5 Discos, 5 Críticas #82

| Maio 1, 2024 2:51 am

No 82º 5 Discos, 5 Críticas abordamos alguns dos álbuns mais curiosos de 2024, dando também um salto ao passado com uma análise à nova coletânea dos StereolabStill House PlantsClaire RousayDJ Anderson do ParaísoAndré Júlio Turquesa são os restantes artistas em destaque.

Still House Plants – If I don’t make it, I love u [Bison]

No campo grande dos Still House Plants, as hipóteses são infinitas. If I Don’t Make It, I Love U, lançado em junho deste ano pela Bison, selo que lacrou, aliás, todos os registos dos ingleses, é o farol de uma banda confortável na zona de desconforto, com força e personalidade suficientes para se esquivar a comparações fáceis.

Uma pesquisa pela secção de artistas relacionados, por exemplo, leva-nos mais rapidamente para o trabalho de investigadores rítmicos como Chris Corsano ou Greg Fox do que aos pilares fundacionais do rock matemático, encabeçado por grupos como Polvo e Don Caballero. Isso diz muito sobre o carácter indefinível do trio londrino, incessante na busca de um som que mais parece morar em lado nenhum. 

Um organismo mutável, complexo e abjeto a leituras simplistas, que tanto se move entre o pára-arranca das guitarras angulares como é capaz de conceber momentos mais próximos da candura, If I Don’t Make It, I Love U coloca no mesmo plano melodias exíguas, ritmos inebriantes e um lirismo tão hermético quanto intransigente — experimentalismo irrequieto, que se espraia pelos interstícios de vários géneros sem receio de romper com o padrão e os tempos instituídos.

Long Play, o longa-duração de estreia editado em 2018, já mostrava um corpo em desrespeito para com a ortodoxia. Fast Edit, lançado dois anos depois, pegou nesse mesmo desregramento e ampliou-o ainda mais, desmembrando-o em tramas oblíquas que bebem tanto do drum ‘n’ bass como do UK garage. If I Don’t Make It, I Love U, o terceiro dos ingleses, é um álbum de reflexão existencialista, com padrões circulares de bateria e uma guitarra perfeitamente desalinhada a alimentar uma presença vocal fleumática.

Longe de ser consensual e demasiado avançado para a compreensão dos seus limites, o individualismo sintonizado a três dos Still House Plants coloca-os num destacado lugar da nova vaga rock do Reino Unido.

Filipe Costa

Claire Rousay – Sentiment [Thrill Jockey]

No quarto de Claire Rousay, o privado dá lugar à transparência. Nele podemos encontrar uma Fender, duas latas amachucadas, um maço de tabaco e vários livros (diários, talvez), uma handycam e alguns CD-R. Na capa que cobre o seu mais recente álbum, sentiment, as paredes são enfeitadas por posters e postais variados, os cobertores estão amarrotados e no centro da tela, debaixo do calor das mantas recauchutadas, a figura cândida de Rousay, aconchegada no conforto da solidão — nostalgia, memória e saúde mental encapsulados numa moldura humana preenche de desejo e desenquadramento social.

Ao longo da década, a canadiana sediada em Los Angeles acumulou um vasto corpo de obra onde se move pelos terrenos da folk, da emo e da música concreta, com entradas diarísticas e um coração documental a orientar um passado exploratório em constante movimento. Em sentiment, a estreia pela Thrill Jockey, Rousay explora um formato mais convencional de canção. Descrito pela própria como o seu álbum pop, sentiment traz o verbo para a frente, verbalizando com acutilância sobre perda, trauma e amor desajustado.

Gravado em grande parte na estrada, sentiment reduz a música aos seus componentes mais essenciais, trabalhando o mundano com o encanto do que é primordial, sem adornos e subterfúgios acessórios. Se antes predominava a abstracção, agora é a voz encharcada em autotune a impor-se a um vocabulário expansivo feito de orquestrações de cordas, arranjos de câmara e bordões de guitarra a embrulhar uma colagem de sons táctil e pastoral.

Verdadeiro tratado de reinvenção e subversão de expectativas, sentiment rompe pela simplicidade e transparência com que aborda noções de identidade e inconformidade; uma extensão da artista que cobre todas as regiões previamente exploradas na sua extensa discografia.

Filipe Costa

DJ Anderson do Paraíso – Queridão [Nyege Nyege Tapes]

Queridão leva-nos até ao submundo do funk brasileiro. A estreia formal de DJ Anderson Paraíso, um dos novos embaixadores do som cru e profundamente perturbador proveniente dessa metrópole, a terceira mais populosa do Brasil, reúne 17 temas num compêndio que atravessa o percurso do DJ e produtor de Belo Horizonte ao longo dos últimos dez anos.

Paraíso é ao mesmo tempo o herói e o vilão desta narrativa. O artista mineiro escava o fundo campo de hipóteses do funk brasileiro para desafiar os supostos limites do género, abrindo novos paradigmas pelo meio. As texturas são metálicas, os graves, quando existem, são subterrâneos, a atmosfera é em tudo sinistra, ominosa, inquietante. Minimalismo de ferro reduzido a silêncio desconcertante e ausência de beats, com melodias dissonantes e samples de diferentes paragens (sons de sirenes, tiros e estilhaços) em rota de colisão com sinuosas orquestrações de cordas.

