QOA, Primeiro e XCCG no Salão Brazil: onde acaba o caco, começa a fonia

QOA, Primeiro e XCCG no Salão Brazil: onde acaba o caco, começa a fonia

| Abril 6, 2025 11:25 pm

QOA, Primeiro e XCCG no Salão Brazil: onde acaba o caco, começa a fonia

| Abril 6, 2025 11:25 pm

Sinto uma arrebentação longínqua que me transfigura para o toque da pedra escaldada. Abro os olhos, estou no Salão Brazil. A ocasião é a atuação de QOA, Primeiro e XCCG; a data, 17 de agosto. Tenho a chance de estar no local antes da abertura de portas. Instrumentos preparados, os artistas centram a sua essência no espaço em questão. Ana Elisabete, assumindo funções no bar do Salão há largos anos, nota algum excesso de poeira no ecrã negro de QOA. Ultrapassada a não barreira linguística, comunica com a performer argentina agradecida a situação, prontificando-lhe o pano seco para ultimar esse detalhe. Nesta sala de espetáculos, situada no coração de Coimbra, todos os olhares estão despertos ao perfeccionismo.

Agora sim, reunidas que estão as condições para deambular numa noite de música electrónica experimental, é incumbido XCCG, inicialmente planeado para finalizar o espetáculo, de dar o tom sinérgico e abrir o palco. Na assistência, cerca de 20 pares de ouvidos prontos à escuta, mais que muitos para o intimismo não intimidar.

XCCG, com dj set preparadíssimo, trabalha as suas faixas pelos múltiplos subtextos do universo absoluto. Em live act apresenta-nos uma sequência de 7 instrumentos acústicos. Vai desde a flauta de bambu que nos corta a palavra afónica até ao djembe, passando por chocalhos, uma espécie de castanholas, maracas, pau de chuva e inclusivamente uma embalagem de café solúvel que trabalha impetuosamente como se areia carregasse. Escuto “eu quero mais”, reforçando a perseverança do artista que se deixa reverberar ao limite do looping caoticamente ordenado. Nesta viagem virtual sou sempre surpreendida pelas palpitações que encontram os meus órgãos a trabalhar em sentido e movimento consistente.

“Que cosa difícil de compreender”, assim começa QOA. Sou invadida por azul e verde, luzes transformando a cortina preta do Salão Brazil num infinito de possibilidades. Há uma “serpiente que se arrasta” e sinto o peso de uma lágrima que não quer nascer. QOA é coroada pela sensibilidade no afago com que toca os instrumentos. Invade-nos um doce e impromptu piano que não constava no rider técnico mas ao qual não resistiu tocar. Trabalha também a calimba e o microfone através de feedback, afastando e aproximando no tempo e espaço, como quem não vai falar tudo, ondula o ar energicamente, dando espaço a que o vento fale de si.

Sob o olhar atento da objetiva que Primeiro carrega, a situação é status pro QOA. Silencia a plateia com seu eco, para não deixar nenhum ouvido cair, que assim seja. Primeiro, de seu nome Segundo Bercetche, atua em terceiro. O silêncio clamado ecoa agora no seu expoente máximo, fazendo-se escutar a semi apneia da audiência, que mal ousa respirar. Ajoelhado no chão, o bansuri que toca compele para que se levante e ocupe o plano mais elevado. Faz uso de grandes vocalizações e suspiros, registados desta feita por QOA que passa de observada a seguir e captar cada movimento do artista. Encontro-me num videogame do real e sigo ganhando. A música de Primeiro dá-lhe gosto sair-lhe das mãos, desfrutando quase como numa fervorosa reza, num canto que transborda a calmaria e finaliza com “No pienso explicar mi amor, seria como explicar um chiste”.



Conversas pós-concerto

 

Converso com os artistas enquanto nos encaminhamos ao bar Pinga Amor onde XCCG tem ainda mais horas de labuta, apresentando-se agora enquanto DJ furt@ fof@ – brincando assim com a apropriação e transporte de obras musicais do passado para o futuro. Inspirado por Godard, cria novas narrativas e semântica através do “copy paste” – não fosse o seu mote “para quê estar na marinha quando podes ser pirata?”, parafraseando Steve Jobs.

Criadores no pós-noise, mantêm a atitude lo-fi num regresso à natureza exótica; buscam ecos na realidade também pelo ambient house. A música procura-os e eles encontram-na de forma experimental e eletroacústica, recorrendo a sampling, gravações de campo multi transformadas, colagens, drones, sintetizadores/midi e palavra falada. 

Pela primeira vez em tour juntos, QOA e Primeiro colaboram no intuito de facilitar a produção, envio de conteúdos e promoção dos trabalhos. Em Portugal passaram também pela Caparica, Montemor-o-Velho e Bragança, onde atuaram numa caverna com 30 pessoas que com eles cantavam, em modo de rito cerimonial. Improvisam com o território e a própria arquitetura do local marcada num tempo e espaço específico. Seguiram em tournée europeia passando depois pelo Japão.

QOA confessa que busca sempre o equilíbrio, encontrando essa conexão entre terra e cosmos através da profundidade e expansão. Tal é conseguido, em jeito de alquimia, com a energia que as pessoas presentes carregam para dentro dessa obra site specific. Fala-me do prazer auditivo, “como esse som te abraça no espaço, ou melhor, como o vamos modelando para esse abraço sónico”.

Segundo o próprio Primeiro, o artista não sente que esteja atuando num show, mas antes “abrindo e fechando portas a um fluxo de informação” que deixa entrar e sair, tal como num jogo no qual ele é o veículo — abrindo caminho no labirinto a descodificar. Assim absorve paisagens sonoras com efeitos maquinais e vocais. 

Para QOA é também sobre encontrar esse fluxo invisível, “estar sempre a ouvir música, por mais pequena que seja, e ir-lhe dando voz, sem oferecer resistência ou puxar”. Trata-se mais do fluir e não do forçar, encontrar uma respiração orgânica — um bocadinho como o condutor e o conduzido dançando tango, brinco eu. Seria um pleonasmo dizer-vos que QOA, no aparente silêncio, verdadeiramente coa o que encontra de uma forma que lhe é inerente, porém tal artimanha não ficou por professar.

XCCG afirma partir sempre do caos, onde se endeusa. Sem pensar em técnicas, basta-lhe a vontade de se surpreender “penetrando no tempo e espaço do universo com uma nova vibração sonora”. Dessa explosão, do cosmos que se gera na babel, trabalhando a matéria e energia contida, sai uma música que o artista equipara a “pôr um ovo – nada de especial”. Explica-me que trabalha em trípticos no tempo, dividido em três, costumando apresentar três blocos. Neste caso foram três músicas expostas com comentário inserido nelas, usando de poesia, lirismo e cadência. Tendo perdido o intuito performativo dos tempos de juventude, foca-se agora na produção musical “porque o que interessa é o resultado final e se a música soa bem – seja lá como for”. Chega a novas texturas e estéticas musicais apelando à memória coletiva que reveste no seu próprio polimento. Pode vê-lo no salão, no pub, em associações culturais, na própria garagem… Mas atenção que atende por variados heterónimos. JCCG, inicias do nome civil João Gonçalves, funcionam também para o apelido Grego que o bisavô alterou para Gonçalves. Até ao fecho desta edição, continua a ver-se grego para resgatar tal apelido.

xccg

Texto: Daniela Proeza
Fotografia/vídeo: Tatiana Lages

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