Nina Nastasia em entrevista: “Queria pegar numa situação feia e criar algo bonito a partir dela”
Nina Nastasia em entrevista: “Queria pegar numa situação feia e criar algo bonito a partir dela”
Nina Nastasia em entrevista: “Queria pegar numa situação feia e criar algo bonito a partir dela”
Depois de doze anos afastada, dos discos e da vida pública, Nina Nastasia regressou ao ativo com Riderless Horse. Produzido por Steve Albini, no rescaldo de uma relação abusiva com o companheiro Kennan Gudjonsson, com quem partilhou a sua vida pessoal e profissional durante 25 anos, o disco – o sétimo na discografia da cantora-compositora norte-americana – é o retrato brutal e sem adornos de uma história que, mais do que um caso de sobrevivência, é um exemplo transformador de descoberta e reconciliação com o próprio.
Foi nos metros iniciais da década de 90 que Nina Nastasia, hoje com 56 anos, começou a escrever as suas primeiras canções, mas o seu álbum de estreia, Dogs, chegaria apenas ao virar do século. Steve Albini, responsável pelo som cru e direto de inúmeras obras do rock alternativo, foi o seu produtor. Nos anos entre o seu último lançamento, Outlaster (2010) e o seu sucessor, Nina passou por um doloroso processo de abuso e manipulação psicológica, com alguns trabalhos regulares pelo meio.
Em janeiro de 2020, numa tentativa de recuperar a sua liberdade, Nina deixou o seu companheiro. 24 horas depois, encontrou-o morto no estúdio que partilhavam em Nova Iorque. O resultado foi um misto de emoções: “é uma coisa estranha, expor alguns dos piores comportamentos do Kennan e honrá-lo ao mesmo tempo”, elucida-nos, numa entrevista por mail, sobre as canções que compõem Riderless Horse.
A propósito da sua passagem por Portugal, esta sexta-feira no gnration (atuou dias antes na Culturgest, em Lisboa), abordámos a artista para uma conversa sobre os percalços que levaram à concepção do seu novo álbum, “uma bóia de salvamento de Nina para outras Ninas”, como explica a organização da sala bracarense.
Recentemente mudaste-te para Vermont com a Misha, o teu novo cão. Como tem sido a mudança?
A mudança foi uma combinação de entusiasmo para com essa nova liberdade que tenho para finalmente fazer todas as minhas próprias escolhas. Uma delas é morar num lugar bonito fora de uma cidade grande, mas com essa mudança vem algum isolamento e medo — medo do escuro, da morte e de estar sozinha.
Embora tenhas editado oito discos em nome próprio, Riderless Horse é considerado, nas tuas palavras, como o teu primeiro álbum a solo. Porque dizes isto?
Bem, é um álbum a solo no sentido em que sou apenas eu a tocar ao longo de todo o álbum, mas desde que o Kennan morreu sinto-me extremamente só em tudo. Todos os meus discos são escritos por mim, mas toda a minha escrita costumava passar primeiro pelo Kennan — uma espécie de processo de aprovação. Ele era um editor muito talentoso. Ele sabia exatamente por que as coisas funcionavam ou não na linguagem. Ele sabia de poesia. Então se lhe mostrasse uma música que acabei de escrever para ele, por exemplo, ele tinha a capacidade dizer se não estavas a ser clara com essa frase e, para essa música em particular, seria melhor se eu entendesse o que tu queres dizer, então voltava para o quarto de banho onde escrevia sempre e trabalhava para torná-la melhor até obter a aprovação do Kennan. Aprendi muito com ele. O Riderless Horse foi o primeiro disco que não passou por este processo. Também foi escrito mais como uma confissão. Não estava realmente preocupada com a qualidade da música, e quando digo isso, quero dizer que não estava interessada em passar por nenhum processo de auto-edição. Só queria que as músicas fossem o meu primeiro pensamento sobre as coisas. Decidi fazer este álbum a solo porque este período da minha vida parece servir para provar-me a mim mesma o que posso concretizar sozinha.
Como foi voltar à estrada depois de tanto tempo? Em particular, durante a digressão de abertura para os Mogwai, como foi tocar para salas cheias em espaços consideravelmente maiores do que aqueles que costumavas tocar nos teus espetáculos em nome próprio?
Estou eternamente grata por essa digressão! Todos [os membros] dos Mogwai – equipa e banda – são pessoas fantásticas e amorosas, e os fãs não poderiam ser melhores. Não estava à espera disso. Eu estava tão nervosa antes dos espetáculos. Falei com um músico amigo e contei-lhe como estava nervosa, e ele disse “não te preocupes, diverte-te apenas. Estás a abrir, ninguém vai estar a ouvir de qualquer maneira. Aproveita apenas”. Senti-me imediatamente melhor quando ele disse isso, então pensei: “merda, ninguém me vai ouvir!”. Então escrevi uma música que poderia cantar a cappella para abrir os meus espetáculos. Mas vou-te dizer, não precisava de fazer isso. O público estava sempre a ouvir. Foi uma experiência excepcional e ficarei para sempre agradecida por me terem dado essa oportunidade.
O que podemos esperar do teu concerto em Braga? Os últimos alinhamentos têm-se centrado sobretudo no teu material mais antigo, em particular as canções do The Blackened Air. Sentes que ainda é cedo para enfrentar a morte do Kennan em palco?
