MoMo Festival: antevisão da edição de 2023

MoMo Festival: antevisão da edição de 2023

| Abril 5, 2023 1:39 pm

MoMo Festival: antevisão da edição de 2023

| Abril 5, 2023 1:39 pm

A cidade portuária de Roterdão prepara-se para receber, de 13 a 15 de Abril, nova edição do MoMo Festival, evento multidisciplinar que combina música, dança, performance e arte de rua numa confluência de artistas de cinco continentes e duas dezenas de países.

As ruas de arquitectura oblíqua e caótica da segunda maior cidade dos Países Baixos serão o “parque de diversões” da 21ª edição do festival: no que à música diz respeito, os concertos desdobram-se entre vários locais da cidade, desde bares e salas de concerto convencionais até centrais eléctricas, antigas igrejas e… sim, barcos.

Um dos principais motivos de interesse para marcar presença em Roterdão prende-se com uma visita exclusiva e particular dos Black Country, New Road, que iniciam a sua tour europeia com uma residência de três dias no festival. Também os Big Thief, folkies americanos que continuam numa impressionante sequência de discos, irão apresentar Dragon New Warm Mountain I Believe In You no terceiro e último dia do evento. Mas são mais de 70 nomes dos mais diversos quadrantes musicais, desde bandas já em processo de afirmação até outros nomes que chamam pelo lado verdadeiramente primal que nos leva a assistir a concertos, pelo sentimento único de descobrir novos sons e novas experiências numa performance ao vivo. Oferecemos algumas sugestões, já nos parágrafos seguintes.

 

Quinta-Feira, 13 de Abril
Sudeste Asiático atraca no porto de Roterdão

O primeiro dia de festival aposta sobretudo em nomes emergentes, e de latitudes várias. Dois dos mais curiosos reflectem uma crescente integração da cultura musical asiática na actual cena europeia: os Nusantara Beat são um sexteto de raízes indonésias com base em Amesterdão que se propõe a incorporar elementos da rica e variada música pop dos anos 60 e 70 do seu país de origem numa indie pop de groove moderno; também os Murky Ghost, chegados directamente de Taiwan, surgem com um projecto inovador que inclui spoken-word, beats que piscam o olho ao dub ou ao trip-hop e performances de dança.

Vindos do Reino Unido, destacam-se as actuações de Baba Ali, possuidor de um disco-punk revivalista que promete ser efervescente em palco, ou da voz cheia de soul e falsetto de Tony Njoku, acabado de se afirmar como um dos novos diamantes da pop britânica após o lançamento do seu EP de estreia, Our New Bloom. Confirmando o carácter eclético do MoMo Festival, haverá ainda tempo para o black metal dos Terzij De Horde neste dia inaugural, um dos vários nomes que actuam “em casa” e que é sempre um valor seguro do ciclo de festivais de metal europeu.

Sexta-Feira, 14 de Abril
A purga musicada dos Black Country, New Road

A saída do vocalista Isaac Wood não impediu que os Black Country, New Road continuassem o seu percurso como uma das mais intrigantes bandas do momento: com apenas dois álbuns, estes músicos britânicos de treino clássico possuem um talento particular para evocar as emoções mais universais através de uma dialética por vezes bizarra e uma instrumentação delicadamente composta, que deve tanto ao minimalismo de Reich como ao pós-rock de selo Constellation.

Lançaram no último mês Live At Bush Hall, uma gravação dos nove novos temas que têm constituído as actuações ao vivo da banda após a saída do seu principal vocalista. É de esperar que a segunda e principal actuação dos BC, NR no festival contemple boa parte dessas novas composições, entre elas os crescendos de “Laughing Song” e “Turbines/Pigs”, ou a afirmação a plenos pulmões que é “Up Song”: “Look at what we did together / BC, NR friends forever” ouve-se no refrão catártico que declara toda a comunhão que teima em não desaparecer do coração da banda, nem com a perda da principal voz desde a sua génese. Com pouco mais de vinte canções lançadas, já têm lugar cativo no firmamento do rock britânico, e este pode ser um momento particularmente decisivo para o testemunhar ao vivo.

Chegados de um mesmo fervilhante panorama rock britânico, os Yard Act prometem levar ao palco o seu pós-punk politizado e carregado de linhas de baixo musculadas e ritmos dançáveis, um rock energético que projecta e enriquece as actuações teatrais do carismático frontman James Smith, capaz de dar corpo ao vasto elenco de personagens da “working class” britânica que ilustra as suas canções.

