Amplifest – FDS2: há cada vez mais história a ser escrita neste festival
Amplifest – FDS2: há cada vez mais história a ser escrita neste festival
Amplifest – FDS2: há cada vez mais história a ser escrita neste festival
Não fosse a explosão impossível de conter dos norte-americanos Shy, Low, momentos antes, e quase poderíamos dizer que o segundo fim semana do Amplifest – que regressou aos quartéis do Hard Club, no Porto, entre os dias 13 e 15 de outubro – inaugurou em tom de cerimónia. Luís Fernandes, uma das mais respeitadas figuras nos domínios da composição feita em Portugal, fundador do festival Semibreve e autor de inúmeras obras de imenso valor experimental, arrancou as hostilidades do palco secundário, antes de uns Cave In impetuosos, com o novíssimo A Guide to Getting Lost (publicado em setembro último pela Revolve) na bagagem. O ambiente era austero: uma sala às escuras, iluminada pela luz ténue das projeções e das três plaquetas de saída que nos guiam até os nossos olhos se ambientarem e situarem finalmente o que se está a passar — um marasmo de sons espectrais geometricamente organizados, táctil e dissonante, cortante como as melhores composições de Ben Frost, cinemático como as melhores bandas-sonoras de Hanz Zimmer.
Com apenas quatro homens em palco, os Cave In, figuras nucleares da Hydra Head, são capazes de condensar o som de vinte. Alternando entre o antémico, o abrasivo e o gutural, sempre com uma energia incendiária, a banda de Stephen Brodsky e Adam McGrath apresentou um espetáculo electrizante que retira o“pós” do “hardcore”. Heavy Pendulum, o mais recente álbum da banda, foi o mote para um alinhamento que passou a carreira dos norte-americanos em retrospectiva, novas e velhas aventuras ao som de um rock que tem tanto de rasgado como de arrastado, lentamente corrosivo mas com o imediatismo e a sensibilidade que os tornou num dos atos proeminentes da ascensão do rock alternativo enquanto fenómeno global. “New Reality”, inegável regresso à forma, deu o pontapé de arranque, “Reckoning” foi dedicada a todos os que perderam familiares para a Covid e “Big Riff” evocou a chama de Jupiter, a mais reconhecida obra do grupo, encerrando a atuação — a primeira em terras lusas — em catarse, ao som do riff emocional que constitui os metros finais de “Sing My Love”.
Longe vão os tempos em que Caspar Brötzmann, filho do octogenário saxofonista Peter Brötzmann e autor singular por excelência, munido de um baixo e de alguns pedais de efeitos, nos transportava com as suas sufocantes performances para decadentes caves em Nova Iorque, onde pequenas plateias eram encurraladas por violentas paredes de som geradas pelos mais excitantes grupos da no-wave. Hoje, o músico e compositor alemão está mais velho, mais moderado e ciente da passagem do tempo, apresentando nos seus espetáculos, assinados como Bass Totem, uma prosaica forma de improvisação. Com um baixo, consegue replicar os guitarrismos blues na sua forma e ortodoxia, mas o espaço de Brötzmann é acima de tudo um de exploração, de subversão noise e de manifestação libertária, aliada a uma inspirada tradição folk. É punk no seu sentido mais subversivo, experimental na sua postura insular e isolacionista, livre e incauta, lamentando o fado com a dolência de Scott Walker e de outras vozes de natureza operática.
Eugene Stanley Robinson é primeiramente – e acima de tudo – o homem-Oxbow, timoneiro de um dos mais inventivos grupos do norte da América, autoridade indisputável das vanguardas e influência evidente no tecido rock dos dias de hoje (estamos a olhar para vocês, Black Country, New Road). Enquanto Love’s Holiday, o oitavo longa-duração da banda de São Francisco, agendado para sair algures no início de 2023, não chega (já lá vão cinco anos desde Thin Black Duke), Robinson, que daqui em diante será tratado pelo seu primeiro nome, tem vindo a explorar outras coordenadas, indubitavelmente mais musculadas, assentes na tradição ruidosa do noise-rock, na companhia dos italianos Xabier Iriondo, Andrea Lombardini e Francesco Valente, com quem forma o núcleo duro dos Buñuel.
