Surma em entrevista: “A pandemia deu-me a liberdade de criar esta nova Surma”

Surma em entrevista: “A pandemia deu-me a liberdade de criar esta nova Surma”

| Dezembro 14, 2022 9:16 am

Surma em entrevista: “A pandemia deu-me a liberdade de criar esta nova Surma”

| Dezembro 14, 2022 9:16 am

Surma, nome artístico de Débora Umbelino, lançou no passado dia 11 de novembro o seu segundo disco, Alla, sob a alçada da Omnichord Records. Trata-se de um disco bastante eclético, que vai beber a todos os cantos imagináveis do art pop, com texturas eletrónicas bastante visíveis. Além disso, destacam-se as letras que abordam temas sobre o conceito de identidade, de bullying e de uma autossuperação, que é também um quanto autobiográfica.

No final do dia 17 de novembro, estivemos à conversa com Surma via online. Falámos sobre todo o Alla e entrámos numa retrospeção acerca daquilo que tem sido a Surma desde que o projeto foi criado, em 2016.

Surma tocou no passado dia 11 no Porto. Os próximos concertos agendados são nos dias 16 (Aveiro, Gretua) e 17 de dezembro (Lisboa, Culturgest). Todo o trabalho dela está disponível no Bandcamp e outras plataformas streaming.

Como descreverias este teu novo álbum, Alla?

Surma (S) – Eu digo às pessoas que este álbum representa a minha vulnerabilidade em pessoa a 100%. Estes últimos cinco anos deram-me liberdade para maturar um bocadinho e criar esta persona que eu queria seguir artisticamente. Com essa liberdade, eu pude criar o tipo de atmosfera que eu queria para este segundo álbum. Por isso, sim, eu descreveria este álbum como “vulnerável”; e não é algo mau! Antes, eu achava que não era muito bom demonstrar vulnerabilidade em público, mas o tempo e a pausa que a pandemia me deu permitiu-me perceber – depois de algumas crises existenciais e de ter muitas coisas a acontecer na minha cabeça – que ser vulnerável faz-nos bem. É necessário ser vulnerável de vez em quando, até porque guardar tudo para nós não é nada bom. Aliás, este álbum refere isso mesmo: é ser eu mesma na verdadeira essência. Sem barreiras. Sem máscaras. Sem qualquer pressão da sociedade. Além disso, demore cinco ou dez anos, uma pessoa encontra a sua gente, que lhe quer bem e festa, e espero que o álbum impacte as pessoas desse modo, sem dúvida.

Qual é a música, dentro de Alla, que mais te diz algo no coração?

S – Isso é uma pergunta muito difícil… Todas elas têm um significado muito especial para mim…
Epá, vou escolher a “Aida”, porque foi das músicas mais divertidas de gravar em estúdio. Ela vai buscar muitas influências ao jazz, ao punk e à música contemporânea. Mas também porque o nome causou uma situação muito engraçada: uma amiga minha foi mãe recentemente, numa altura em que o “Aida” tinha sido uma das primeiras músicas a ser fechada, com título e tudo. Depois descobri que o nome do bebé era Aida! Nunca tínhamos falado de nomes de músicas ou de álbuns e coisas assim do género, por isso quando ela me disse que o bebé se chamava Aida, eu fiquei tipo: “como assim? Uau!”. Com isto, a música ganhou ainda mais história porque qual é que é a probabilidade de o nome de um bebé de uma amiga minha se chamar Aida? Nem é um nome assim tão vulgar [risos], mas coincidentemente era o nome da música. Sei lá, foi daquelas mensagens que o universo nos manda. Estamos todos aqui alinhados. Aliás, o álbum também fala disso: de pessoas e partilha, e o “Aida” diz-me muito no que toca a esse aspeto.

Antwerpen e Alla têm cinco anos de diferença. Como é que vês a tua evolução enquanto Surma durante o intervalo entre estes dois projetos?

S – Foi a minha maturidade enquanto pessoa e artista: fiquei mais solta no que toca ao modo de composição e de me demonstrar em público. Estes próximos concertos ao vivo vão ser mais teatrais, demonstrando o quebrar dessa insegurança que eu tinha. Basicamente, assumi-me como eu mesma sem qualquer medo.
Já no Antwerpen, apesar de ser eu mesma, sentia-me um bocadinho insegura em alguns aspetos. Eu era mais tímida nos concertos ao vivo, por exemplo; estava mais dentro de uma bolha. Mas também em termos de composição: arrisquei o que tinha de arriscar na altura, mas com Alla foi mesmo arriscar sem qualquer pensamento e ir só na onda. Antes retraía-me ali um bocadinho, mas agora estou muito mais solta.

