A luz reveladora de Alan Sparhawk (e o bizarro-barroco dos Lambchop)
A luz reveladora de Alan Sparhawk (e o bizarro-barroco dos Lambchop)
A luz reveladora de Alan Sparhawk (e o bizarro-barroco dos Lambchop)
A 5 de novembro de 2022, Mimi Parker deixava este mundo aos 55 anos. Vítima de um cancro nos ovários, com ela partiu a voz de “Sarah”, “Lullaby” e outras canções que formam o cânone clássico dos norte-americanos Low, banda que fundou com o marido Alan Sparhawk nos meandros dos anos 90. Essas duas canções, retiradas do álbum de estreia do grupo, I Could Live in Hope (1994), representam apenas a ponta do iceberg de uma banda que assistiu a um desafiante processo de reinvenção nos últimos anos, com o mais recente álbum, HEY WHAT (2021), a consumar o som laboratorial conjurado anos antes no antecessor Double Negative (2018).
Na passagem de Sparhawk pelo CCB, no âmbito do Misty Fest, anteviam-se, por essas mesmas essa razões, momentos de profunda reflexão — sobre o luto e todo o processo que o rodeia, mas também sobre o modo como o artista traduziria essa condição através do som. O que não esperávamos ver, contudo, era uma banda livre, com um pendor irresistível para os grooves, a praticar um jazz-rock lúdico e descomprometido. Foi assim, afinal, que a formação composta por Sparhawk na guitarra, Owen Mahon na bateria, Dave Carroll no banjo elétrico e o filho Cyrus no baixo iniciou a última de duas datas em Portugal, depois da passagem pela Casa da Música, também no contexto do Misty Fest, na noite anterior.
Sol de pouca dura, já que os instantes que se seguiram foram em tudo muito mais lúgubres. Irrompem as guitarras e as paredes de som abrasivas, a bateria ponderada e um banjo mais desalinhado do que pastoral, e à segunda canção sabemos desde logo que o que nos espera é uma noite de emoções à flor da pele. Sparhawk, de cabelos longos e grisalhos à solta, confronta a morte não como um fim, mas como um recomeço, invocando nestas canções divindades, fantasmas e memórias com uma sinceridade profundamente reveladora. Mas o tom nunca é derrotista, e o alinhamento parece caminhar sempre em direção a algo maior, procurando luzes onde muitos encontram escuridão.
A justaposição de sons, vozes e fragmentos que povoam os trabalhos recentes dos Low, mais ruidosos e dissonantes, é ainda uma miragem, mas há algo de radical na forma como pai e filho preenchem o vazio deixado por uma figura maternal, reduzindo a experiência de tocar música ao vivo à sua qualidade devocional. Música como ato coletivo de fé? Quando a vida nos prega rasteiras, o caminho para a reconciliação pode muito bem passar por aqui.
Baralhar e voltar a dar
E o que dizer do concerto dos Lambchop? Se a performance de Alan Sparhawk representava, a priori, uma incógnita, Kurt Wagner tratou de garantir que o espetáculo que apresentaria momentos depois, também no CCB, não seria coisa de somenos. Na companhia do produtor e pianista Aandrew Brody (que em tempos fez folk de baixa fidelidade enquanto Fog), o cantor-compositor norte-americano, voz maior (ainda que idiossincrática) do cancioneiro do seu país, apresentou um espetáculo incomum, para voz e piano, que poderá ter confundido alguns dos fãs mais distraídos, mas quem acompanha o autor de Nixon há mais tempo saberá que na voz elástica de Wagner, capaz de alternar entre o falsete e o grave cavernoso, esconde-se um desconcertante contador de histórias, provocador quanto baste para levar algumas das pessoas a abandonar a sala à terceira canção (aconteceu).
Vestido a rigor (mas sem descurar o habitual chapéu de pala), Wagner percorreu três décadas de canções – com especial foco no mais recente álbum, The Bible (2022) – ao longo da melhor parte de uma hora, conferindo-lhes novas roupagens. O brio de “You Masculine You” e outros temas ricos em enlevações orquestrais deram lugar a um corpo de canções austeras do ponto de vista dos arranjos, reduzindo-as à sua matéria mais primitiva – a palavra – e reforçando a sua economia emocional. Mas foi o despojo de Is a Woman (“Bugs” e “The New Cobweb Summer” integraram o alinhamento) que se fez sentir com mais intensidade na noite de Lisboa, o som cru e existencialista desse disco a orientar um espetáculo onde o gesto e a graciosidade de Wagner tomaram conta da narrativa.
Mestre na arte de baralhar e voltar a dar, fez-nos crer, por várias vezes, que era a nós que se dirigia quando nos cantava sobre caras, paixões e outros quejandos, quebrando a barreira invisível que separa público do artista. Lembramo-nos do casal confuso que questionava, momentos antes do concerto, se a noite já teria chegado ao fim, e perguntámo-nos se os presentes nesta longa (dois espetáculos repartidos em mais de duas horas de música) e memorável noite sabiam no que se estavam a meter? Afinal, acompanhar as crónicas do músico norte-americano é entrar em rota de colisão com uma teia elíptica de referências nem sempre fáceis de desconstruir, mas recompensadoras para quem se atrever a aceitar tal desafio.
Fotografia: Luís Sousa/Música em DX