Conferência Inferno: para eles, a música é um diário de uma vida vivida em conjunto

Conferência Inferno: para eles, a música é um diário de uma vida vivida em conjunto

| Novembro 15, 2023 3:36 pm

Conferência Inferno: para eles, a música é um diário de uma vida vivida em conjunto

| Novembro 15, 2023 3:36 pm

Uma das mais acarinhadas bandas nacionais da atualidade, os Conferência Inferno lançaram no passado mês de outubro o seu segundo álbum de originais (e terceiro registo discográfico em geral) intitulado Pós-Esmeralda, resultado triunfal de um processo de auto-descoberta que agora  chega ao fim. No momento em que a banda se prepara para o apresentar no Porto, com concertos no Ferro Bar já esta sexta e sábado, fomos conversar com o vocalista Francisco Lima na padaria/pastelaria Padrão Doce. Estranho, possivelmente irrelevante? Nem pensar,  porque no universo dos Conferência Inferno tudo é informal,  genuíno e orgulhosamente  comunitário. Mais do que uma entrevista, aquilo que se segue é, acima de tudo, uma humilde troca de ideias entre dois melómanos. Qualquer outra interpretação seria simplesmente pedante, e  isso é tudo o que eles se recusam a ser.

Bom, antes de mais,  foquemo-nos no curioso título que é Pós-Esmeralda.  Já explicaste que tem a ver com aceitar que nem tudo é colorido, que nem sempre as coisas correm bem – aliás,  a última faixa, intitulada “Distopia”, lida com a inevitabilidade da morte. Isto tudo tem a ver com a  vossa própria experiência enquanto adultos, ou com aquilo que observam da realidade ao vosso redor?

Bem, o título veio de duas  músicas do Pós-Esmeralda, que são a “Auto-Pânico”  e a “Alma” e gostei da imagem que a partir daí se formou na minha cabeça. A nível de conceito tudo isto funciona como um desabafo…  Quando um gajo era adolescente  tudo era o fim do mundo, sentia-se as coisas à flor da pele,  e agora  pelo menos para mim, uma coisa que tudo isto me ensinou é que temos de lidar com essas situações de cabeça para a frente, sem grande stress…

Ou seja, enfrentar a vida e as suas vicissitudes…

Sim, é isso, e como eu uso a escrita mais como um desabafo, e como alta terapia até, os temas acabaram por ser todos relacionados com estas temáticas.

Todavia, mesmo com estas temáticas mais contemplativas, o vídeo para “Fantasias” parece reunir, precisamente, uma ideia de utopia coletiva, com pessoas a beber, a fumar, a dançar ou até a jogar bilhar na praia… Há ali quase uma atmosfera de deboche,  como um sonho inebriante  apresentado de forma surrealista. Esse ambiente de animação boémia parece sintetizar toda a onda dos Conferência, sobretudo ao vivo, mas foi esse o objectivo, ou procuraram desenvolver  um conceito mais específico?

Sim. O vídeo foi feito pelo Pedro Fonseca e o Vasco Rafael, e essa música é sobre sonhos – não um em específico, na verdade –, mas sobre o que acontece quando vais dormir e nada faz sentido, mas  é tudo parte do teu subconsciente . E nós queríamos fazer um videoclipe  que não fosse uma história do início ao fim mas que tivesse antes várias partes , quase como se acordasses a meio e voltasses a adormecer. No fundo, fazer algo nonsense mas com algum sentido por trás, e foi esta a ideia ao qual chegamos. Na verdade, tivemos uma reunião e falamos sobre o que cada um de nós costuma sonhar — por exemplo, a cena com os capacetes de guerra: eu, muitas vezes, sonho que estou numa espécie de cenário bélico, com tudo destruído; posteriormente juntamos todas essas ideias e fizemos o videoclipe.

Sim,  faz sentido, os sonhos são frequentemente assim — fragmentados, não lineares…

Sim,  por isso é que também aparecem umas vinte pessoas, muita gente mesmo. Mas quisemos, efetivamente, dividir tudo por fragmentos: se reparares, tens uma parte, depois tens outra… Nada é linear, é super realista e nada daquilo é suposto fazer sentido, tem uma natureza abstrata.

Sim, reparei nisso. Outra coisa que me parece bem notória em Conferência, desde o EP de estreia até agora, é um sentimento de crescimento contínuo, como se cada obra fosse uma reação à anterior.  Nesse sentido, sinto que este Pós-Esmeralda é  o álbum para o qual estavam a caminhar desde o início, o que queriam alcançar e ainda estavam a aprender como fazer. Também o veem dessa forma?

