Primavera Sound Porto: as histórias, os percalços e as alegrias de um festival marcado pela chuva
Primavera Sound Porto: as histórias, os percalços e as alegrias de um festival marcado pela chuva
Primavera Sound Porto: as histórias, os percalços e as alegrias de um festival marcado pela chuva
À décima edição, o Primavera Sound está maior, mais global e variado. Entre os dias 7 e 10 de junho, o evento fundado em Barcelona em 2001, e que conheceu o congénere português em 2012, apresentou no Parque da Cidade do Porto o seu maior e mais ambicioso cartaz até à data, com mais de 70 artistas distribuídos ao longo de quatro dias de festival – uma novidade em relação aos anos anteriores, que se realizaram em três – e um recinto alargado que acolheu um total de 140 mil espectadores.
Edição marcada pela chuva, que não arredou pé ate ao último dia, foi também o ano em que mais se sentiu o desejo de expandir o evento, com mudanças consideráveis no desenho do recinto e do seu novo palco principal, agora denominado Palco Porto. Situado à entrada, de costas voltadas para o Atlântico, foi aqui que decorreram alguns dos espetáculos mais aguardados desta edição, mas as fracas condições do relvado, que rapidamente se transformou num lamaçal, bem como a pobre qualidade do sistema de som foram alvo de duras críticas ao longo do evento.
Kendrick Lamar, que já havia atuado naquele lugar há nove anos, foi o responsável pela maior enchente do Primavera Sound, e ao primeiro dia veio consumar uma vitória que estava ganha logo à partida. Talvez por isso, o espetáculo que o rapper apresentou no Palco Porto não tenha sido tão impactante como o que apresentou nessa cidade em 2014 (e dois anos depois em Lisboa, no festival Super Bock Super Rock).
A surpresa da estreia, ainda com good kid, m.A.A.d city na bagagem, e a confirmação de 2016, um ano depois de To Pimp a Butterfly ter mudado a narrativa, elevaram a fasquia deste há muito aguardado regresso, mas a receção amena a Mr. Morale & The Big Steppers, o mais recente álbum de Lamar e um dos que mais opiniões dividiu em 2022, pela forma como abordou questões fracturantes em torno das questões de género e da cultura de cancelamento, deixaram algumas reservas. Mas naquela noite de quarta-feira nada disso parecia interessar. Nem mesmo a chuva, que por vezes ia dando tréguas, impediu que uma multidão de convertidos debitasse cada um dos versos das canções que foram apresentadas — e foram muitas, num alinhamento generoso que passou a carreira do norte-americano em retrospectiva.
“Hello, new world, all the boys and girls / I got some true stories to tell”, cantava em “N95”, a mesma faixa que usou no arranque do espetáculo onde uma impressionante moldura humana se transformava rapidamente num mar de telemóveis erguidos em punho, com câmaras e lanternas ligadas. A receita é simples e vencedora: uma voz singular, uma mensagem urgente e um arsenal de instrumentais contagiantes constituem os elementos necessários para um serão de música livre e pensada, com um desenho cénico sóbrio (uma cortina onde se lia a mensagem “não é necessário disparar tiros de aviso”) e um grupo de dançarinos em inquietantes motivos coreográficos.
Kendrick não precisa de fazer muito, bastando-lhe conduzir o público pelos seus versos. O mesmo se pode dizer do seu primo, Baby Keem, que antes de o ter acompanhado no tema “Family Ties”, apresentou um competente espetáculo a solo naquele mesmo palco. Com ganchos a apontar para o Tik Tok e letras que podiam muito bem passar por captions do Instagram, o rapper de 22 anos incendiou o público com a confiança e energia dignas de alguém com a sua idade, percorrendo os temas do seu álbum de estreia, The Melodic Blue, com o brilho e a distinção de um artista cujo futuro é mais certeza do que promessa.
Na senda de Burial, Banksy e outras figuras cuja identidade foi durante muito tempo desconhecida, os ingleses Two Shell trouxeram ao Palco Vodafone um espetáculo que promete revolucionar o formato dj set. A música é elástica, os ritmos familiares, herdeiros da melhor tradição britânica do garage, mas a postura do duo, aliado a um elusivo desenho de palco, sempre com o intuito de preservar o anonimato, é em tudo incomum. Recordamo-nos da passagem dos KLF pelos Brit Awards, em 1992, onde Bill Drummond, de kilt e metralhadora em punho, disparou sobre o teto do emblemático Hammersmith Apollo, quando um dos seus membros, que se quedava sobretudo à retaguarda (responsável, imaginamos, pela componente instrumental do espetáculo, já que o outro se encarregava essencialmente em comunicar com o público), se dirige à dianteira do palco com um violino, num desvario de desafinações épicas.