Uma das coisas que marca tanto a Surma como a Débora Umbelino é a interdisciplinaridade artística. De que forma os outros tipos de arte influenciaram Alla?

S – Olha, tenho tido muita sorte em trabalhar com cinema, teatro e moda, que sempre foram as áreas artísticas que eu quis ligar com a música. Também li alguns livros que me inspiraram, especialmente nos nomes. Ah, e as artes plásticas, também. Até porque a capa foi feita por uma pintora que é uma grande amiga minha.
Eu acho que as artes deveriam absorver-se todas umas às outras e não se fecharem nelas mesmas. E o próprio videoclipe do “Islet” refere isso mesmo! A narrativa de toda a história é bastante teatral, assumindo uma parte mais dramática da coisa.Já que estamos a falar do videoclip: ele foi realizado pela Casota Collective e acabou por conquistar o prémio de Best Music Video no Echonation Audio and Film Festival, em Manchester. Além disso, ainda foi selecionado para semi-finalista em Cannes. Como te sentes quanto a este reconhecimento ao teledisco?

S – Gravar aquele videoclipe foi das experiências mais inacreditáveis, intensas e bonitas que eu vivi até hoje. A equipa era espetacular, trabalhar todas as salas de uma maneira específica foi espetacular, e foi dos primeiros vídeos onde havia uma narrativa bastante sólida. Sei lá, ter o papel de atriz foi intenso. Eu saía das gravações sugadíssima de energia, mas era uma coisa incrível e inacreditável.
Depois, saber que, após duas semanas, estávamos nomeados para Cannes e para um festival de cinema em Manchester foi: “espera lá, o que é que se está a passar aqui?”. Ficámos todos surpresos com a nomeação e ainda não acreditamos muito bem que ganhámos aquele prémio, mas foi totalmente merecido para a Casota: puseram ali todo o suor que tinham. Quando acabámos as gravações, ficámos tão emocionados que nos abraçámos todos, e tenho a agradecer à equipa e à editora [Omnichord], porque houve muito amor a pairar ali no ar. Eram só energias boas, o que ajudava bastante, e essas duas nomeações foram, sem sombra de dúvida, das melhores notícias que já recebi até hoje.

Falando de narrativa: esse videoclipe tem uma narrativa que, apesar de ser subtil, é também straight-to-your-face.

S – É! Chegar diretamente ao público era um dos nossos objetivos principais. Uma das principais referências para esse videoclipe foi o filme “A Voz Humana”, do Pedro Almodôvar, porque me tocou bastante a todos os níveis: sonografia, narrativa, guião, etc… Enfim, é algo muito cinematográfico e misterioso, mas também atirado diretamente para a tua cara com os seus temas pesados. E sempre quis dar uma forte quantia de vulnerabilidade ao vídeo, com aquele cliché da luz ao fundo do túnel. Afinal, há sempre um futuro lindo à nossa espera e não nos devemos prender ao passado.
Ou seja, a narrativa foi um pouco focada no presente e de ver as coisas de um lado mais positivo, com um conceito de persistência e força lá colado. Não é suposto ter pena da protagonista do vídeo. Aliás, eu agradeço aos bullies por tudo aquilo que me fizeram, porque sem essas experiências eu não seria a pessoa que sou hoje em dia!

Voltando agora à generalidade do Alla: conta com bastantes convidados de peso. Temos Cabrita, Angélica Salvi, Ana de Deus, Noiserv, entre outros. Como foi trabalhar com eles?

S – Desde o início do projeto Surma que quis trabalhar com eles, nem que fosse em formato de single. Por acaso, aconteceu em formato de disco. A ideia apareceu quando eu pensei: “okay, já estivemos tanto tempo sozinhos com a pandemia. Sem concertos e nada a acontecer. Porque não chamar grandes amigos meus que me inspiram a nível pessoal e musical para este álbum?”. A música só é bonita quando é partilhada, e eu sentia essa falta de partilhar as coisas em estúdio com pessoas amigas. E foi incrível.
Eu não lhes dei ideia alguma. As demos estavam prontas, e acabou por ser uma questão de tirar à sorte e ver quem é que ficava com o quê. Não havia regras, nada de “tu apareces neste minuto” ou “tu complementas aquele riff“. Foi apenas juntarmo-nos em estúdio e tentar recriar a atmosfera dentro do mundo deles. O Cabrita fez vinte e tal takes de saxofone, por exemplo! Por isso, foi uma questão de montar tudo em estúdio e ver o que encaixava melhor no puzzle. E se não fossem esses artistas todos, Alla não seria tão eclético e perderia muito a sua magia.

O próprio título do álbum, Alla, refere a isso.