Pode-se dizer que sim, efetivamente. O Ata Saturna (álbum que precedeu Pós-Esmeralda) foi uma produção muito mais exaustiva, no sentido da composição; nós chegamos lá com ideias só – quer dizer , na verdade algumas canções já estavam completas –,mas com este chegamos ao estúdio já com as músicas todas feitas do início ao fim; claro que houve algumas que sofreram alterações e assim, mas, em geral,  já estava tudo preparado. Acho que aquela que demorou mais  tempo a completar em estúdio foi a “Pigmento” por ter aquela colagem de som e depois a parte final que é mais jam – ou que se assemelha a uma jam, pelo menos–, mas entramos no estúdio com tudo muito bem definido; por exemplo, o Raul já tinha as batidas e os sintetizadores bem delineados – refiro-me aqui ao próprio som e não tanto à composição –, o Zé também,  e as letras estavam já igualmente escritas… enfim, tudo se encontrava feito, foi só gravar.

Ainda bem que mencionaste a “Pigmento”, pois gostava realmente de a discutir. Li  que foste inspirado pela “Trippin’ With the Birds” dos Stereolab quando eles a tocaram no Hard Club; é seguro dizer, então, que os  Conferência são um organismo mutável que vai crescendo à medida que adquire mais experiências e  aprendizagens musicais?  Ou seja, o que vivem gradualmente enquanto melómanos dita o que produzem enquanto músicos?

Ah claro, nós todos ouvimos muita música diferente, mesmo quando não estamos a tocar. Às vezes até vamos para o estúdio simplesmente para beber um copo e curtir um som, e como estamos quase sempre juntos escutamos muita coisa , não apenas um género de música. Somos influenciados por aquilo que gostamos, no fundo.

Gostava de destacar também a estupenda  viagem que é o instrumental “Realidades” — pessoalmente uma das minhas favoritas do álbum. Por um lado funciona como um   interlúdio,  mas foi algo que surgiu de forma espontânea na sala de ensaios? Fala-nos do processo de criação.

Bom,  nós tínhamos feito a “Fantasias” que até acho que foi uma das primeiras em que incorporamos o baixo, e depois estávamos ali a tocar e pensamos “ok, e se fizéssemos um instrumental”? E saiu aquilo, no final… Curiosamente , ao vivo, costumamos tocar sempre as duas juntas.  O próprio nome “Realidades” surgiu por não ter letras, logo não é necessário verbalizar nada já que existe somente aquela realidade; depois tens a “Fantasias” em que é preciso , claramente, descrever o que se está a passar. Mas as duas são indissociáveis, isso é certo.

Ou seja, no caso do instrumental, a realidade acaba por ser aquele som que se ouve ali gravado…

Sim, é isso, e realmente acaba por ser indissociável da “Fantasias”, mas concordo, é uma espécie de interlúdio. Contudo, neste álbum, pensamos nas coisas meio antecipadamente, do género “ Olha ,vamos fazer um instrumental”,  ou, no caso da “Pigmento”,  quisemos conscientemente escrever uma música meio dub… Foi  tudo idealizado e só depois posto em prática.

Mais uma vez contaram com o Ricardo Cabral [baterista dos Baleia Baleia Baleia] como produtor, tal como tinha acontecido no Ata Saturna e no EP Bazar Esóterico.  Dirias que essa escolha contínua se prende com a familiaridade que ele proporciona?

Acho que é exatamente isso. Sinto, inclusive, que ele também cresce connosco, porque até ao Bazar Esotérico o Ricardo só produzia bandas de rock,  com guitarras e tal, o que é bem diferente de estares a trabalhar com uma banda de eletrónica , no sentido técnico do termo e claramente que se nota a evolução  do Bazar Esotérico para  o Ata Saturna… Aliás, este aqui está melhor que esses dois, na minha opinião. Isto a nível de som, portanto. Ainda por cima,  ele é uma pessoa que não tem medo de dizer o que sente – se vê algo que não lhe agrada, diz, e se nós não gostamos da opinião dele,  também  falamos –,  pelo que confiamos uns nos outros. Importa também referir que o usamos como técnico de som – na verdade temos três, mas ele tem prioridade por ser o nosso produtor. E sentes que assim não tens de te preocupar com muita coisa, porque podes fazer o teu trabalho e ele faz o dele. Isso, para nós, é bastante importante.

Acaba por ser saudável essa relação, pois a familiaridade não atinge aquele descuido ou falta de espírito crítico. Se há algo que não está bem, essa opinião é transmitida sem medos…

Exato, e ainda por cima ele é direto no modo como se exprime, não poupa! Além de já conhecer o Zé  desde miúdo, por serem ambos de Lamego, portanto é tudo imediato  e nem temos de pensar… Se vamos gravar um disco, sabemos que vai ser com ele.  É um bocado o que acontece com os videoclipes: o Fonseca foi responsável por todos, desde o primeiro até agora, e o Vasco já é a segunda vez que colabora connosco depois de ter previamente trabalhado no vídeo para a “Ausente”. Não é simplesmente por serem nossos amigos , é também por admirarmos essas pessoas e sentirmo-nos bem a trabalhar com elas. Conhecem bem o ecossistema da banda, o que é fundamental.

