
No passado dia 2 de março, tive o privilégio de assistir ao vivo, pela segunda vez, a um concerto dos canadianos Godspeed You! Black Emperor, na Casa da Música. O grupo, como habitualmente, não se dirigiu verbalmente em momento algum à plateia. Há uma certa solenidade num concerto dos GY!BE, algo que é difícil de explicar a alguém de fora. Nunca vi ninguém ser olhado de lado por estar à conversa num concerto, excepto desta vez.
Um concerto dos GY!BE não é apenas um concerto, é uma experiência transcendental. Há algo de intangível na sua música e na sua mensagem que os distingue das centenas de outras bandas de post-rock (muitas vezes criticadas por serem redundantes), e que permite comunicar tanto a maravilha como o horror. A banda oferece uma perspetiva distópica sobre o mundo com uma filosofia de esquerda – anarquista, anti-capitalista e anti-imperialista. Algo que, ainda assim, consegue surpreender alguns “fãs” de vez em quando, após tanto tempo.
O concerto fez parte da tour de apresentação de No Title as of 13 February 2024 28,340 Dead. É essa a estatística que dá o título a um álbum sem título. Mais de 1 ano depois, esse número já ultrapassa os 50 000. E este álbum, que nunca teve um título mas sim um aviso, uma chamada de atenção impotente, um pedido de ajuda, continua relevante.
No Title as of 13 February 2024 28,340 Dead abre com “SUN IS A HOLE, SUN IS VAPORS”, música que remete o ouvinte para um acordar sobre um mundo triste. A guitarra elétrica distorcida, como o primeiro raio de sol da manhã, abre caminho para a sinfonia melancólica. Talvez os últimos momentos de maravilha antes do horror. Um princípio apropriado para o álbum, estabelecendo o tom que se vai manter até ao fim: tristeza e impotência, mas ainda assim esperança.
Seguem-se “BABYS IN A THUNDERCLOUD” e “RAINDROPS CAST INLEAD”, duas composições épicas, cada uma com mais de 13 minutos. Ambas parecem aludir para o início do horror, começando pelos títulos: a primeira, referindo-se às milhares de crianças mortas pelas bombas israelitas; a segunda evocando precisamente essas bombas – gotas de chuva forjadas em chumbo.
“BABYS IN A THUNDERCLOUD” segue o crescendo tão típico das composições dos GY!BE, e é talvez uma das composições mais poderosas da banda em largos anos. Poucas poderão traduzir de forma tão clara a tragédia vivida em Gaza, terminando de forma ominosa com um coro de violino e guitarras que se intensificam na reta final da música.
Atuação de Godspeed You! Black Emperor no Amplifest 2022
“RAINDROPS CAST IN LEAD“ recomeça o crescendo, e escala as emoções estabelecidas pela música anterior. Desagua numa cacofonia louca que procura, talvez, exprimir um horror existencial que dificilmente pode ser traduzido de outra forma que o caos total, a rejeição absoluta de toda e qualquer regra. Pelo meio, num dos momentos mais emocionais do albúm, temos o poema de Michelle Fiedler Fuentes, Gotas de lluvia fundidas en plomo:
gotas de lluvia fundidas en plomo
nuestro lado iluminado
y luego apagado y enterrado y terminado
debajo del sol perfecto
debajo del cuerpo cayendo del cielo
fueron mártires que cayeron
porque en nuestro lado son mártires desde antes que siquiera
hubiéramos nacido
las que trataron y fueron asesinadas por tratar
las que murieron jóvenes, enfurecidas o viejas, y nunca vieron
el amanecer
inocentes y niños y los pequeñitos cuerpos que rieron y luego
quedaron dormidos para siempre
y nunca vieron la belleza del amanecer
“BROKEN SPIRES AT DEAD KAPITAL” é a resposta à destruição das duas composições anteriores. Sombria e minimalista, é como uma canção fúnebre que abre caminho, com uma transição suave, para “PALE SPECTATOR TAKES PHOTOGRAPHS”. Esta última é a mais apocalíptica do álbum – ritmos militaristas, instrumentos de sopro e guitarras que parecem imitar sirenes e alarmes. Tenta, talvez, comentar a reação do mundo ao genocídio em Gaza. Um alarmismo, muitas vezes performativo, que não se traduz em soluções mas sim, em frustração ou, ainda pior, em indiferença.
O álbum encerra com “GREY RUBBLE, GREEN SHOOTS”, e mais uma vez, remete o ouvinte para a esperança. A imagem de vida a nascer depois de toda a destruição, no meio dos destroços – raízes verdes entre destroços cinzentos. Se a abertura do álbum é o ínicio de um novo dia, esta é sem dúvida o pôr do sol. O segundo ato da música – com uma intervenção fantástica do violino de Sophie Trudeau – oferece uma melodia que claramente remete para a resistência, o desafio.
A música dos GY!BE não é sobre o horror que se abate sobre a humanidade. É sobre a humanidade que, esmagada pelo horror, persiste. Criam desde 1994, e apesar da frequente entrada e saída de músicos na banda, a sua mensagem tem sido, acima de tudo, consistente. O que tem tanto de positivo como de negativo.
Os problemas que os GY!BE denunciavam nos anos 90 são ainda hoje relevantes. E a sua música é atual, tanto pela intemporalidade das composições como pela sua mensagem. É pertinente concluir com um excerto da música “Dead Flag Blues”, do registo de estreia da banda F♯ A♯ ∞, que encaixaria perfeitamente neste álbum:
The buildings tumbled in on themselves
Mothers clutching babies picked through the rubble
And pulled out their hair
The skyline was beautiful on fire
All twisted metal stretching upwards
Everything washed in a thin orange haze
I said: “kiss me, you’re beautiful –
These are truly the last days”
You grabbed my hand and we fell into it
Like a daydream or a fever
We woke up one morning and fell a little further down –
For sure it’s the valley of death
I open up my wallet
And it’s full of blood
Texto redigido por Leonardo Estrela