Autores de uma das mais impactantes prestações da primeira noite, o quarteto intercontinental apresentou com incontestável mestria um alinhamento firmado nos temas que compõem o seu mais recente lançamento, Killers Like Us, tragicamente belo na sua forma tortuosa de ser, liricamente surrealista no conteúdo calculista que o constitui.
A dada altura, Eugene compara com particular humor os inevitáveis registos vídeo em concertos ao momento em que um parceiro interrompe o coito para captar uma fotografia (“I’m kind of trying to make a point here”, dizia). Ponto esclarecido, são cada vez menos as câmaras apontadas ao palco, uma energia tumultuosa e altamente lúbrica, Eugene nos seus calções amiudadamente reduzidos (mas sempre com o seu colete de cabedal vestido), cantando estórias tão desconcertantes quanto as do cineasta que dá nome ao seu grupo (e é fácil esquecermo-nos que se trata, de facto, de um grupo, tal é a imponência do seu líder). Este é o espetáculo de Eugene, e nós adoramos fazer parte dele.
Dez anos é muito tempo. Ao longo da última década, os Deafheaven conseguiram passar de enfant terribles do black metal – indiscutivelmente uma das esferas mais conservadoras da música extrema – para um dos seus atos mais celebrados, reescrevendo os manuais do género com engenho e inteligência. Sunbather, a mais reconhecida obra dos americanos (e o mais valioso documento na brilhante discografia do grupo), cruzou de forma inventiva os mundos do metal, do shoegaze e do pós-rock a partir de um ideal onde luz, crueza e melodia são indissociáveis, rompendo com a ortodoxia e as questões em torno da subcultura.
Não admira, portanto, que em 2021, em plena pandemia, se tenham atrevido a escrever mais um improvável capítulo num percurso feito de desafios. Infinite Granite, o quinto e mais recente álbum da banda, quebrou novamente o paradigma, reduzindo os desaires mais extremistas – a raiva gutural, os blast beats implacáveis – em prol de uma sensibilidade pop vincada e de cariz celestial. E foi precisamente com esse disco, transparente como um monumento de vidro, limpo e cristalino, que a banda inaugurou o espetáculo de quinta-feira, o quarto naquela sala e o terceiro no contexto do Amplifest (a última atuação decorreu na edição de 2019, na digressão de apresentação de Ordinary Corrupt Human Love).
George Clark, o mais aprumado dos frontmans no que ao universo metálico concerne, é a estrela da noite, um verdadeiro animal de palco que faz da voz o que quer, percorrendo os novos temas com a voracidade e devoção dos antigos (e os fãs foram prendados com favoritos como “Honeycomb”, “From the Kettle Onto the Coil” e “Brought to the Water”), culminando o alinhamento com o épico inevitável de “Dream House”, talvez a mais importante canção metal da última década que, pela sua dimensão global, transcendeu públicos além da esfera hardcore. E ainda bem.
Jessica Moss, compositora canadiana e violinista do coletivo pós-rock Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra, que fundou com Efrim Menuck, Sophie Trudeau e Thierry Amar no virar do século, apresentou na sala menor do Hard Club o que pode ser considerado um ensaio intimista em três atos: três composições, todas elas inéditas, algumas apresentadas pela primeira vez ao vivo, com durações entre 10 e 15 minutos que exploram as possibilidades da música minimalista e de câmara sob um ângulo pós-clássico.
Loops, overdubs e alterações de pitch são alguns dos ingredientes desta desorganizada “receita” (e receita foi um termo utilizado para descrever as “cábulas” que a artista espalhou pelo chão), incentivando o público, que convidou a sentar, a partilhar de algum feedback, alertando-o para a possibilidade de poder interromper a performance na eventualidade de as coisas correrem menos bem.
O público, partilhando dessa intimidade, aceitou, e encorajou: exausta (“vim de Montreal há menos de 24 horas”, explicava) e visivelmente emocionada, Jessica Moss mereceu uma justa ovação, desta vez em pé e com direito a uivos, tal como o canto dos lobos que escutávamos nos metros finais da última composição.