E no que diz respeito ao alinhamento, como funcionou o processo?  É que o álbum flui de forma magistral, com todas as peças no sítio certo, como se fosse um puzzle sonoro cuidadosamente montado…

Hum… isso dependia das situações. Por exemplo,  com a “Mayday”  a reação foi logo “ok, esta vai ser a  nova “Sina” [música de abertura do anterior Ata Saturna].

Então, seguindo esse raciocínio, a “Distopia” é a nova “Apocalipse” [faixa que encerra Bazar Esotérico]? 

Talvez, talvez… São parecidas , sim. Lá está , essa, quando a terminamos,  também pensei imediatamente” ok, temos aqui uma boa canção para encerrar o álbum”. No entanto, isto não é exatamente uma obra conceptual,  não o pensamos do início ao fim- foi acontecendo. Depois, no fim da gravação, ouvimos as canções e fizemos uma votação para chegar a um consenso. 

Muito bem. E já que falamos, há pouco, na presença ativa do Ricardo Cabral, que faz parte da Saliva Diva: este ano tiveram oportunidade de tocar no GentriFest, precisamente organizado por esta vossa antiga editora, e na Festa dos 18 anos da Lovers, a vossa atual label.  Como é navegar por estes dois mundos, quase como se tivessem duas “casas”  discográficas de importância idêntica no vosso percurso?

Bom, nós antes de lançarmos pela Saliva , que foi responsável pelo formato  físico do Bazar Esotérico, editamos pelo Colectivo Farra, que é a nossa label, depois houve a tal edição física pela Saliva, ao qual se seguiu a proposta da Lovers. E lá está, é um bocado como a questão dos videoclipes ou de quem produz: nós gostamos de trabalhar com pessoas que admiramos , que é o que sentimos em relação ao pessoal da Saliva,  assim como com a malta da Lovers; no final, decidimos ir com eles. Seja como for, estamos muito próximos de todos, somos amigos da Saliva…

E eles dos Conferência. Ainda outro dia marquei presença num evento deles onde a “Apocalipse” passou no soundcheck, no intervalo…

Sim, sim, e  nós outro dia tocamos a “Quero ser um ecrã” dos Baleia, mas sim, esse local também era o nosso estúdio, há muitos anos, portanto esse evento  proporcionou realmente a despedida que merecia.

Sim, nem mais , e a vossa participação lá foi muito engraçada:  lembro-me que  tocaram, no primeiro concerto, o “ Bazar Esotérico” na íntegra e depois o “ Ata Saturna” todo… e ainda houve uma terceira atuação no mesmo dia.

Foi, foi… Estava é um calor… Eu estava a suar por todos os lados (risos).

Estava, sim, lembro-me bem.  Bom,  uma coisa bem notória em Conferência é a vossa crescente popularidade. E estava aqui a pensar… A longo prazo, acham que poderão  ter sucesso suficiente para poder viver exclusivamente da música, ou achas que isso seria um bocado complicado?

Bom, complicado é sempre, principalmente aqui em Portugal, mas era bom, claro. Todos nós gostaríamos que isso um dia acontecesse, de pagar as rendas e as contas e ter um nível de vida aceitável sem estar sempre a contar trocos só com um projeto musical. A solução passa por fazer várias coisas  porque é impossível, para já, viver da música, a não ser que sejas uma banda de primeira liga ou tenhas pais que te consigam suportar. Quer dizer, o Zé é técnico de som e vídeo, por isso não é só músico , tem essa parte técnica… O Raúl tem outro emprego, assim como eu, por isso todos nós nos esforçamos para que possamos continuar a tocar. Há ainda a questão de isto não  ser algo muito previsível ou fixo… Se calhar num mês dás três concertos e noutro tens simplesmente um, ou num mês vendes não sei quantos discos e noutro muito menos… é completamente aleatório.

 

“Nós temos até um espectro muito grande de pessoas a acompanhar-nos, desde  pessoal mais jovem de dezoito, dezanove ou vinte anos, até pessoal mais velho de cinquenta, sessenta que reage por se recordarem dos anos oitenta quando nos ouvem”

 

Pois, não é fácil, não. Por curiosidade, como explicam essa tal  popularidade de que aqui falávamos ? O que acham que vos distingue de tantas outras bandas do cenário musical ao ponto de as pessoas se relacionarem tanto com o vosso som e postura?

