Manuel Linhares em entrevista: “É impossível criar sem refletir o que nos rodeia”

Manuel Linhares em entrevista: “É impossível criar sem refletir o que nos rodeia”

| Janeiro 22, 2023 5:59 pm

Manuel Linhares em entrevista: “É impossível criar sem refletir o que nos rodeia”

| Janeiro 22, 2023 5:59 pm

Nascido na Horta e residente no Porto desde muito cedo, Manuel Linhares é uma das poucas vozes masculinas do jazz português, reconfortante e melíflua. Entusiasta das artes performativas, de composição e ensino – leciona aulas de canto e improvisação vocal – o artista estreou-se em 2013 com Traces of Cities, seguindo-se Boundaries, seis anos mais tarde.

Ao longo da carreira, Linhares teve o privilégio de aprender e colaborar com ilustres, tanto internacionais como nacionais, como Bobby Mcferrin, John Hollenbeck, David Binney, Meredith Monk, José Mário Branco, Carlos Barreto, Mário Delgado, entre outros.

Há aproximadamente um ano aterrou o seu terceiro longa duração, Suspenso, com o apoio da DGARTES e editado pela mão do Carimbo Porta-Jazz. Produzido pelo multi-instrumentista brasileiro António Loureiro, este registo contou, além da banda constituída por Paulo Barros no piano e José Carlos Barbosa no contrabaixo, com a participação de diversos convidados especiais – Coreto Porta-Jazz, David Binney, Frederico Heliodoro e Guillermo Klein.

Limitada a 300 unidades, a primeira edição de Suspenso superou todas as expetativas e esgotou celeremente no mercado japonês. Tudo isto se deveu a António Loureiro, artista com um forte percurso artístico no Japão, que apresentou o disco ao distribuidor nipónico Disk Union. Para a assinalar a reedição de Suspenso, Manuel Linhares organizou em outubro e novembro do ano transato uma série de concertos onde contou com toda a mestria do saxofonista americano David Binney, um dos músicos de jazz mais relevantes da atualidade.

No passado mês de novembro, trocámos umas breves impressões com o artista acerca da metodologia de composição, a colaboração com virtuosos do jazz, o hype de Suspenso no Japão, entre outros assuntos.

De modo a iniciar esta entrevista, gostava de ficar a conhecer um pouco melhor o teu extenso passado musical. Tens uma licenciatura em Jazz pela ESMAE, estudaste na Taller de Músics, em Barcelona e no Jazz Institute of Berlin. O que te levou a querer seguir a vida de composição e performance?

A música desde cedo fez parte da minha vida, comecei por ter aulas de piano em criança e fiz sempre parte de coros durante a infância e da adolescência, mas realmente só comecei mesmo a investir na música quando entrei para a escola de Jazz do Porto, ao mesmo tempo que entrava no curso de Arquitectura. E essa paixão pelo canto continuou a crescer até que ao terminar o curso de Arquitectura já era claro para mim que queria seguir música. Então fui para a Taller de Musics, em Barcelona e depois voltei para Portugal para ingressar no curso de Jazz da ESMAE. Nessa altura ainda estava muito interessado na performance e só no final da licenciatura, que a terminei no Jazz Institute of Berlin, é que o bichinho da composição começou realmente a aparecer. Acho que Berlim foi muito importante nessa abertura e exploração de universos compositivos. É uma cidade fervilhante e que me abriu muito os horizontes.

Já trabalhaste e estudaste com virtuosos como Bobby Mcferrin, José Mário Branco, Meredith Monk, entre outros. Nesta tour da reedição de Suspenso, tiveste a oportunidade de contar com a presença do saxofonista David Binney, um dos músicos de jazz mais relevantes da atualidade. Como é que tudo isso se proporcionou?

Realmente o David Binney é uma influência enorme há muitos anos e lembro-me de ouvir em repeat os seus álbuns sem nunca imaginar que isto poderia um dia acontecer. Parecia-me algo inimaginável e nem sequer ponderável. Mas na realidade os circuitos musicais têm destes encontros. Neste caso acabei por conhecê-lo por intermédio do meu produtor musical, o multi-instrumentista brasileiro António Loureiro, e ele gostou imenso das músicas e aceitou participar neste álbum. Entretanto, acabámos de fazer uma tour juntos, e o David é uma pessoa muito especial, extremamente criativo, sempre a inovar e procurar novas parcerias e encontros musicais. Talvez por isso a música que ele faz seja tão inspiradora.

Podes explicar-nos o conceito por detrás de Suspenso e a mensagem que pretendes transmitir?

Eu costumo dizer que Suspenso foi um bebé não planeado. Tinha acabado de lançar o meu segundo álbum Boundaries em 2019 e, entretanto, entramos numa pandemia que nos deixou sem palcos para pisar. Foi um período muito complicado.
Mas no meio desses períodos menos bons encontrei um refúgio na composição. Foi realmente uma forma de me libertar destas paredes que nos confinavam. E Suspenso foi no fundo um trabalho de criação como resistência e em que falo disso mesmo, das dificuldades que todos vivemos neste processo e na capacidade de resiliência que tivemos. Suspenso é a forma que a música toma nesse silêncio, a forma que a música toma nesse isolamento.