Estava tudo nas entrelinhas…
O quinto dia de Amplifest, e o segundo no contexto do Fim de Semana 2 do festival, era de surpresa: a organização prometia um grande acontecimento, nunca revelando o ato mistério apontado para as 17h, na sala maior do Hard Club, mas os sinais estavam lá — no quadro de honra à entrada do recinto, na cor das pulseiras, em posts (não muito) crípticos nos diferentes canais digitais do ato em questão. Sexta-feira, 14 de outubro, era dia de liturgia, de adoração ao sol, ao amor e aos deuses.
É uma tradição que já perdura desde as primeiras edições, a dos concertos-surpresa, e que no primeiro fim de semana acolheu o regresso de A.A Williams ao Hard Club. Desta vez, coube aos norte-americanos Liturgy, de Ravenna Hunt-Hendrix, a condição de artista-convidado, e que luxo foi receber um dos mais inventivos grupos da música extrema na sua estreia absoluta em Portugal.
Abominados por muitos, adorados por ainda mais, os Liturgy, que já passaram por diversas transformações, no som e no núcleo que o forma, são uma das mais controversas figuras no tecido black metal moderno, que vêm na conceptualização e na filosofia veículos tão ou mais importante como as questões formais em torno do som. O manifesto publicado em 2009, num simpósio dedicado a teorias sobre black metal, e que tem por base propor uma nova definição do género — de raíz americana, ao invés do primitivismo misantropo da segunda vaga escandinava —, causou controvérsia entre a comunidade, gerando um burburinho nem sempre positivo para a banda.
Hoje, com uma nova secção rítmica e uma mão cheia de trabalhos radicalmente inventivos, o quarteto atualmente formado pela baixista Tia Vincent-Clark, o baterista Leo Didkovsky e o guitarrista Mario Miron – com Hendrix a servir, novamente, de gancho para um organismo altamente cerebral – está mais implacável, mais conciso e inspirado do que nunca, sem descurar nunca das pretensões de outrora.
Repartindo o alinhamento em três partes, a banda percorreu os temas do álbum H.A.Q.Q., de 2019, primeiro, recuperando a matéria do álbum de 2011, Aesthethica, e indicando novas coordenadas ao som da novíssima “93696”, faixa titular do álbum com o mesmo nome, o sexto de carreira, agendado para março de 2023, e que promete oferecer uma nova injeção de hardcore lancinante — presente, passado e futuro num pequeno grande acontecimento que ficará cravado na memória dos convertidos.
Depois de uma exemplar demonstração de originalidade metálica, os canadianos Spectral Wound encarregaram-se de trazer o metal – e a sua variante mais umbrosa, o black metal – de volta à sua forma primordial, crua e primitiva. Orgulhosamente conservadores, são discípulos da escola nórdica, com fortes laivos de Gorgoroth, Darkthrone e outros estetas da segunda vaga, mas com uma produção e uma preocupação para com a melodia que os torna inegavelmente contemporâneos.
Em palco, apresentam uma configuração sem artifícios (nada de velas, carcaças ou santo-grais), partindo com fúria para as suas canções triunfais e sempre impetuosas, alicerçadas no frenesim da bateria e nas nebulosas paredes de som provocadas pelo trémulo das guitarras.
Se os Liturgy procuram questionar a identidade e o lugar da subcultura, propondo uma visão pluralistas e inclusiva, os Spectral Wound trazem a música de volta à sua natureza insular e orgulhosamente intransigente, sem se perder, contudo, nas diatribes nefastas e moralmente reprováveis dos seus antecessores.
O mais próximo que o segundo dia teve de um cabeça de cartaz, num evento que procura desmantelar esse tipo de distinções (Lingua Ignota, um dos grandes destaques desta edição, atuaria pelas 14 horas do dia seguinte), Anna von Hausswolff regressou ao palco onde foi feliz em 2016, também no contexto do Amplifest, com uma nova formação, um novo disco, e a ambição de quem correu uma maratona e venceu. Afinal, a cantora, compositora e reputada organista sueca enfrentou um mediático caso de censura, quando a sua música, que combina o drama e esplendor da música gótica com a natureza cerimonial do orgão, foi boicotada por fundamentalistas cristãos à porta de uma basílica em Nantes, onde estava planeado atuar.