S – Exatamente! É de todos para todos! É universal! Não é de um género específico, até porque eu também não queria dar esse caminho à Surma. No Antwerpen, eu tinha um sentimento solitário de estar a compor sozinha no estúdio e sentia falta de estar com mais pessoas e de ter opiniões externas por parte de músicos de géneros musicais completamente diferentes do meu. Achei que o Alla merecia um ecletismo e que a Surma merecia uma fase de experimentar coisas novas. E acabou por ser uma diversão autêntica gravar este álbum! Eu voltava atrás para repetir tudo de novo.Dois dias antes do lançamento do Alla, organizaste uma listening party do álbum no Collect, no Cais de Sodré. Qual foi o feedback que recebeste?

S – Foi dos momentos mais bonitos que tive, até hoje. Eu estava muito emotiva e chorei do início ao fim. Eu queria fazer um discurso, porque estava ali a Casota, a minha família, amigos meus, mas não… Eu abri a boca e a voz começou a falhar. Chorei desalmadamente e acabou por não se perceber nada. Por isso, o meu discurso foi só um grande “obrigado” geral [risos]. Mas foi incrível. Antes do evento começar, perguntaram-me quantas pessoas vinham, e eu disse que viriam umas 15 a 20 pessoas. Enfim, uma coisa mais intimista. Quando dou por mim, eram sete da tarde e estavam 120 pessoas para entrar! E eu a pensar: “mas o que é que se está a passar aqui?”.
Por isso, o feedback foi de muito amor, muitos comentários positivos e tanto apoio por parte de pessoas que me são tão queridas. Houve inclusive colegas músicos que já não via há tanto tempo que apareceram lá de surpresa! Enfim, foi mesmo muito emotivo, e acho que foi dos dias mais bonitos da minha vida. Foi mesmo incrível!

Também chegaste a abrir para os James num concerto em Manchester. Como foi o feedback por parte desse público em específico?

S – Olha, isso é outra! Quando me falam disso, eu fico tipo: “uau, pois é, isso aconteceu mesmo” [risos]. Eu ainda não acredito que fui abrir para James em Manchester… Foi incrível! Aliás, eu toquei às 5 da tarde e já estavam para aí oito mil pessoas. Os James só tocaram às 9 da noite. Além disso, o público inglês é aquele público que só quer festa, e estavam todos alegres, com as suas cervejas. Enfim, foi incrível! Eu disse ao público que estava nervosa, e eles acolheram-me como se fosse filha deles. Enfim, foi inacreditável.

E por parte dos próprios James?

S – Eles são muito terra a terra e mega boa onda. Foram ter comigo ao backstage agradecer por ter ido abrir para eles, e eu disse-lhes: “não, obrigada eu pela oportunidade incrível”. Eles foram mesmo muito boa onda ao contatarem uma miudinha de uma aldeia ao pé de Leiria para abrir para eles. Foi uma confiança e um tiro no escuro para os James. E ainda estivemos ali um bocadinho depois do concerto. Aliás, antes disso, eu já tinha falado com eles em Portugal. Falámos do processo de composição deles, que também é muito interessante, e criámos uma ligação muito bonita. Ainda hoje falo com o baixista, ele já me convidou para ir jantar à casa dele, no Porto [risos]. Enfim, é uma amizade muito bonita

E como começou essa relação e a subsequente ideia de abrires ao concerto deles em Manchester?

S – Eu abri para eles cá em Portugal, no Porto e em Lisboa. Chamaram-me ao palco para cantar a “Sometimes” com eles, inclusive. Passados três meses, eles apresentaram o novo álbum deles em Manchester, a casa deles. Ligaram para o Hugo [Ferreira], chefe da Omnichord, e disseram que teriam muito prazer que eu fosse abrir para eles nessa apresentação porque gostaram muito do meu concerto em Portugal. E… uau! Eu aceitei de imediato! Bora lá! Tive um concerto em Portugal no dia antes, por isso foi uma cena meio rock n’ roll [risos]. Fui apanhar o avião assim meio à pressa para ir tocar em Manchester e depois voltei para Portugal. Mas foi incrível. Fiquei mesmo muito feliz. Foi mágico.

Em 2019, participaste no Festival da Canção, com a faixa “Pugna”. Desde aí, tens estado sempre ligada à RTP e ao Festival da Canção, tanto que foste júri na última edição. Além disso, numa recente entrevista à Blitz, descreveste o Festival da Canção como a tua “segunda casa”. Entretanto, há pouco tempo, foi lançada a lista dos novos compositores para a próxima edição. Já viste a lista?