Após uma primeira edição de 300 cópias em janeiro de 2022, que esgotou em grande parte pelas vendas feitas para o mercado japonês, Suspenso foi recentemente reeditado. O que te faz sentir este maior reconhecimento que pareces estar a ter no Japão?

É verdade, foi uma dupla surpresa. Primeiro porque numa era do streaming e em que as vendas de Cds são tão diminutas não estávamos à espera de esgotar a primeira edição. E segundo, porque entrar no Japão desta forma é muito satisfatório. Perceber que a nossa música é muito apreciada em circuitos tão distantes geográfica e culturalmente dos nossos é muito gratificante. Neste caso, tantos os streamings têm sido muito altos como as vendas de Cds nesse território. Mas penso que isto teve que ver com o sucesso que o António Loureiro tem em território nipónico, e os seus fãs penso que terão chegado a mim através dele. Mas é interessante ver que esta música tem sido muito ouvida no estrangeiro, até mais que em Portugal. Este já é o teu terceiro registo de estúdio, sucessor de Traces of Cities (2013) e Boundaries (2019). Com o avançar da tua carreira, dirias que houve uma evolução no processo de composição e de influências ou ainda segues a mesma linha criativa que pautou as tuas primeiras obras?

Já passaram quase 10 anos desde o meu primeiro álbum e acho que com cada trabalho vou aprendendo muita coisa, nomeadamente em termos de produção musical e questões técnicas. Isto para dizer que, apesar de ter orgulho nos meus álbuns eles representam um pouco o lugar onde estava na altura. Acho que estas questões são mais do foro técnico e do trabalho de som. Em termos de conteúdo, acho que tenho feito um caminho próprio, que penso que tem tido alguma coerência, apesar de temáticas e formações ligeiramente diferentes em cada álbum. O facto de a grande maioria das composições serem minhas e de se tratarem de álbuns de temas originais criam desde logo um universo musical bastante pessoal, o que acaba por ajudar a esta continuidade. Mas no campo compositivo e de influências é natural que elas também vão evoluindo ligeiramente consoante tudo o que nos envolve artisticamente e no mundo. É impossível criar sem refletir o que nos rodeia.

Ao longo do álbum há vários temas interpretados em inglês – “Isolation 4”, “Sentimental Illness” e “Suspended – prática que é recorrente na restante discografia. Porquê a opção de agregar as duas línguas debaixo do mesmo teto criativo?

Eu costumo dizer em tom de brincadeira que sou um bocado bipolar e que por isso escrevo nas duas línguas. Mas, em realidade acho que há várias questões que contribuem para isto.
Primeiro porque vivi no estrangeiro e trabalho recorrentemente com músicos de fora, o que traz a língua para o nosso quotidiano. Depois, porque o jazz e todo o repertório de standards traz a língua Inglesa para o nosso trabalho, e essa influência é muito forte. E por último, normalmente componho primeiro as melodias e as harmonias, e por vezes, sinto que a música compreende melhor uma letra em Português, outras vezes em Inglês, mas também por vezes sinto que não precisa de palavras, e pode-se manter abstracta, tal como faço no tema “Lamento” do álbum “Suspenso”.

Capicua escreveu a letra para o tema “Dança Macabra”, o segundo single de Suspenso. Como foi toda a experiência de colaborar com a rapper portuense?

Fiquei muito contente, acho que a Capicua escreveu uma letra lindíssima e que elevou o patamar desta composição. Que aliás se completa com o vídeo que a Margarida Rêgo e o Miguel C. Tavares criaram para este tema e que convido a verem no meu canal do Youtube. Mas, voltando à pergunta. Eu e a Capicua somos amigos de longa data, e já tínhamos falado em diversas ocasiões de ela escrever uma letra para mim. Entretanto, enquanto andava a compor este álbum, gravei-lhe um esboço deste tema e enviei-lhe. Ela gostou muito e escreveu esta letra inspirada numa viagem que fez há uns anos aos Açores (minha terra natal) e que eu lhe fui mostrar a ilha do Pico. E assim começa a Dança Macabra – “O que acontece quando a lava encontra o mar”. Atuaste recentemente em Lisboa, Porto, Ponte de Lima e Madrid. Sendo um artista que já se apresentou por diversas ocasiões no estrangeiro (diversos países na Europa, Estados Unidos e Brasil), seria de todo descabido ires até ao Japão mostrar a tua obra?

Acho que faria todo o sentido ir ao Japão. Acho que estão reunidas as condições e interesse. Estamos a trabalhar nesse sentido, mas ainda é um pouco cedo para garantir que isso vai acontecer. O Japão teve o turismo fechado até há bem pouco tempo e o sector cultural ainda está a recuperar, e por isso, talvez com um pouco mais de apoio e trabalho consigamos chegar lá. Vamos ver. Mas sem dúvida que gostava muito que isso acontecesse!

 

Fotografia: Daryan Dornelles

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