All Thought Fly era o testemunho, o veículo para a mensagem interceptada que encontrou na Sala 1 do Hard Club um espaço seguro e de adoração. E falamos mesmo de adoração, no seu sentido mais religioso, de culto e veneração associado a um ideia universal de musicalidade. Em certos círculos, Hausswolff é tida como uma ameaça, a “alta sacerdotisa” das “harmonias satânicas”, observava um certo blogger; noutros, a autora de Dead Magic, magnífica obra de 2018, representa a promessa de uma nova realeza gótica, filha de uma geração de mulheres experimentalistas e irrequietas que têm na voz o seu principal condutor, de Jarboe a Diamanda Galás.
Ao vivo, quando não se apresenta no ambiente solene das igrejas, em concertos para voz e orgão de tubos, aproxima-se de um formato rock, de banda, assente nas fundações das guitarras, da bateria e da voz. Por vezes chega a lembrar a máquina cabal dos Swans, outras a tonalidade fúnebre de Chelsea Wolfe, mas sempre com o cunho único e transformador que lhe é característico, convidando o ouvinte à reflexão, isolando-o nos seus próprios pensamentos. É uma experiência reveladora, ora evocativa, ora apoteótica, situada entre a pop de natureza operática e uma ideia pós-moderna de música clássica.
No Porto, Hausswolff foi isto e muito mais, percorrendo com exemplar mestria o encanto das suas deslumbrantes canções, enlevadas por uma banda oleada e em topo de forma que conferiu novas dimensões às composições já por si imponentes da artista. Um triunfo.
Drones, bombas e sinfonias punk
Na Sala 1 do Hard Club, minutos antes de Kristin Hayter, ou seja, Lingua Ignota subir ao palco, vivia-se um ambiente solene e de grande respeito – pelo valor artístico inegável da cantora-compositora norte-americana, mas também por nos encontrarmos perante uma vítima de múltiplos casos de abusos sexuais (um dos seus agressores, revelado num comunicado publicado pela própria, é Alexis Marshall, vocalista dos noise-rockers Daughters, que se apresentaram na mesma sala, também no contexto do Amplifest, três anos antes). Sentia-se, talvez, um certo sentimento de culpa, ou de impotência, por não a termos protegido, a ela e a tantas outras vítimas, por não termos lido os sinais, claros, das suas canções, por já ser tarde demais.
Sinner Get Ready é a purga, e antes dele Caligula ou All Bithes Die, discos-manifesto que usam a dor como combustíveis para um corpo balístico de canções com tanto de profano quanto de sagrado, combinando ruído, experimentalismo e uma flagrante urgência emocional com a força telúrica da música clássica.
Munida de cinco focos de luz, que distribuiu a seu bel-prazer em vários pontos do palco, e de um piano vertical, cantou sobre a solidão, sobre a ausência e o julgamento final de Deus; cantou sobre a incapacidade de amar (e de ser amada), sobre o perdão e os fantasmas que mais a atormentam.
Chamar-lhe um caso de superação seria incorreto: Hayter compara as suas performances a exorcismos, e a linha que separa a sua prática da penitência é ténue, como no momento em que desce do palco para circular, foco de luz em punho, entre o público, num ato tão devastador quanto corajoso e tocante.
Tal como a poetisa, compositora e abadessa Hildegarda de Bingen, a quem resgata o seu nome, Hayter canaliza o trauma e as injustiças para criar, através da voz, um novo e inquietante idioma, assombroso e profundamente transformador.
Coube aos japoneses Envy, nucleares na difusão da música screamo no seu país, o concerto mais emocional do evento. Emoção que não conhece barreiras linguísticas (os Envy cantam todas as suas músicas em japonês), o sexteto de Tóquio, fundado em meado da década de 90, traçou com inteligência pontos que viriam a ser formativos na disseminação da música emo com as erupções do shoegaze e do pós-rock, constituindo a sementeira de onde despontaram importantes rebentos como os norte-americanos Thursday ou os compatriotas Deafheaven.