S – Já vi a lista e tenho a dizer que estou muito feliz. Muitos deles são amigos meus muito próximos, e tenho de tirar o chapéu à RTP porque eles têm apostado muito, de ano a ano, em bandas emergentes, em malta alternativa, em malta que está a começar mesmo de início e que só tem, tipo, uma música cá fora… Enfim, acho incrível que a RTP esteja a fazer isso. Eles querem mudar completamente a imagem que o Festival da Canção tem, com aquela coisa das baladas e cenas assim mais antiquadas, e respeito-os muito por isso. Trata-se de malta que está sempre a querer mais e melhor e, pronto, tu viste a lista, são bandas incríveis. Eu estou muito curiosa para ver o que eles vão trazer para o Festival! Eu acho que dar a visibilidade para esse pessoal, em pleno horário nobre, é mesmo perfeito e muito importante para nós e para a música em Portugal.

E qual é a tua música favorita na história do Festival da Canção?

S – “Anda-me estragar os planos”, da Joana Barra Vaz. Foi uma música que me tocou muito em termos de letra, de composição e de staging. Foi tudo muito simples, mas ao mesmo tempo muito impactante. A forma como ela estava a cantar foi brutal e por isso é das canções mais bonitas que ouvi no Festival da Canção até hoje.

Em 2018, lançaste uma cover do “Something in the Way”, dos Nirvana. Desde a edição dessa cover até hoje, a canção ganhou um boost gigante ao ser inserida no recente filme do “Batman”, realizado pelo Matt Reeves e protagonizado pelo Robert Pattinson. Achas que essa segunda vida do “Something in the Way” pode criar espaço para uma segunda vida da tua cover ao ser, por exemplo, inserida numa setlist?

S – Talvez! Já pensei em tocá-la em vivo, mas é um bocado complicado exportar essa cover num concerto porque é um bocadinho estranha em termos de produção, de estrutura, já para não falar daquelas notas no sintetizador. No entanto, admito que já pensei muita vez em inserir essa cover num concerto ao vivo, até porque Nirvana era a minha banda de eleição quando eu era adolescente: ajudaram-me a criar a pessoa que sou hoje e a explorar outras bandas dentro da música alternativa. Por isso, fazer essa cover foi uma pressão enorme (até porque o Kurt Cobain é uma lenda e os Nirvana são uma banda de culto), mas no fim, acabou por ser bastante bem recebida! Essa cover nunca foi esquecida mas… epá, não sei como pô-la num concerto ao vivo [risos].

Se pudesses dar um conselho à Surma de 2016, ano em que ela nasceu, qual seria?

S – Apanhaste-me agora de surpresa… Qual seria?… Ui [risos]. Não sei… [risos]. Se calhar, se eu fosse a irmã mais velha dela, dizia-lhe para ser um bocadinho mais assertiva em certas alturas e para não se rebaixar tanto. Dir-lhe-ia também para ser mais segura de si mesma.

E achas que ela iria ouvir?

S – Acho que não [risos].

Que artistas mais tens ouvido ultimamente?

S – St. Vincent está sempre lá no topo, mas também tenho ouvido bastante Emile Mosseri, que foi dos compositores mais inacreditáveis que eu descobri ultimamente: ele compôs a banda sonora dos filmes Minari e Kallijionaire, que têm rodado bastante por aqui. Depois, gostaria também de mencionar a Joanna Newsom, que também é incrível: vai desde o folk até ao jazz. E pronto, esses são os meus três fofinhos desde há uns meses para cá [risos]. Estão sempre no meu Spotify.

Para encerrar: tendo em conta que Alla aborda temas como identidade, androginia, bullying e tudo mais, queres dar uma mensagem a pessoas que possam ler esta entrevista e que possam estar a passar um mau momento por serem pura e simplesmente quem são?

S – Claro. É sempre muito complicado falar destes assuntos, porque são coisas muito complexas. No entanto, acho que o mais importante é que não se isolem. Por favor, não se isolem! Estejam com amigos que vos querem bem e falem daquilo que apoquenta. Isso é muito importante. Até porque, lá está, a vulnerabilidade é a parte segura de nós mesmos.

Também acho que a terapia é uma coisa que ainda é vista como tabu hoje em dia, mas não devia, porque ajuda muito as pessoas a saltar obstáculos de uma maneira mais bonita, de certo modo. Falo de experiência própria, pelo menos: a terapia tem-me ajudado a desafiar obstáculos e a corrigir coisas que pensava que estavam bem mas estavam mal, e agora sinto-me uma pessoa diferente. Acho que a terapia ajuda as pessoas a reverem-se nelas mesmas e a pôr as inseguranças um pouco de parte.

No entanto, isolarem-se é o pior de tudo. Por favor, não se isolem. Não guardem as coisas para vocês. Isso é mau. Vocês não estão sozinhos. Não estamos sozinhos no mundo. Estejam sempre acompanhados.  

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