Na cortina, um QR code que não acrescenta muito, mas que adiciona uma dimensão interativa à performance (uma rave virtual que se podia assistir a partir do ecrã dos telemóveis). Performance, porque o que os ingleses fazem em palco não se afasta assim tanto dessa prática, com os gestos e os desígnios da arte performativa, mas sem a pretensão que a carateriza. Aqui, o lugar é o do hedonismo, da fantasia e da incessante vontade de dançar.
Rosalía, ou como fazer da depressão furacão
Era um dos momentos mais aguardados desta edição. Rosalía, que há quatro anos havia atuado naquele mesmo evento, regressou ao palco maior do Primavera Sound, desta vez sob o estatuto de cabeça de cartaz. O momento foi celebrado com pompa e circunstância, com um desenho de palco aparatoso que em pouco deveu aos concertos apresentados uns meses antes, em Braga e em Lisboa, apesar dos limites técnicos impostos pelo palco, mais reduzido em largura e que não permitiu um enquadramento cénico tão elaborado como nesses espetáculos.
O imponente ecrã vertical, sintomático dos dias de hoje (o britânico Fred Again…, por exemplo, recorreu, a um formato semelhante) dá-nos a impressão de estarmos a assistir ao espetáculo a partir de uma história de Instagram. As projeções são feitas em tempo real (mais um indício de uma revolução digital em curso), as coreografias estudadas e o espaço cuidadosamente cartografado, com a artista catalã a fazer uso de toda a sua área, tal é a sua presença. Por vezes desce até ao público, interagindo com ele, mas é no cimo do palanque que se sente mais confortável, prestando palavras de admiração à tradição portuguesa do fado e do flamenco nativo.
Motomami, o mais recente álbum, é ainda o mote da digressão, representando a grande maioria do alinhamento. “de aqui no sales”, ameaçada pelo som atemorizante de motas de alta cilindrada, e “Malamente”, que não podia deixar de faltar, tal foi o seu impacto na carreira da catalã, foram os únicos temas retirados de El Mal Querer, disco que veio apresentar na edição de 2019. O resto prendeu-se sobretudo nas canções do seu último álbum, com “SAOKO”, um portento de pop transgressora, a abrir as hostes e a explosiva “CUUUUuuuuuute” (há muito que não se via uma artista pop imprimir tanto risco num registo de raíz comercial) na despedida. “Beso”, um dueto com o namorado Rauw Alejandro, e uma versão adulterada de “Heroe”, de Henrique Iglesias, foram algumas das novidades de um espetáculo sem grandes surpresas.
Surpresa, essa, terá passado despercebida a muita gente, mais preocupada em garantir uma posição privilegiada para o concerto da espanhola. Decorreu no palco Plenitude, uma das novidades no mapa do recinto, à mesma hora de Fred Again…, que atuava mais atrás no Palco Vodafone. Falamos dos irlandesas Gilla Band, ex-Girl Band, cujo concerto-relâmpago foi o que melhor representou o desconforto sentido durantes os primeiros dias de chuva.
Most Normal, um dos melhores álbuns do último ano para a nossa redação, cumpriu a profecia: obra onortodoxa, que recusa os padrões convencionais do rock, o terceiro álbum do grupo é um tratado transformador de reinvenção punk-industrial, um laboratório incessante de ritmos e texturas que em palco ganha novos contornos frenéticos. “Shoulderblades”, um dos temas que integram o seu segundo álbum, The Talkies, e que surgiu deliberadamente na apoteótica reta final do concerto, é ansiedade feita catarse, uma descrição que aliás sintetiza o dissonante corpo de trabalho dos irlandeses. Dara Kiely, o vocalista, é a encarnação deste espírito incorfomado, libertando através do seu impressionante bravado pequenos retalhos da sua vida pessoal, com tanto de abstrato quanto de pertubadoramente relacionável. E nós, tal como ele, entregámo-nos às nossas frustrações, às mágoas e tudo o que daí advém e gritámos, num bonito ato de libertação coletiva.
