Apocalypse, Girl // Sacred Bones Records // junho de 2015
8.2/10
Jenny Hvalé uma mulher norueguesa de talentos inigualáveis. Começou a sua carreira como vocalista numa banda de goth metal norueguês e entretanto foi estudar escrita criativa e performance para a Austrália onde foi também vocalista de umas outras bandas desta vez centradas no indie rock e quando se cansou desta rotina de ser “só” uma vocalista, novamente na Noruega, decidiu lançar um EP só seu em 2006, Cigars. Este EP fez tal sucesso que adoptou o nome Rockettothesky e foi contratada pela Trust Me Records, lançando dois álbuns de estúdio, To Sing You Apple Trees em 2006 e Medea em 2008. Mas Jenny sentia que faltava algo, um elo que não conseguia conectar entre a sua música e si mesma e foi então que decidiu passar a usar o seu nome de baptismo como nome artístico, sem personalidades que não a sua mesma, saiu da sua antiga discográfica e alistou-se na Rune Grammofon, uma das mais conceituadas discográficas de música experimental e eletrónica da Noruega, e, foi aí que começou a sua emancipação, com letras chocantes para os mais sensíveis, músicas com uma atmosfera mais sombria mas sempre de vez em quando tropeçando numa espécie híbrida de freak folk com indie pop e, claro, banalizando a sexualidade e desmitificando o tabú de que mulheres não são seres sexuais como os homens.
Viscera e Innocence is Kinky são uma fase completamente diferente da que o novo se enquadra, enquanto que estes dois foram produzidos pela Rune Grammofon, o novo é da Sacred Bones, a mesma discográfica que lançou artistas como Amen Dunes, Pharmakon e Lust for Youth, e este ano lançou álbuns de bandas como The Holydrug Couple e Blanck Mass. Apesar do liricismo de álbum para álbum ter sempre um cariz de uma mulher independente, Apocalypse, Girl é um álbum muito mais coeso no que quer retratar usando palavras chave de faixa para faixa que transparecem quase que como a história de vida de uma mulher no mundo; e isto é só liricamente falando claro, porque a nível instrumental Apocalypse, Girl é sem dúvida a obra-prima da Hval. Contando com a presença de Thor Harris dos Swansem algumas das músicas do álbum este é o mais minimalista, macio e meticulosamente bem pensado na carreira da norueguesa que traça uma grande barreira em relação ao álbum anterior, que é muito mais barulhento e furioso, explorando muito as progressões vocais com um órgão, sintetizadores e percussão como se ouve muito bem em “That Battle Is Over”, o primeiro single do álbum.
“Kingsize” é a faixa que é tocada no teaser do álbum e também a de abertura do álbum e em semelhança a Innocence is Kinky é um monólogo, não um monólogo de 30 segundos de como as mulheres também têm apetite sexual, mas um monólogo que transforma-se quase num relato e num conselho e numa reflexão e num enigma. “Think big, girl! Like a king, think kingsize!” são as primeiras palavras que ouvimos no álbum e são as que definem toda esta nova atmosfera, sem medo de arriscar mas mantendo-se fiel ao experimental com barulhos saídos dos primeiros 5 minutos do 2001: A Space Odyssey. E depois aparecem bananas que apodrecem no colo norueguês, a procura de assimilação subcultural numa própria subcultura que não existe tal como as bananas que são embaladas e “What is soft dick rock?”, a frase que a cantora escolheu para representar esta nova era.
