entre 2017 e 2019, onde marcaram a diretriz para a sua sonoridade pop-punk. Embora não tenha sido uma atuação merecedora de grande destaque, a atitude punk – fez lembrar Parquet Courts quando tocaram “Sintético” – e o espírito anárquico da banda – notório na canção “Controlo”, embebida numa prosa orwelliana, anti-autoridade, que lembrou Wire e The Feelies – fizeram valer a pena o concerto.

Não me apaixonei por Los Yolos mas não posso dizer o mesmo de Conferência Inferno. “Excesso e apocalipse, foi o que ele me disse?” – o Roterdão estava apinhado de gente amiga, suada antes ainda do concerto começar, naquela cave alternativa onde o respeito pela música se sente no ar. Intercalado entre músicas do EP Bazar Esotérico (2019) e de Ata Saturna (2021), o trio portuense surpreendeu e deu um dos melhores concertos do festival. Para além da ótima acústica no Roterdão, Conferência Inferno provou como com pouco se faz tudo. Raul Mendiratta e José Silva estavam no comando dos teclados, teclados esses que nos transportam aos anos 80, com a referência New Order e Suicide na ponta da língua, o que não deixa de ser interessante já que falamos de um projeto português emergente. Músicas como “Cetim”, “Sina” e “Ausente”, lideradas na voz grave de Francisco Lima, levaram o Roterdão abaixo e mostraram o potencial da banda do Porto, cujo trabalho me tornei fã.

Conferência Inferno © Bruna Fino

 

O próximo destino foi o Titanic para ver o concerto dos CELSO. Depois dos primeiros singles, “Espanhola” e “Brandão”, a banda tocou o álbum de estreia Não Se Brinca Com Coisas Sérias, lançado em 2021. Embora já os tivesse visto há pouco tempo, não resisti e fui de novo, já sabendo o que esperar: ver CELSO é sempre divertido – a tão desejada rambóia… – mesmo fora do tom ou desafinado de vez em quando. O trabalho do grupo tem a dosagem perfeita de auto-tune, estilo Bejaflor, nítida em “Más Línguas” e “Fruta” – embora a versão ao vivo seja bem mais crua – contrastando com a voz sem filtro de João Paixão em canções como “Queimar Tempo” e “Rambóia”, música para dançar e ficar bem-disposto onde a influência dos The Strokes na guitarra é óbvia. A banda tocou ainda uma versão slow de “Bate-Papo”, “Sonho Americano” e a música que lhes consagrou maior popularidade no último ano, o single “’Tá Tudo Bem”, esse hit de verão super catchy. A acústica no espaço não foi a melhor e o público no geral pareceu algo tímido, mas em pouco afetou a dinâmica do concerto de um grupo para o qual estou curiosa para conhecer música nova. Acabado o concerto, fui cheia de pressa para o Musicbox, para assistir ao concerto de Sereias, onde fiquei apenas quinze minutos. Tive o meu momento seinfeldiano It’s-not-you-it’s -me, quando me apercebi que a música do grupo do Porto me induziu mais ansiedade do que prazer, não descurando o talento da banda.

Com algum tempo nas mãos – algo raro no festival – decidi voltar ao Titanic para o concerto de Bikôkô, nome artístico de Neï Lydia. A jovem música, nascida nos Camarões, tocou sozinha e ficou encarregue do concerto na sua totalidade, dado que o voo da sua banda para Lisboa fora cancelado. O contratempo não se mostrou tarefa fácil, visto que tinha uma série de músicas preparadas para tocar com a banda (onde o pai canta e toca percussão) mas, mesmo sem banda, Bikôkô surpreendeu e arrasou. Descalça e de sorriso de orelha a orelha, cantou canções do seu EP Nothing Ever e do disco Aura Aura (2021), onde fez todo o processo de produção. Toda a gente no público ficou arrepiada: a sua voz linda e melodiosa e a sua música, cheia de influências africanas, cruzaram a soul e o pop de uma forma deslumbrante. Bikôkô mostrou-se uma verdadeira revelação musical, tanto na sua técnica, ao cantar acapela ou a tocar, sentada no piano, como também mostrou aquilo a que Jeff Tweedy (líder dos Wilco) chama de artistic gift. Segundo Tweedy, essa habilidade artística resulta na capacidade em comunicar e partilhar a música de coração aberto e de forma genuína, como Bikôkô fez tão bem.

Depois do concerto maravilhoso de Bikôkô, fiquei pelo Titanic para ver SUN, a maior surpresa do MIL. Se em casa o EP Brutal Pop fora uma proposta cativante da pop com elementos do metal (como o screamo), ao vivo ganhou uma outra dimensão, com a performance arrasadora da cantora e compositora franco-alemã. A mistura nada convencional , numa primeira impressão, funcionou como mel e foi delicioso ouvir SUN em palco, cheia de energia (mesmo que a sua música venha de um lugar muito escuro). A atuação foi super poderosa, acompanhada pelo baterista e pelo baixista cheio de pinta (nunca pensei ver alguém a usar o próprio merch com tanta sprezzatura), onde pudemos ouvir “Brutal Pop”, uma versão metal de “I Follow Rivers” de Lykke Li e outra música, “Through the Pain”, composta para um filme. A experiência do concerto foi fenomenal, considerando a energia delirante e a entrega intensa do conjunto ao vivo. Tanto agradou o fã de pop como o fã de metal, tal é a destreza de SUN em combinar dois estilos de música tão diferentes, para cozinhar o seu brutal pop, diferente e único.

 

Foram dois dias – podiam ter sido três… – de música nova e de revelações surpreendentes – como Rosie Alena, Bikôkô, SUN – no plano levado a cabo pelo MIL, festival cuja essência da descoberta é de extrema relevância para a mostra de música nacional e internacional na capital. O MIL mostrou, em primeiro mão, na sua sexta edição, o início de muitos projetos promissores.

 

Reportagem por Catarina Fernandes

Fotografia de capa por Inês Lacerda


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