Os norte-americanos Shellac, que há muito se especializaram nesta arte de transformar tormenta em purga e libertação, mostraram horas antes que ainda é possível fazer da tradição – atuaram no festival pela décima vez, não falhando uma edição desde que este se passou a realizar no Porto – algo fresco e surpeendente.Encontro anual de ordem quase religiosa, que este ano se desdobrou em duas datas, com um espetáculo dias antes no B.Leza, em Lisboa, não deixou por isso de ter a sua carga devocional. O público que se avistava nas filas dianteiras do Palco Vodafone, estranhamente vasto para um concerto desta dimensão, era reduzido mas fiel, submetendo-se corajosamente ao volume intoleravelmente alto que saía das colunas, enquanto o power trio de Chicago conjurava o som cru e direto que fez deste um dos mais importantes estetas da esfera pós-hardcore — baixo deliciosamente tenso, guitarra contundentemente metálica, bateria de maravilhosamente pungente. Steve Albini, Bob Weston e Todd Trainer iguais a si próprios. Como sempre.
Os canadianos Alvvays, que têm em Blue Rev um dos mais fascinantes discos de 2022, provaram que se pode fazer muito com muito pouco. A música é aparentemente descomprometida – pop luminosa, lúdica e harmoniosa – mas detentora de uma vincada urgência emocional, ao qual acrescem ritmos certeiros, guitarras ruidosas e a candura férrea da vocalista Molly Rankin.
Uma dieta em tudo muito semelhante à dos neozelandeses The Beths, que tal como os Alvvays aliam os desígnios do indie moderno com as tradições antémicas da power pop, e que inauguraram momentos antes o Palco Super Rock, onde atuaram também os autores de “Archie, Merry Me”. Mais irrequietos que os seus pares, discorreram com nervo e soberba adolescente (e até uma certa dose de pop-punk) sobre os temas que compõem a sua curta mas promissora discografia, da estreia com Future Me Hates Me ao mais recente Expert in a Dying Field.
Já os britânicos Jockstrap estão a merecer outros palcos. A dupla de Georgia Ellery, violinista dos compatriotas Black Country, New Road, e do produtor Taylor Skye não teve sorte na disposição do horário, atuando no palco Plenitude a uma hora indesculpavelmente tardia. Porque a música que os londrinos praticam pode muito bem ser o futuro da música pop (é difícil ouvir o refrão de “Glasgow” sem imaginarmos as bandeiras em haste numa qualquer tenda de Glastonbury). Música que desafia as noções de género, algures entre o desejo de experimentar com as rotas desalinhadas do glitch e do breakbeat e uma marcada sensibilidade pop, não obedecendo nunca a padrões definidos ou fáceis de categorizar. “Futurista” e “progressiva” são possíveis chavões, mas nunca suficientes para decifrar o sincretismo dos ingleses, que em palco são tudo menos óbvios. O que é facto é que o que o duo faz funciona, usando as diferenças a seu favor para criar um corpo de trabalho livre e inventivo e que só poderia existir neste entusiasmante presente. Que não restem dúvidas: vamos ouvir falar mais deles.
A cápsula do tempo aterrou no Porto e não voltou a descolar
Coube aos Pet Shop Boys o momento intergeracional do festival. A dupla formada por Neil Tennant e Chris Lowe, que encabeçou o terceiro dia do Primavera Sound, assinou a sua primeira passagem por Portugal em muito tempo com um concerto em modo best of, passando em retrospectiva uma importante discografia cuja relevância vai muito além da década de 80, e que acumulou êxitos como poucos (o Guinness Book, por exemplo, considerou-os a dupla de maior sucesso na história da música britânica, com mais de cem milhões de discos vendidos em todo o mundo).
E engane-se quem pensa que se tratou de um espetáculo para cinquentões. Do nosso lado, uma miúda com os seus poucos mais de vinte anos cantava, handy-cam em punho, cada uma das canções dos ingleses. E não falamos apenas dos grandes êxitos, como “It’s A Sin”, “West End Girls” ou outros temas que não faltaram no alinhamento. Alguns destes, como “Go West” e um medley entre “Where The Streets Have No Name” e “I Can’t Take My Eyes Off You”, passaram por citar algumas das suas maiores referências (o primeiro, que valeu aos ingleses um segundo lugar nas tabelas britânicas, é um original dos Village People; o segundo é uma mescla entre dois êxitos dos U2 e Frankie Valli). Outros, como “Domino Dancing”, trouxeram os ritmos Hi-NRG de Instrospective, um dos álbuns mais inventivos dos Pet Shop Boys, e que na reta final dos 80s serviu de banda-sonora para algumas das mais avançadas pistas de dança do mundo.