De seguida temos a balada “Take Care of Yourself” que fala de como é que uma mulher irá cuidar de si mesma neste mundo (“Getting payed? Getting laid? Getting married? Getting preagnant? Fighitng for visibility in your market”) tudo se resumindo aos dogmas (como por exemplo a depilação) que definem as mulheres na nossa sociedade patriarcal heteronormativa e depois à negação destes mesmos e na aceitação dos valores morais que a constroem como pessoa. Desde faixas que desconstroem a ideia de como o sexo tem que ser visto para uma mulher, a submissão (“I don’t think it’s about submission, I think it’s about holding and being held”), até a faixas que falam em problemas de gender identity, ainda vai um longo caminho e Jenny andou tudo de pés descalços em 40 minutos. E quando chegamos ao final do álbum atingimos um desassossego de 10 longos minutos, “Holy Land”, uma faixa que fecha um capítulo envolvendo-nos num ambiente divino, como se estivessemos no afterlife a caminhar em direção à luz, apazinguando-se com a introdução dos vocais etéreos da cantora, foi ter um brilho da cara de Deus, rejeitá-lo e acordar com a voz que prendia as estrelas no céu.
Mas há três faixas têm que ser tomadas em especial consideração: “That Battle Is Over”, a que arranca com o fim da anterior “What it is to take care of yourself? What are we taking care off?”, é a faixa de Apocalypse, Girl que fala desta revolta da cantora pela conformidade humana contrastando a ideia do que nós queremos ser com o que os outros querem que nós sejamos e com o que estamos programados para ser, usando críticas bem explícitas quase que a cuspir nos mídia como por exemplo em “Statistics and newspapers tell me that I am unhappy and dying” e depois num tom jocoso ela fala desta vez para o a ciência e para a religião “I am more likely to get breast cancer and it’s biology, it’s my own fault, it’s divine punishment of the unruly”, finalizando a música em arpeggios cada vez mais intensos entoando a palavra “Heaven” caindo depois a pique para algo muito mais soturno ecoando “Sleep tight forever…”; e é com o eco de “Heaven” que se escolhe a próxima faixa a ter atenção, “Heaven”, esta faixa é a que faz a transição do álbum que estava embebido em sombras e barulhos estranhos vindos de um canto estranho no Universo, começando com o som das ondas do mar, para trás e para frente, e uma voz à capella que diz “Oh heaven” brilhantemente pensado a nível simbólico usando isto assim para a lavagem da carga tão intensa que o final de “That Battle Is Over” tinha deixado para “White Underground” arrastar e aqui fazendo várias referências religiosas como “I’m 33 now, that’s Jesus age” e ouvimos no fundo dos murmúrios de Hval um coro gospel quase apagado dando ainda mais aquela atmosfera de religiosidade construindo lenta mas fortemente para o epíteto do álbum, o grito de “So much death!” acompanhado de uma harpa tocada de tal maneira que é só mais um adereço não só para a voz de Hval mas também para a contribuição da atmosfera explícita na faixa, desvirtuando-se em segundos depois e transportando-nos para o início da faixa dizendo “So much death, a hole to nowhere”; e para última faixa temos “Sabbath”, para quem não sabe sabbath tem vários significados em várias religiões, como por exemplo o sétimo dia da semana no judaísmo, mas acho que o que a norueguesa estava a apontar aqui com esta faixa era o sabbath celta, o calendário que tinha 8 celebrações principais entre equinócios e solstícios e ironicamente “Sabbath” é a oitava faixa do álbum e apesar da introdução da faixa ser “I’m six or seven and dreaming that I’m a boy” a música é toda muito como o sabbath celta, é uma celebração feminina, preenchida com falsettos lindos fazendo-nos sentir como se estivéssemos à volta de uma fogueira, nus, a dançar, em que a sexualidade, erotismo e tudo o que é tangente a esses tópicos é bastante presente e vívido naquele momento mágico misturado com um órgão pagão, a música finalizando-se como se tirassemos um disco do leitor e com algumas palavras em norueguês.
No fundo, Apocalypse, Girl é um álbum sobre a revolução e a libertação do que somos sujeitos todos os dias, um álbum extrememante anti-religião interpretado na voz de um anjo, um anjo que caiu das nuvens e viu como as coisas realmente eram. Apocalypse, Girl é um guidebook sobre feminismo na voz de um anjo que veio para nos iluminar. Um álbum que é o que a própria aconselha aos outros, kingsized thoughts.