Jenny Hval e o encanto da deformação na Culturgest
Jenny Hval e o encanto da deformação na Culturgest
Jenny Hval e o encanto da deformação na Culturgest
No passado dia 23 de novembro assistimos ao concerto da norueguesa Jenny Hval na Culturgest, em Lisboa, onde apresentou o seu mais recente trabalho, Classic Objects, lançado em março pela 4AD. Embora o grande auditório da Culturgest estivesse bem composto, vimos Hval de perto e sentimos a sua energia e vulnerabilidade de forma ainda mais próxima. A artista mostrou o seu desejo em estar ainda mais próxima do público, mas explicou-nos que se a banda se chegasse mais à frente, existiriam problemas no som, prejudicando a acústica do espetáculo. Para cumprir a missão heroica de nos proporcionar um bom concerto – diga-se de passagem que foi maravilhoso – Jenny Hval, Jenny (vocalista de apoio com o mesmo nome da protagonista da noite, uma segunda Jenny, “Jenny 2”, dependendo de quem se conheça primeiro, como disse Hval, em tom jocoso) e a restante banda, deixaram-se estar na posição outrora planeada.
Há a assunção cultural de que nórdicos são tão frios como o tempo dos seus países; mas Jenny Hval é exceção. Simpática e divertida logo ao início, Hval mostrou o seu entusiasmo por tocar no grande auditório. Antes ainda de apresentar Classic Objects, Hval deu-nos o aperitivo perfeito quando tocou o tema “Glowing Room” e logo a seguir nos brindou com “Female Vampire” de Blood Bitch. Depois de nos deixar arrepiados com a magia da sua música e o encanto da sua voz, Hval descalçou-se e lançou-se a Classic Objects. Ainda que seja bem mais reconhecida no mundo da música, a literatura é algo importante na vida da artista. Estudou literatura na universidade, escreveu para a coluna de um jornal e já lançou três livros, o último publicado em 2020, com o título inglês de Girls Against God. Com o objetivo de escrever outro livro durante a pandemia, Classic Objects surgiu da premissa literária e não foi pensado numa primeira instância como objeto musical. Contudo, passado pouco tempo, Hval sentiu que era mais fácil escrever uma música do que um livro, já que a melodia ajuda e a procura por palavras se torna mais fácil – processo que descreve numa entrevista com Isilda Sanches no programa Pontos de Luz.
Como fundo no palco, o que vimos foi isso mesmo: objetos. No entanto, nenhum objeto tinha a dimensão/ proporção correta, deformados e desfigurados, para não falar da ordem aleatória com que apareciam e o movimento giratório que maior parte deles fazia, numa espécie de ato visual contínuo performativo. Quando se iniciou o tema “American Coffee”, pudemos ver um quarto cheio de post-its onde se lê “Write the Book”, numa espécie de narrativa visual de como Classic Objects ganhou vida e forma. O seu spoken-word, a sua voz e a poesia – bastante feminista, estilo Virgina Woolf, embora mais discreta – relacionados com o espaço (físico e imaginário) materializam-se em concerto. Seguiu-se a canção que dá nome ao álbum, tema absolutamente lindo, em que Jenny se questiona sobre a vida, a morte e onde examina a forma humana e a material, numa espécie de deambulação mental.
Foram também interpretados temas como “Jupiter” – talvez Hval seja de Jupiter, porque é difícil acreditar que alguém com tamanho talento seja de cá – e “Freedom” – canta “I wanna live in a democracy / I wanna live in a democracy / Somewhere where art is free” referindo-se ao tempo da pandemia, em que a arte se mostrou essencial para o mundo e onde mostrou a sua preocupação em relação à economia da arte. O ponto alto da noite foi quando se escutou “Cemetery of Splendour”, uma das melhores canções do disco e uma das melhores performances ao vivo.
Nos visuais de fundo vimos também Jenny Hval acompanhada da sua cadela Cleo, a passear pela neve na sua terra natal, quando, já perto do fim, regressa a uma imagética de eleição (os vampiros, neste caso, explicando que passou demasiado tempo a ver a série Buffy the Vampire Slayer) quanto tocou “Buffy”, o seu mais recente single. Também foi curioso ver projetado um recanto de Lisboa onde Hval e Jenny foram passear, desconhecido pelo público lisboeta (os nórdicos são detetives por excelência) numa espécie de (des)formatação Google Maps 3D, o que tornou o concerto, já de si comovente, em algo muito especial. Terminou o concerto com “Year of Love”, onde canta sobre o contrato matrimonial norueguês: “But in the year of love / I did what I never thought I would do / And you may think I’m different / But listen, all contracts can be sung”.
Quem a escuta, sabe que Jenny Hval é mesmo diferente. Numa entrevista para o The Guardian, Jenny Hval explicou que algumas partes dela só existem em palco e que se esquece disso, lembrando-se apenas quando está a atuar. Foi um prazer estar perante o seu processo introspetivo de auto-exploração.
Fotografia: Vera Marmelo