No dia em que a chuva resolveu, por fim, dar algumas tréguas, as norte-americanas Le Tigre, ou seja, o mais conhecido projeto de Kathleen Hannah pós-Bikini Kills, deram aquele que foi talvez o mais lúdico e divertido espetáculo desta edição, mas também o mais politizado. Concerto de causas, com várias mensagens de apoio às mulheres e às comunidades queer e negra, alertando para a realidade difícil que estas vivem diariamente nas ruas, no trabalho e nos bairros norte-americanos, onde a violência policial cresce a cada ano.
“Quando começámos diziam que não éramos uma banda a sério”, revelavam a certa altura. Chamavam-lhes de “banda de karaoke” (e as letras projetadas na tela de fundo aludiam a tal acusação), mas, como fizeram questão de reforçar (não que fosse necessário, quem conhece as norte-americanas sabe que são artistas por direito próprio), são elas que escrevem, cantam e tocam todas as suas canções; são elas que dirigem os vídeos que acompanham muitos dos seus temas mais icónicos, e são elas que criam – e executam – todas as coreografias apresentadas em palco. “O que é que nos falta fazer?”, perguntavam. “Erguer um palco?”. Foi mesmo isso que fizeram, gritando palavras de ordem em “Fifty Years of Ridicule” (um dedo do meio a Rudy Giuliani), questionando a posição dos incontestáveis (“Misogynist? Genius?” repetiam em “What’s Yr Take on Cassavetes”) ou colocando o recinto à beira da implosão ao som de “Deceptacon”, tão importante para as desenvolturas electroclash do início do século.
E o que dizer da atuação de Pusha T, horas antes, nesse mesmo palco? Imperial na postura, dono de uma lírica invejável, é incompreensível a sua inclusão num palco com uma dimensão tão secundária. Num dia sem grandes surpresas, o rapper norte-americano, que chegou a ser anunciado para o último dia do Primavera Sound, foi responsável por uma das maiores enchentes assistidas nesse palco, incendiando a orla natural que o decora a horas estranhamente antecipadas para um artista deste calibre.
Sozinho em palco, com recurso apenas a um dj/hypeman, cumpriu no Porto o que não conseguiu fazer em Lisboa, em 2017, quando se estreou no Super Bock Super Rock. Já com Daytona e o mais recente Brambleton na bagagem, o antigo filiado da G.O.O.D. Music, de Kanye West, discorreu sobre três décadas de labuta onde não foram apenas os originais que brilharam, cantando os versos que emprestou a temas de Future (“Move That Dope”), Clipse (“Grindin”), Chief Keef (“I Don’t Like”) e o supracitado Kanye West (“Mercy”, “Runaway,”). “Estou apenas a devolver-vos o que me estão a dar”, repetiu por diversas vezes, agradecendo encarecidamente a todos aqueles que o acompanharam desde o primeiro dia.
Antes, os norte-americanos Wednesday assinavam a sua primeira atuação em Portugal. “Vocês gostam de música country?”, perguntava Karly Hartzman, vocalista, para uma plateia onde se avistavam alguns compatriotas da outra margem, antes de partir para “Chosen to Deserve”, um dos temas que anteciparam o seu fabuloso novo álbum, Rat Saw God. Retrato de uma América profunda, o disco, lançado no passado mês de abril, transporta essa realidade para um prisma contemporâneo onde o mundano é contado a partir de retalhos perturbadamente abstratos, e o que parecem ser confissões pessoais são na verdade circunstâncias com tanto de universal.
Mas entre a contundência do guitarrista MJ Lenderman (o seu álbum a solo, Boat Songs, é altamente recomendável) e a indolência de Xandy Chelmis, responsável pelos ambientes pastorais que criava a partir de uma guitarra lap steel, estão canções cruas como “Bull Believer”, um épico de oito minutos que começa por ser uma reprodução sangrenta de uma luta de touros, transformando-se depois numa fantasia de libertação sobre trauma e ressentimento no namoro. “Finish him”, suplicava Hartzman, entre gritos e risos nervosos, no final do concerto, repetindo a máxima (retirada, note-se, dos jogos de Mortal Kombat) até à sua condição mais apoteótica.