Podes esperar mais músicas tristes. Estou a tentar montar o alinhamento com um pouco de cada disco. A morte do Kennan atinge-me em momentos aleatórios — pode atingir-me quando tiro um café. Mal posso esperar para que não seja cedo demais. Só tenho que enfrentar isso diariamente e esperar que continue a ficar um pouco mais fácil com o tempo. Tenho tocado músicas do novo disco. Vou passar por quase todos os [seus] temas durante esta digressão, mas vou confessar que a “Ask Me” é uma canção complicada para mim e não tenho certeza se a vou tocar. Se tivesse de dizer qual música representa melhor o disco, seria essa.
O The Blackened Air calha de ser o meu lançamento favorito da tua discografia. Como todos os teus lançamentos, é uma obra extremamente bem trabalhada, rica em arranjos barrocos para cordas, sanfona e percussão. O teu novo álbum, por outro lado, é notavelmente cru, sem grandes temperamentos. Podes-me falar um pouco sobre como decorreu o processo de gravação?
Fico feliz por saber que o The Blackened Air é o teu favorito! Foi o meu favorito de todos os tempos para gravar. Divertimo-nos muito, e o grupo de músicos foi perfeito para aquelas sessões.
Para o Riderless Horse, decidi fazer uma espécie de gravação de campo na casa de um amigo no interior do estado de Nova Iorque com o Steve Albini e o assistente Greg Norman porque achava que não conseguiria gravar no [estúdio] Electrical Audio, onde havia feito a maioria das gravações anteriores com o Kennan. Acabou por ser o ambiente perfeito. Uns amigos meus construíram uma casa de hóspedes com a forma de um silo na sua propriedade e foi aí que gravamos a maioria das músicas. Comemos, bebemos, choramos um pouco, rimos, contamos histórias sobre o Kennan e trabalhamos. É uma coisa estranha expor alguns dos piores comportamentos do Kennan e honrá-lo ao mesmo tempo. Todos na mesa conheciam-no e amavam-no, mas nem sempre toleravam o seu feitio. Então, quando finalmente contei às pessoas o que realmente se estava a passar na nossa relação, algumas pessoas não ficaram surpreendidas, e ao mesmo tempo também ficaram surpreendidas – se é que isso faz sentido. De qualquer forma, as pessoas envolvidas na criação do Riderless Horse entenderam que as pessoas são complicadas. Não são sempre só uma coisa. O Kennan era complicado. Ele tinha um valor extremo e ajudou a criar danos extremos. Ainda estou a tentar compreender isso.
Sei que passaste por um grande bloqueio criativo depois do Outlaster, algo que te fez experimentar drogas psicadélicas como último recurso para te retirar desse período de “estagnação”, como disseste à Laura Snape em entrevista ao The Guardian, mas logo após a morte de Kennan começaste novamente a escrever música, como se estivesses a “vomitar aquele disco”. O luto e a dor de perder um ente querido funcionaram como os gatilhos necessários para voltares a fazer música?
Nunca tive um bloqueio criativo. Continuei a escrever e a pintar para mim. Era a busca da música que era impossível. Infelizmente, a música tornou-se uma fonte de dor horrível devido ao relacionamento disfuncional com o Kennan. Estava sempre a sentir que estava a falhar, e não apenas a falhar com minha vida, mas a falhar com a vida dele também. Nós éramos parceiros na música. Construímos algo juntos, então não podia simplesmente fazer música sozinha como fazia antes de conhecer o Kennan. Teria sido uma traição. Naquele momento senti também que não tinha habilidades — era uma pessoa vazia, uma concha, então decidi parar e encontrar um trabalho regular para que ele pudesse continuar a sua arte. Estávamos os dois completamente presos na vida, e sim, acabamos por ter a oportunidade de participar numa cerimónia de ayahuasca. Essa é uma longa história que vale a pena contar um dia em detalhe, quase como um anúncio de serviço público para quem quer seguir esse caminho sem saber muito sobre isso. Tenho muito respeito pelo uso de psicadélicos, especialmente ayahuasca. Acho que pode ser interessante, útil. O xamã e a equipa que dirigia a nossa cerimónia eram irresponsáveis e não sabiam como lidar com minha reação à droga na segunda noite de uso. Tive um episódio psicótico que durou um ano e três meses. Descobri mais tarde, por meio de outros xamãs, que havia coisas que deveriam ter sido feitas durante e depois da cerimónia de modo a evitar os danos temporários que se seguiram. Mas talvez ter passado um ano e três meses com uma lesão cerebral e depois recuperar deu-me forças para tomar a decisão mais difícil que já tomei — libertar-me do vínculo de um relacionamento que estava destinado à ruína.
Disseste também que com este álbum não sentiste necessidade de esconder nada de ninguém. Trata-se de um processo terapêutico? Ou também funcionou ao contrário?
Tenho a certeza que dar tudo de mim foi terapêutico. Queria pegar numa situação feia e criar algo bonito a partir dela. Sinto que esse pode ser o trabalho de um artista. A fealdade está em toda parte. Criar arte a partir dela permite a discussão de uma forma positiva, permite que olhes para ela e talvez chegues a um entendimento — um acordo. O filme Naked é um bom exemplo. Estou a esforçar-me para chegar perto de algo tão magistral na arte. Mas o melhor da arte é que ela é subjetiva, é uma não-coisa. Nunca chegas ao melhor, mas também nunca chegas ao pior. É sempre um objetivo muito pessoal e contínuo.
Durante séculos, os cavalos foram usados em desfiles militares como um símbolo da cavalaria ou das tropas montadas que morreram durante a batalha. Poderá o teu novo álbum ser interpretado como uma homenagem à luta que Gundjonsson travava com a saúde mental? Ou serás tu o cavalo sem dono nesta história?
Nós os dois somos a história, portanto acertaste.