Para os acólitos da voz-e-guitarra, a proposta nocturna também é aliciante, com três ótimas vozes no feminino: Indigo Sparke interpreta as suas melodias íntimas, que conseguem ter tanto de cristalino e íntimo como de gótico e intenso – talvez por isso seja uma feliz coincidência que actue num pôr-do-sol tão adequado às suas canções a meia-luz. Segue-se Katie Crutchfield, ou Waxahatchee, numa performance a solo da sua folk tingida de country e americana, sempre com um apurado faro melódico; e terminando a noite, um dos grandes destaques do cartaz, a hipnotizante Ichiko Aoba, songwriter japonesa e autora de alguns dos discos folk mais reverenciados da última década, da qual podemos esperar um ambiente de fantasia e intimidade etéreas, do qual queremos ouvir o mais mínimo sussurro.

A fechar a noite, é altura para os beats acelerarem o pulso das ruas de Roterdão, em particular com Kampire, uma das mais interessantes DJs do Leste Africano e parte integrante do colectivo Nyege Nyege, já um dos mais importantes selos da electrónica internacional.

Sábado, 15 de Abril
Testemunhar os Big Thief no topo da sua forma

Adrianne Lenker dá a voz e o coração ao corpo que são os Big Thief, uma banda que parece funcionar como um único organismo, tal é a relação simbiótica e primordial que demonstra ter entre os seus membros, até e especialmente nas suas performances ao vivo – desde as canções cuidadosamente preparadas até aos sorrisos e olhares cruzados, e passando pelo ar geral de despreocupação e casualidade como interpretam alguns dos seus temas, é difícil não retirarmos a impressão de que entre Lenker, Meek, Krivtchenia e Oleartchik se respira alguma da mesma intimidade que se escuta na sua música.

Apesar de baseados em Brooklyn, o som dos Big Thief soará muito mais facilmente ao de uma banda vinda das vizinhas montanhas Catskill, ou de algum lugar inóspito nos Apalaches ou no estado verdejante de Washington: existe uma certa placidez e simplicidade que pode ser vista como quase naturalista, só possível de alcançar fora do ruído da cidade. Esse sentimento chegava-nos aos ouvidos em qualquer um dos primeiros quatro discos da banda, mas Dragon New Warm Mountain I Believe In You, último registo de título críptico lançado no ano passado, eleva-o a outro nível: os Big Thief desdobram-se entre a folk e a americana, entre rock ruidoso e country provocador, entre os dedilhados da guitarra e a voz em suspiro de Lenker com a maior das destrezas. Possuem um talento para a melodia tal que as fazem parecer colhidas e transformadas a partir dos sons mais antigos e mais belos, mais do que premeditadamente compostas – quais druidas da canção. Este é o momento ideal para comungar ao vivo neste processo de alquimia do grupo norte-americano.

Do mesmo selo da 4AD chegam os Golden Dregs, projecto de Benjamin Woods, músico da Cornualha que faz uso de uma elegante voz barítono para projectar o seu songwriting cheio de histórias e estórias, suportado por uma instrumentação luxuriante de pianos e sopros, por vezes a fazer lembrar os Lambchop de Kurt Wagner.

Vindos de um panorama totalmente distinto, aterram em Roterdão os Mourning [A] BLKstar, colectivo de Cleveland que incute nas tradições do funk e da soul um instinto experimental e aventureiro, carregado de mensagem política. The Cycle, disco de 2020, tem em “Sense Of An Ending” um microcosmos da experiência BLKstar: a produção parece inspirada num hip-hop quase industrial, mas a batida soa mais ao groove do trip-hop, criando um ambiente de suspense que maximiza o poder das vozes poderosas da banda, com muito gospel e soul.

Vindos de Inglaterra, actuam Rival Consoles, moniker de Ryan West, veterano da electrónica experimental das últimas duas décadas; e também os Italia 90, outro dos ótimos valores da vibrante cena punk britânica, cada vez mais aclamados pelas suas enérgicas performances ao vivo. Já a pianista e compositora polaca Hania Rani é o principal nome de cartaz do MoMo no que à música neoclássica diz respeito.

O dia de fecho do festival conta ainda com duas performances colaborativas dos Black Country, New Road com Ichiko Aoba, cuja expectativa se torna difícil de refrear, dado o talento dos intervenientes e o seu enorme estatuto de culto.

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Sendo o MoMo um festival que se pode gabar de uma certa fama e tradição de lançar artistas que se tornam referências dos seus géneros respectivos alguns anos após a sua actuação em Roterdão, talvez olhar para os “nomes grandes” do cartaz seja o exercício errado a fazer. Resta-nos ir à descoberta do que quer que seja que nos espera nos edificios brutalistas e salas de concerto improváveis que acolherão as várias dezenas de concertos, certos de que algum segredo bem guardado haverá de se revelar.

 

Texto: Luís Sobrado

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