Semibreve: o entusiasmante presente da eletrónica passa por aqui

Semibreve: o entusiasmante presente da eletrónica passa por aqui

| Novembro 8, 2022 8:00 am
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Semibreve: o entusiasmante presente da eletrónica passa por aqui

| Novembro 8, 2022 8:00 am

Clássico e contemporâneo, tradição e vanguarda, elétrico e acústico. Há muito que o Semibreve procura subverter estas dimensões, traçando pontos de ligação entre o som, a tecnologia e o espaço público. Ao longo dos seus onze anos de história, levou música, mas também instalações, workshops e conversas em torno dos assuntos relacionados com a eletrónica e as artes digitais a espaços históricos da cidade de Braga, como a Casa Rolão, o Mosteiro de Tibães, o Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho e a renovada Capela do Seminário Menor.

Este ano, à semelhança do que aconteceu na edição de 2021, o Semibreve voltou a inaugurar lá no cimo, no Santuário do Bom Jesus do Monte, com a francesa Félicia Atkinson e a portuguesa Violeta Azevedo, que se encontraram pela segunda vez em palco depois de uma primeira apresentação no âmbito do Maintenant Festival de Rennes, em França.

Munida de um microfone, um piano de cauda e um laptop para efeitos de processamento, a cantora, compositora e artista visual Félicia Atkinson – cabecilha da editora Shelter Press – teceu delicados motivos para voz e piano, alternando entre o francês nativo e o inglês em monólogos imperceptíveis, de tão sussurrados, conferindo uma qualidade espectral quase-ASMR aos profundos exercícios que concebeu juntamente com a artista portuguesa, cujo instrumento de eleição, a flauta transversal, assumiu a dianteira da performance, alterando as suas propriedades – timbrais e duracionais – com recurso a um complexo jogo de pedais de efeitos. A espaços, pequenas gravações de campo – de pássaros, ventos e chuvas – vão sendo adicionadas numa floresta de sons hermeticamente organizados, modificando-os ao ponto de se tornarem irreconhecíveis.

Como os mais belos quadros de Turner, a música do duo luso-francês é planante e espacial, transformando o concreto em algo inquietantemente abstrato.

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No primeiro dia propriamente dito do Semibreve, com o programa de música já repartido entre os dois auditórios do Theatro Circo e a Blackbox do gnration, que este ano voltou a acolher a vertente do festival dedicada à música clubbing, coube ao queniano KMRU, valor inegável nos domínios da nova música ambiental, a nem sempre fácil tarefa de abrir as hostilidades de um evento — e fê-lo com o brilho e a destreza dos melhores. 

Placidamente colocado ao centro do palco, de costas para as tramas abstratas que preenchiam a tela de fundo do palco, o músico sediado em Berlim desafiou os limites da audiência com uma avalanche reverberante de sons cortantes e orgulhosamente dissonantes que se iam descodificando lentamente até à sua matéria mais tangível, revelando progressivamente os seus diversos ângulos e geometrias numa faixa de fundo onde cabem ritmo e silêncio, deriva ambiental e força industrial num todo imersivo que deve tanto às experiências concretas de Pierre Schaeffer como aos solilóquios lililianos dos Nurse With Wound.

Há uma certa natureza obnóxia na música que a dupla de Stephen O’Malley e François J. Bonnet apresentou na sala maior do Theatro Circo – na forma como esta vai sendo construída, sacrificando a harmonia em prol da tonalidade – que nos faz questionar se não estará na hora de deixar de medir os artistas exclusivamente pelas suas credenciais.

O primeiro é um guitarrista, produtor e artista visual de Seattle, membro fundador de grupos tão reputados como Sunn O))), Burning Witch ou Khanate e um dos coordenadores da editora Ideologic Organ; Bonnet é um compositor e músico franco-suíço radicado em Paris e o atual diretor do INA GRM, em cujos estaleiros nasceram as primeiras experiências electroacústicas. Mas o som que o duo pratica é morno.

Stephen acaricia a guitarra sem nunca a tocar devidamente, longe estão os drones subterrâneos que pratica com os Sunn; Bonnet é mais ativo, mas ainda assim discreto. Há uma mesa carregada de parafernália ao centro, mas como é apanágio de críticos e jornalistas (e, sejamos honestos, da grande maioria dos que se encontram na plateia), não se sabe muito bem para que serve. Manipular o som a partir de uma multiplicidade de canais? Ampliar o seu alcance? 

O que se sabe é que o encontro entre os músicos, resultante de uma parceria encomendada pelo festival, não apontou novas nem interessantes coordenadas, conformando-se com a apatia da deriva. Um erro de casting, mas a música continuava no gnration. 

Massagem auditiva para uns, massacre impiedoso para outros, Gábor Lázár propôs, através das suas produções rasantes, uma nova forma de música extrema, estática de tão pulsante que é. Discípulo da escola pontilhista de Mark Fell, que tem em Rian Treanor, Beatrice Dillon e Lorenzo Senni alguns dos seus signatários, o produtor de Budapeste apresentou, na Blackbox do gnration, uma das mais alucinantes prestações desta edição, som e luz em tensa conversação, num pára-arranca de lasers impetuosamente cortantes que fez temer a vida do PA.

