O sonho de 80 vive na música dos Tempers
O sonho de 80 vive na música dos Tempers
O sonho de 80 vive na música dos Tempers
Em 1977, quando uma pequena revolução chamada punk – e um álbum em particular, Never Mind the Bollocks Here’s the Sex Pistols – mudou o rumo da música pop para sempre, os Suicide, que vinham do outro lado do Atlântico, romperam ainda mais com o formato popular de canção, sacrificando os cânones tradicionais do rock em prol de uma visão pós-modernista onde os sintetizadores são as novas guitarras e a drum-machine a nova bateria. Tempers
Décadas depois, há uma nova geração de músicos (duos, na grande maioria) interessados em cruzar a natureza errática do punk com os ímpetos vanguardistas da música feita de sintetizadores. Grupos como os norte-americanos Boy Harsher ou os suecos Lust For Youth têm favorecido uma estética fria, inteligente e livre de revisionismos, propondo novas e inventivas coordenadas às mais predominantes manifestações musicais da década de 80, como a new wave, a synth pop ou a coldwave. As editoras Sacred Bones, AVANT! e Dais Records são os principais berços desta nova vaga.
Ora, foi precisamente na última – que alberga, entre outros, trabalhos de Riki, Them Are Us Too ou Drab Majesty – que os Tempers, duo norte-americano formado por Jasmine Golestaneh e Eddie Cooper, encontraram o seu principal lar discográfico, tendo por lá editado três álbuns de originais. O mais recente, New Meanings, foi o mote para a estreia dos nova-iorquinos em terras lusas, que decorreu nos dias 25 e 26 de novembro, a convite da promotora Crowdmusic, no Musicbox, em Lisboa, e no auditório do Círculo Católico dos Operários do Porto.
Diante das cortinas de veludo que adornam o renovado auditório do CCOP, sob um contrastante jogo de luzes de cor, os Tempers subiram ao palco cerca de dez minutos depois da hora marcada, inaugurando a noite com uma recordação, ao som de “Hell Hotline”, retirada do álbum de estreia de 2015, Services, deixando desde logo claro uma das suas maiores qualidades: a capacidade de cruzar nervo pós-punk, com todo o esplendor glamorosamente negro desse movimento, com as volumosas paredes de som do shoegaze mais moderno, conferindo a atmosfera etérea que pautaria a totalidade do espetáculo.
Com Golestaneh na voz e Cooper na guitarra elétrica (a componente eletrónica, assente em nervosas batidas industriais e linhas de sintetizador ora bojudas, ora espectrais, chegava-nos com recurso a faixas instrumentais pré-gravadas), percorreram com exemplar mestria os temas que compõem a sua curta mas crescente discografia, da natureza poética de “Unfamiliar” ao charme quase-blasé de “Leonard Cohen Afterworld”, passando pelos ruídos celestiais de “Strange Harvest” e o pendor gloriosamente pop de “Capital Pains”, um dos mais celebrados temas dos americanos.
“Guidance” e “Sightseeing”, dois dos exemplos mais físicos do catálogo dos Tempers, encerraram o espetáculo em catarse — se até então a pista não tinha sido inaugurada, coube a estas duas canções, autênticas odes aos melhores clássicos da EBM, popularizada por grupos como os britânicos Front 242 e os alemães DAF, a tarefa de arrancar do público os seus melhores movimentos, tensão e hedonismo vinculados por um amor profundo ao romantismo gótico.
O regresso da banda para um curto encore, ao som de “What Isn’t There” (mais uma recordação do primeiro disco), serviu para relembrar que estes dois impulsos – o inquietante desejo de libertação e a inevitável elação – são as principais virtudes dos Tempers, e que o sonho de 80 perdura na música deste duo de Nova Iorque.
Fotografia: António Alte da Veiga