Passos em falso e emoções à flor da pele
No último dia, o rock voltou a ter palavra, com vários projetos de diferentes quadrantes e geografias vinculados por um forte sentido de comunidade (e uma queda desmesurada para a emoção).
Bastiões da cena musical de Olympia, berço para grupos como as Bikini Kill, os Beat Happening ou a editora K Records, que nos anos 80 apaixonou um ainda jovem Kurt Cobain, que chegou mesmo a mudar-se para a capital de Washington no final dessa década, os Unwound trouxeram ao Primavera Sound Porto um daqueles concertos que ficará para sempre cravado na memória dos poucos resistentes que se deslocaram até ao Palco Vodafone pelas duas da madrugada, à mesma hora em que uns gigantes Blur caminhavam para a reta final do seu épico regresso ao festival, dez anos depois.
O momento era assinalável: formados em 1988, ainda sob a designação Giant Henry, editaram sete álbuns, entre 1993 e 2001, até à sua dissolução um ano depois. Regressaram em fevereiro, já sem o baixista Vern Rumsey, falecido tragicamente em 2020, para uma série de concertos em sala nos Estados Unidos. No Porto, assinaram a última de três datas na Europa, todas no âmbito do Primavera Sound (atuaram, dias antes, nas edições Madrid e Barcelona).
Quatro jarras com cravos de cor branca e vermelha enfeitavam o palco onde os americanos atuaram, não se sabe se em honra ao país que já os havia acolhido por uma vez em 1998 (no âmbito da Expo 98), e onde essa flor virou símbolo da Revolução, ou se em honra ao fim de uma digressão que poderá não voltar a repetir-se tão cedo. Porque o que os Unwound fazem é especial (e muita vezes incompreendido): música de melónamos, para melómanos, onde as guitarras rugem e o ruído é o combustível para uma emoção impossível de conter.
Um som que raras vezes foi replicado com sucesso, e que eleva os autores de Leaves Turn Inside You – canto do sisne de um dos mais progressistas exemplos do pós-hardcore – a um patamar superior que transcende noções de género. Esse álbum, que data já de 2001, não foi, contudo, incluído no alinhamento, pormenor de somenos quando o que interessa é sentir na pele o diálogo dilacerante entre o baixo de Jared Warren, a bateria de Sara Lund e as guitarras angulares de Scott Seckington (mais uma adição recente na formação) e Justin Trosper. O último, que é também letrista e vocalista na banda, não tem meias medidas: a sua voz, abafada pelo som ensurdecedor das colunas, é incomensurável, guarda a dor e o desespero humano e reconforta a alma dos que nela vêm um algum tipo de a salvação.
Foi uma experiência ímpar, próxima da religiosa, a que os Unwound apresentaram na noite de sábado, uma que só é possível encontrar num grupo muito particular de artistas cuja música possui algo de salvífico — lembramo-nos da missa devocional dos Slint, uns anos antes naquele mesmo lugar, quando Trosper suplica repetidamente as palavras “wait, wait, wait, wait don’t go!” em “Kantina”, e o headbanging se transforma em purga coletiva.
Os Karate, que tal como os Unwound regressaram recentemente aos palcos, também fizeram os deleites daqueles que ainda recordam as primeiras edições do Primavera Sound Porto como as melhores, quando o rock alternativo dominava a grande fatia dos artistas em cartaz. Geoff Farina, guitarrista e vocalista da banda natural de Boston, não escondeu essa condição, e revelou mesmo que “não sabia se as pessoas ainda gostavam deste tipo de música”, relembrando que os 90s foram a sua década (e que até chegaram a passar pela Invicta nesse período) e que “é bom ver que ainda há adeptos de música rock”, não descredibilizando todos os artistas que passaram pelo festival nos dias antes da sua atuação, que consideraram fantásticos. Porque a música que os Karate praticam assenta nas fundações desse velho e resistente género musical, com a tensão do baixo (cortesia de Jeff Goddard) a servir o fio condutor para um som inteligente que tem no jazz, no pós-rock e nos desígnios da música emo alguns dos seus principais elementos.
