Bill Callahan no Theatro Circo: a redenção elétrica de um eterno contador de estórias
Bill Callahan no Theatro Circo: a redenção elétrica de um eterno contador de estórias
Bill Callahan no Theatro Circo: a redenção elétrica de um eterno contador de estórias
“All those crazy nights when I cried myself to sleep
Now melodrama never makes me weep anymore
‘Cause I haven’t got time for the pain”
Foi ao som destas palavras, professadas por Carly Simon em 1974, que Bill Callahan, para sempre o eterno cantor da dor, da angústia e do despeito, subiu ao palco do centenário Theatro Circo, em Braga, onde se apresentou pela primeira vez no último dia 16 de abril. YTILAER (“Reality” de trás para a frente) foi o mote para uma digressão que teve início em Lisboa, no Teatro Tivoli, uma noite antes.
Sucessor de Golden Songs, de 2020, e de Blind Date Party, uma oportunidade desperdiçada com Bonnie ‘Prince’ Billy, o disco – o sétimo do cantor e compositor norte-americano (décimo-oitavo se contarmos os trabalhos que assinou enquanto Smog) – é uma obra longa, composta por 12 canções com durações compreendidas entre os 3 e os 7 minutos, sobre os desafios da parentalidade, mas também sobre a natureza, coiotes e pássaros (e os pássaros parecem estar presentes em todas as canções de Callahan).
Foi sobre algumas destas estórias que discorreu, em jeito inconfundivelmente cavernoso, ao longo de noventa magistrais minutos de canções de devoção, música tradicionalmente americana mas que parece representar uma qualquer verdade universal, com tanto de tocante como de desconcertante.
Matt Kinsey, Dustin Laurenzi e Jim White, dos australianos Dirty Three, são os cúmplices de eleição, exemplares na execução de uma folk pastoral que em palco ganha contornos frementes. Diante de uma tela horizontal em tons de cor variável, indiferentes à efusiva receção do público, partiram sem grandes rodeios para “First Bird”, o mesmo tema que inaugura Reality, resgatando desde logo, e com uma candura que desconhecíamos até então, alguns dos episódios na recente aventura de Callahan enquanto pai de duas crianças.
“Cowboys”, um dos temas retirados de Golden Songs, foi um dos poucos desvios de um alinhamento focado maioritariamente em Reality, tal como foi “Keep Some Steady Friends Around”, original de 2005 que, a par de “Hit the Ground Running”, representaram os únicos regressos ao repertório Smog. Com um intenso gradiente de vermelhos como pano de fundo, “Partition”, mais uma das canções do último álbum, trouxe músculo e vertigem a um registo fundamentalmente recatado, a tensão entre os diferentes instrumentos – bateria irrequieta, saxofone rodopiante, baixo e guitarra em diálogo dissonante – a conferir o momento mais apoteótico do espetáculo.
Foi em jeito de deriva, ao som da cósmica “Planets”, que terminou o primeiro momento do espetáculo, antes do regresso com “Two Many Birds”, já no encore, fazer os deleites do público com uma rendição sóbria, limitada à condição de quarteto, da ornada canção de Sometimes I Wish We Were an Eagle. “Natural Information”, talvez a mais animada canção do cânone callahaniano, encerrou o alinhamento em tom invulgarmente lúdico.
A dor, contudo, continua a ter lugar reservado na alma de Callahan. Os tempos de misantropo miserabilista são agora mais luminosos, as canções mais quentes e os cenários mais bucólicos, mas é entre o vício e a labuta (“I feel something coming on / A disease or a song,” cantava-nos antes em “Everyway”) que continuam a residir os principais eixos do músico norte-americano, poeta da redenção, do sagrado e do mundano.
Fotografia: João Vilares