Ao contrário dos seus pares, que carregaram o legado do screamo tão cedo quanto o deixaram para regressar depois como sobreviventes (ver os casos recentes de Jeromes Dream e City of Caterpillar), os Envy nunca deixaram de criar. Salvo algumas alterações na formação original, o grupo liderado pelo vocalista Tetsuya Fukagawa construiu ao longo da sua carreira uma das mais fascinantes e consistentes discografias da esfera hardcore, preservando nos lançamentos mais recentes a qualidade dos registos de outrora. The Fallen Crimson é o último testemunho dos japoneses, e o mote para a arrebatadora performance que apresentaram no Hard Club, intercalando candura férrea com momentos de catártica explosão, espaço negativo e maximalismo canalizados a partir da força telúrica das guitarras, tão limpas e dolentes que parecem lacrimejar.
Christian Fennesz, o último dos românticos, capaz de condensar nas suas composições tão complexas quanto arrojadamente belas os génios de Peter Rehberg, Ryuichi Sakamoto e David Sylvian, apresentou no Amplifest um espetáculo modesto, sem manhas nem artifício, homem e máquina em diálogo tenso, percorrendo três décadas de dedicada investigação sonora.
Agora, o mais recente trabalho do compositor e guitarrista austríaco, reduziu a sua música ao seu elemento mais vital, a guitarra, que processa a partir de avançados arranjos eletrónicos numa pista de fundo especialmente gravada. No espetáculo apresentado na sala menor do Hard Club – um desvio estético bem-vindo numa curadoria militantemente de peso –, esse mesmo instrumento esteve presente, mas somente a espaços, já que é o computador (e uma parafernália de cabos e pedais de efeitos) que serve o principal gancho para o imperturbável laboratório de ensaios que são as suas performances ao vivo, situadas entre o sonho abstrato — o glitch, o eco, a dissonância – e o génio reconhecível (a inclusão de “Badminton Girl”, do seminal álbum de 2001, Endless Summer, foi uma agradável surpresa.
Para os devotos da Amplificasom, que seguem fielmente o roteiro de concertos desenhado pela promotora, os Godspeed You! Black Emperor, de Efrim Manuel Menuck, Mauro Pezzente, Mike Moya, David Bryant, Thierry Amar, Aidan Girt, Sophie Trudeau e Tim Herzog serão sempre os repetentes mais aguardados. Cada concerto da banda de Montreal é um acontecimento, um happening de proporções épicas, hermeticamente construído e delineado.
A fórmula é sempre a mesma, mas assim é com todos aqueles cujo som virou “escola”, e a lição do ensemble canadiano – a doutrina – é estudada religiosamente pelos seus discípulos. G_d’s Pee AT STATE’S END!, o sétimo e mais recente álbum do grupo, foi descrito, à data de lançamento, como um regresso triunfal à forma, mas essa forma esteve sempre lá, apenas camuflada — o que se perde em força e subversão ganha-se em detalhe e resiliência, e nunca esta resiliência, que não tem voz mas tem emoção, foi tão bela e luminosa.
A acompanhar os seus espetáculos, autênticos atos de fé, impossíveis de conter num palco de dimensão tão reduzida, está um conjunto de imagens analógicas de arquivo, em tons maioritariamente monocromáticos, de marchas, protestos e construções em bruto que acompanham a mais colossal sinfonia punk à face da terra.
É a banda sonora da distopia, das fábricas abandonadas e dos sonhos corrompidos pela máquina sanguinária do capitalismo; é a trilha para o fim do mundo como o conhecemos como o conhecemos; é intemporal, a música dos Godspeed, e extremamente necessária.
Kevin Richard Martins sabe carregar na sua música – a solo, como The Bug, mas também em nome próprio ou nos projetos God, King Midas Sound e Techno Animal – uma forte mensagem política, mas também sabe trazer consigo um arsenal de ritmos e culturas balísticos com um tanto de hedonista. E assim o fez, na sala maior do Hard Club, na última atuação do Amplifest, numa parceria conjunta com o festival inglês Supersonic, primeiro a solo, sozinho em palco, munido de dois gira-discos, um mixer e um punhado de seleções bombásticas; e depois na companhia de Flowdan, o mais fiel dos seus colaboradores, e a força motriz por trás da performance que o duo apresentou na noite de sábado. Retrato fiel dos subúrbios, foi a festa que o Amplifest merecia, a sensação de missão cumprida e a prova de que o evento, pensado ao detalhe pelo fundador André Mendes, não vive de uma mas sim de múltiplas linguagens – e que não só as do metal.
Fotografia: David Madeira