Os PUP (acrónimo, cortesia da avó de um dos membros do grupo, para Pathetic Use of Potential) abriram as hostes do Palco Plenitude com um concerto que foi uma verdadeira prova de contra-relógio punk (“vamos tentar tocar o máximo de canções que conseguirmos em 35 minutos”, diziam, pouco tempo depois de terem subido ao palco). The Unraveling of PUPTheBand, o mais recente disco, foi o mote para um espetáculo que incluiu ainda temas dos seus antecessores, Morbid Stuff (2020), The Dream Is Over (2016) e o homónimo de 2013, que aos olhos dos fãs – e são muitos os que acompanham o percurso dos canadianos do outro lado do Atlântico – são já clássicos do punk moderno. Em palco, a energia dos discos é indomável, e o que ressalta é uma vontade gigante de celebrar a vida, independentemente do número de pessoas que tiverem à sua frente – no Porto, tocaram para cerca de meia centena com o ímpeto de quem o faz para dezenas de milhares.
Quatro anos depois do concerto que apresentou na edição de 2019, a última antes da pandemia, Yves Tumor trouxe as canções do seu mais recente álbum – Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds) é o seu título – a um palco maior (Super Bock) e uma audiência naturalmente mais avultada, numa performance tempestuosa que recuperou uma certa dimensão física que faltou nos restantes dias do Primavera Sound.
“In Spite of War”, um dos temas do novo álbum, levou-nos a temer o pior. As condições do palco não eram as melhores, o som que saía das colunas era abafado e Tumor, visivelmente agitado, apelava furiosamente aos técnicos de som para que estes aumentassem o volume da sua voz — o fim parecia iminente. E é aqui que reside o charme de Tumor, um oásis nos domínios da música pós-pop. Selvagem, errático e sempre imprevisível, no estúdio como em palco, leva-nos a questionar se o que estamos a assistir é encenação ou a mais pura representação do que um espetáculo de rock n’ roll deve ser. Nem sempre é fácil chegar-se a uma conclusão, e isso faz falta em eventos deste tipo, onde os resultados são cada cada vez mais expectáveis.
Até pode ter perdido algum do risco que suportava os anteriores Safe In The Hands Of Love e Heaven To A Tortured Mind (ganhou-o em glamour e requinte), mas não restam dúvidas que é hoje uma das mais entusiasmantes figuras a operar nas margens mais desalinhadas do rock moderno.
Já os suecos Drain Gang apresentaram uma proposta diametralmente oposta: três vozes (Bladee, Thaiboy Digital e Ecco2k) e um produtor (Whitearmor) à retaguarda, perante uma plateia de fieis e convertidos (chamam-lhe drainers), num espetáculo repartido entre o influente (ainda que nem sempre compreendido) repertório dos seus três membros principais. Da mesma Estocolmo que nos deu Yung Lean, o coletivo fez a festa com muito pouco, recorrendo em demasia às backtracks, o que nos levaria muitas vezes a questionar se estariam a cantar de todo. Mas isso pouco importa quando o que sai das colunas são graves subterrâneos e beats tão irresistíveis que se torna difícil não nos deixarmos levar por este ritual emo-rap terminalmente digital.
Tudo parecia estar a correr bem aos New Order, uma das últimas adições ao cartaz do Primavera Sound (vieram comemorar 40 anos de “Blue Monday”, o 12 polegadas mais vendido em todo o mundo). Quando abrem ao som de “Regret”, a última grande canção dos ingleses, antes da reforma na viragem do milénio, nada previa que, no êxtase de “True Faith”, um problema técnico (que se repetiu por duas vezes) levaria a um “apagão” de tal ordem que se chegou mesmo a pensar que o concerto teria chegado a um fim.
Temas como “Age of Consent”, “Sub-culture” e “Bizarre Love Triangle” ainda nos fizeram crer que estávamos perante a melhor atuação dos ingleses, mais impetuosos do que na prestação que deram no festival Paredes de Coura uns anos antes, mas um motivo de força maior levou a um desfecho ingrato. Quando o milagre finalmente se consumou, depois de duas infelizes interrupções, ao som de “Blue Monday” (seguiram-se “Temptation” e “Love Will Tear Us Apart”), já os nossos horizontes apontavam para outros palcos.
A próxima edição já está marcada: dias 7, 8 e 9 de junho de 2024.
Fotografia: Primavera Sound 2023 / Hugo Lima