Examinar as letras de Queridão, escritas e cantadas por um elenco de compatriotas mineiros, é ser consumido pelo dilema de punir o conteúdo altamente explícito, misógino e gratuito destes temas ou ver na voz mais um instrumento percussivo, numa problemática avaliação holística da obra. É uma leitura tentadora, mas não necessariamente ética (além de profundamente preguiçosa). Correr no erro de tomar o desconhecido por exótico é imprudente e pode trazer contornos perigosos, como tem acontecido nas muitas e elogiosas considerações feitas por várias publicações especializadas (a distribuidora inglesa Boomkat, por exemplo, foi longe ao ponto de incluir o álbum no top 3 dos melhores lançamentos de 2023, três meses antes do disco ser sequer publicado).

Mas há um pormenor que ajuda a explicar o fenómeno nestes círculos: foi a Nyege Nyege Tapes que lacrou este lançamento, editora do Uganda responsável também pela edição de Panico no submundo, do paulista DJ K, considerado um dos melhores registos de música eletrónica feita em 2023 pela Pitchfork. Já este ano, a rádio online NTS, meca das novas movimentações eletrónicas mundiais, reuniu 22 exemplos de funk mandelão, bolha e bruxaria no compêndio funk . BR – S ã o Paulo.

De onde virá este interesse repentino por parte da imprensa internacional? Estaremos aqui a falar de algum tipo de resgate sociológico com motivações fetichistas ou de uma mera renovação de interesses? Não nos parece. O fenómeno é inegável e a música de DJ O Mandrake, por exemplo, até já chegou aos ouvidos de Beyoncé, cimentando o lugar do funk no tecido da eletrónica global. A revolução também passa por aqui.

Filipe Costa

Stereolab – Little Pieces Of Stereolab (A Switched On Sampler) [Duophonic]

O particular álbum Little Pieces Of Stereolab faz parte da série The Switched On Series: lançada em 1992, esta serviu para compilar várias faixas que não faziam parte de nenhum dos álbuns lançados. Nesta série, encontram-se singles, compilações, e outras aparições em eventos que retratam a essência criativa da banda. Apesar de este ser o álbum mais recente da banda, pode servir de introdução para quem ainda não a conhece, pois experimenta novas técnicas mantendo os conceitos antigos.

Little Pieces Of Stereolab selecionou três faixas de cada álbum da série The Switched On Series, modificando-as através da introdução de novos elementos. Estes elementos vão desde padrões cativantes e memoráveis, a elementos de rock psicadélico, de música de exploração e até à incorporação da “técnica do recorte” (do francês, “découpée”). Esta é uma técnica literária que consiste em, partindo de um texto completo, fazer vários cortes aleatórios, combinando-os de modo a criar um significado novo. Sobretudo usada em poesia, esta técnica introduziu à música um certo caos que combina bem com os imensos estilos e influências musicais exploradas pelos Stereolab. Inclusive, podemos identificá-la não só nos padrões melódicos, mas também nas próprias letras: como sempre, combinam frases simples e precisas em francês e em inglês, na voz da inconfundível Laetitia Sadier. Embora a voz de Sadier seja conhecida por criar confusão com o instrumental, em certos momentos verifica-se uma maior sintonia entre voz e música. Esta sintonia é especialmente visível em “Variation One”, em “John Cage Bubblegum” e em “Tone Burst [Country]”, com um ritmo típico da música francesa tradicional. Por outro lado, temas como “Changer” e “Tempter” resumem bem a relação de oposição com o instrumental que, no fim, criam uma unidade diferente da que estamos habituados.

É por este motivo que a banda continua a ser um laboratório musical de experimentação onde as possibilidades são infinitas, onde não existem convenções nem medo de errar. Certamente será um álbum para quem procura algo diferente.

Margarida Pereira

André Júlio Turquesa – disco de reclamações [edição de autor]

O artista multi-instrumentista portuense André Júlio Turquesa lança o seu novo álbum Disco de Reclamações, quatro anos após a sua estreia com o registo Orgônio. Esta nova etapa no percurso de Turquesa envolve e cativa o ouvinte numa combinação orgânica de indie folk, música tradicional e “música do mundo” ao longo das suas onze faixas, graças a um trabalho de orquestração consistentemente esmerado, à voz delicada mas encorpada do músico e a um estilo lírico que tem tanto de despretensioso como de gracioso, que evoca temáticas intervencionistas e de foro pessoal.

O que se tem aqui em mãos é a evolução natural de Turquesa, que o levou para trajetos sonoros ainda mais exuberantes, com espaço livre para experimentações certeiras e uma aptidão tremenda para o aspeto narrativo nas suas composições, além de uma minuciosa afinidade para abordar aspetos sociais em faixas como “A Porta” e “O Panfleto” e questões de auto-afirmação e emancipação mais aprofundadas, como provado no single “O Agitador”, ou a música de encerramento do álbum, “O Início”. Disco de Reclamações demonstra ser um registo arrebatador e fascinante, um tremendo passo em grande para a jornada de Turquesa, assim como um sério candidato para álbum português do ano.

Ruben Leite

 

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