Combinando síntese com técnicas pouco convencionais de composição, Lázár explora as possibilidades do timbre até ao limite, examinando a música como se de um objeto tridimensional se tratasse. Os ritmos são propulsivos e a energia que confere às suas produções em palco é instável e altamente cerebral, apostando na antecipação ao invés da libertação, desafiando os códigos quaternários das pistas de dança com o rigor técnico de um cirurgião.  

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“Rigor” é um termo que se aplica também à exemplar prestação que Carsten Nicolai, ou seja, Alva Noto, apresentou na sala maior do Theatro Circo. Tudo no processo do germânico é complexo, desde a gravação ao produto final, aplicando métodos pouco convencionais de produção como a programação ou o uso de ondas sinusoidais, estática, ruídos brancos e silêncio nas suas composições, que organiza segundo códigos clinicamente estruturados.

Tal como a música de Ryoji Ikeda, Mika Vainio, entre outros contemporâneos cujo som é cirurgicamente executado, a natureza estética do fundador da NOTON é fria, cerebral e altamente técnica, mas entre a teia de “cliques” e matéria negativa que povoa a sua obra há uma profunda ligação com a melodia.

Com uma configuração simples – uma mesa ao centro equipada de um computador e um ipad onde manipula as suas produções através de um sistema multi-canal –, o músico e artista visual de Berlim apresentou um espetáculo que vive da perfeita coordenação entre som e imagem, percorrendo na sua quase totalidade os temas que compõem o último dos três volumes que formam a trilogia Uni, publicado em 2018, e revisitado com mestria no aguardado regresso à casa que o acolheu pela última vez em 2011, precisamente na primeira edição do Semibreve. 

Onze anos depois – e porque a natureza irrequieta do músico nunca o permitiu fazer a mesma coisa duas vezes – a magia de Alva Noto continua a fascinar: pela sua propriedade porosa, deixando-se contaminar com inteligência pelas diferentes formas e geografias da música club, mas também pela capacidade que tem em ultrapassar as barreiras do tempo. E o público que o diga: a ovação que recebeu foi sem sombra de dúvidas uma das maiores a que se assistiu neste festival, e o raro momento em que um artista regressou ao palco para um encore. Não é mesmo para todos.

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É do saber comum que olhar para o céu é ver o passado. A grande distância entre os astros que povoam o espaço sideral faz com que a sua luz chegue até nós muito tempo depois de esta ter sido emitida. O mesmo se pode dizer da reverberação. A incidência do som sobre uma ou mais superfícies gera um grande número de reflexões, projetando-as além da sua origem. No pequeno auditório do Theatro, Lea Bertucci e Ben Vida propuseram um exercício semelhante, explorando as possibilidades da manipulação digital e – da reverberação em particular – através de uma imperceptível tertúlia de índole ominosa.

Com Murmurations, a estreia do duo em longa-duração, a servir como principal fonte sonora, cruzaram elétrico e acústico com o ímpeto e a mesma natureza irrequieta da música concreta, expandindo os limites da instrumentação e da voz além das suas propriedades naturais, mergulhando o ouvinte num mar de fantasmas – o passado das vozes projetado para o futuro-presente – tão assombroso quanto assombrado.

Mas o melhor foi mesmo guardado para o fim. Depois de uma memorável (e algo mítica) passagem pelo Salão Medieval da Reitoria, na edição de 2018 do Semibreve, a italiana Caterina Barbieri ascendeu pela primeira vez ao grande auditório do Theatro Circo para apresentar – com direção artística de Ruben Spini e projeção de Marcel Weber (MFO) – o mais recente álbum Spirit Exit, publicado na primeira metade de 2022 sob a cinta da sua light-years.

Diante de um pano plastificado que cobria a totalidade da tela, sob um manto denso de fumos brancos, a compositora de Bolonha, atualmente sediada em Milão, discorreu com fria elegância (e aqui importa referir a teatralidade do gesto, reforçada por uma prótese de desenho futurista que cobria o seu antebraço direito) alguma da mais fina eletrónica fabricada nos dias de hoje, estruturalmente tensa e de recorte progressivo, subvertendo os códigos formais do género com uma devoção que a torna irremediavelmente contemporânea.

Entre o caos contido e a catarse transcendental, congelou o tempo durante a maior parte de uma hora com recurso a arpejos evocativos, que modulava em tempo real com admirável domínio, e padrões repetitivos que fizeram desta experiência uma verdadeira odisseia espacial.

De fora ficou “Broken Melody”, um caso isolado na obra de Barbieri, onde a voz rompe com o rigor sintético das suas modulações, abrindo a porta à catarse e à emoção, que se vai ouvindo a espaços em pequenos motivos adulterados, levemente introduzidos nos metros finais da performance, e que formam a matriz humana das suas composições.

Numa conversa conduzida pela britânica Crack Magazine, em jeito de antecipação da edição deste ano do Semibreve, Barbieri salientou a importância da expectativa e dos “climaxes que não levam a lado nenhum” na sua música. No último dia do festival, a artista italiana escancarou as portas do tempo e do espaço, suspendendo o ouvinte numa dimensão onde a antecipação é o éter para a libertação espiritual.

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Fotografia: Adriano Ferreira Borges

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