Sabes, honestamente não sei explicar… Eu próprio já notei, mas nem sei bem porquê, foi uma coisa que aconteceu. Posso dizer, no entanto, que quando estava a crescer, uma coisa que adorava era ouvir a música de outra pessoa e identificar-me com o que estava a dito, e acho que isso é um bocado o que acontece connosco — há uma identificação com as letras, com a música…

Sim, é verdade. Tenho até uma amiga que me disse que uma das coisas que mais admira nos Conferência são as letras , o português bem trabalhado…

Sim, e eu já tive amigos que a primeira coisa que me disseram quando me conheceram é que tinham ouvido a “Ausente” e que se identificavam muito. E isso é das melhores cenas que pode haver, fico mesmo feliz…

Claro, o que importa é que reajam…

Sim, sem dúvida.

Mas, pessoalmente,  eu acho que tem a ver com isso , com as letras , o modo como a vossa sonoridade vai buscar elementos sonoros do passado – os GNR do Independança, por exemplo – e os incorpora de forma contemporânea.

Pois, isso é verdade. Nós temos até um espectro muito grande de pessoas a acompanhar-nos, desde  pessoal mais jovem de dezoito, dezanove ou vinte anos, até pessoal mais velho de cinquenta, sessenta que reage por se recordarem dos anos oitenta quando nos ouvem… Nós temos essas influências portuguesas  – GNR,  Ban –, mas  também outras coisas como, por exemplo – e esta é uma das grandes nossas inspirações – o Disintegration dos The Cure…  Na “Pigmento” nota-se muito isso, por exemplo. As nossas influências são vastas.

E  agora que se encontram em fase de promoção, consideram conscientemente tocar em fests e sítios diferentes? Falo aqui de um Primavera ou , porque não, adoraria ver-vos no Amplifest.

Sim, podemos tocar nesses festivais , lá está, um bocado maiores,  mas a primeira  coisa que tem de acontecer é valorizarem-nos , e refiro-me aqui a nível monetário também, porque são festivais que têm patrocínios de megas corporações,  e acho que as bandas portuguesas são muito desvalorizadas  nesses festivais em prol das bandas estrangeiras. Portanto, se houver uma proposta decente  que possa ser considerada, era fixe  tocar num desses eventos, sem dúvida.

Sim, entendo-te perfeitamente. Mas até mencionei o Amplifest porque os Conferência não são, de todo, uma banda típica  desse festival, mas ao mesmo tempo podia funcionar- era diferente , e certamente que seriam introduzidos a um público menos familiarizado com o vosso som.

Era interessante, sim. Agora que penso nisso, o festival mais longe  do nosso espectro onde já atuamos foi o Black Bass, em Évora , mais virado para o garage rock e afins… Nós até comentamos  que éramos a única banda lá que não tinha uma guitarra, mas o pessoal curtiu também porque temos uma sonoridade um bocado punk…

O tal punk sem guitarras…

Sim, e no caso do Amplifest, como temos um lado mais denso, talvez o pessoal se identificasse com isso, não sei… Mas era interessante participar no evento.

E para terminar com uma pergunta não sobre os Conferência,  mas sobre o vosso projeto paralelo, os Ilusão Gótica… Já tive oportunidade de ver ao vivo, mas para quem não conhece, podias discutir o conceito?

Claro. Bem, é um devaneio total , fazer o que nos apetece. Nós só temos uma coisa gravada  que nem tem  nada a ver com o que tocamos ao vivo, em todos os concertos produzimos uma coisa diferente. O desafio é juntarmo-nos uma semana antes e dizer “ muito bem, agora vamos fazer isto” e é sempre diferente , uma forma de descontração também. Claro que em Conferência tocamos também o que nos apetece, mas aqui é mais introspetivo, temos mais liberdade no sentido estrutural  da coisa… E foi algo que surgiu da pandemia. Estávamos na minha sala e montamos os sintetizadores todos à volta da mesa  no chão  e pronto, o mote é sempre esse… Nós nem estamos a pensar gravar álbuns nem nada , porque  é suposto ser algo éfemero, do momento… E serve também para explorar outras coisas que podem influenciar Conferência Inferno, eventualmente.

E planeiam dar alguns concertos, mesmo nesta fase de promoção à novidade de Conferência?

Sim, sim, dia 10 de Dezembro na Socorro, no Porto, e a 22 de Dezembro, em Vila Real, com os Kurtis Klaus Ensemble.

Fixe, boa banda. E muito rapidamente,  nestes concertos de apresentação no Ferro vão tocar o Pós-Esmeralda na íntegra, não é?

Exato… Não queremos dizer muito, para manter a surpresa, mas sim, vamos tocar o álbum todo , na íntegra, e depois outras músicas. Não podem ser concertos muito longos pois temos bandas a tocar antes de nós e DJs depois,  mas vai ser muito bom!

Entrevista: Jorge Alves
Fotografia: Sandra Garcez

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