Nothing
Tired of Tomorrow

| Setembro 23, 2016 12:39 am
Tired of Tomorrow // Relapse Records // maio de 2016
9.0/10

O trajecto que a Threshold tem vindo a percorrer não é omnisciente. Existem projetos de uma qualidade imensa que nos pura e simplesmente ignoramos que existem (somos, afinal de conta, humanos). Porém, existem algumas bandas que nós pura e simplesmente escolhemos ignorar. Até então, os Nothing eram uma dessas bandas. Até eles lançarem o Tired of Tomorrow, os Nothing nada significavam para nós (perdoem-nos a redundância). Talvez estejamos a ser muito duros com eles neste início de crítica.


Vamos por partes.
Durante um não muito curto período de tempo — do ano 2013 até ao meio do ano de 2015 — pareceu-nos que tanto os ouvintes como os músicos tinham redescoberto o shoegaze. Nesse período deu-se o regresso de todos os grandes: os MBV, os Slowdive, os Ride, e ainda houve espaço para um disco dos Medicine lá pelo meio. Além destes comebacks, surgiu um camião de bandas com inspirações dream pop/shoegaze: DIIV, Infinity GirlCloakroomPINKSHINYULRABLAST, Ovlov, CheatahsWildhoneyRingo Deathstarr…tudo bandas que fazem parte do fenómeno do nu gaze.


Assim como os Nothing.




Em 2014, este quarteto oriundo da parte mais merdosa de Filadélfia angariou a atenção dos media e dos ouvintes com o Guilty of Everything — o seu primeiro LP —, um disco que mistura as tonalidades emotivas e vocais do shoegaze com um compasso punk de fácil absorção. As músicas do mesmo foram escritas ao longo de um extenso período de tempo, repleto de tragédias: óbitos, consumo de drogas medicinais, copiosas quantidades de vinho tinto e os dois anos que Dominic Palermo passou atrás das grades.

Aquando da edição do Guilty of Everything, os Nothing definiam-se como “uma banda para pessoal que curte JesuGodfleshMy Bloody Valentine e Slowdive”. Essa definição transparece no álbum. O problema do disco é que esta característica é a única evidência que é transparente. Um disco que ser queria emotivo e poderoso soou-nos a pouco. Faltou emoção, poder de escrita, e contenção no barulho instrumental. 

Por isso, do Guilty of Everything ficou-nos na memória alguns refrões de dois ou 3 temas orelhudos que transpareciam a capacidade de composição musical dos Nothing. Mas aparte disso, nada mais há a destacar desse álbum. Guilty of Everything não estabeleceu nenhum novo patamar no género do nu gaze. Mas, pior que tudo, ficámos com a sensação nem sequer procurou fazê-lo, num exercício que, para nós, se revelou como um desperdício do potencial do coletiva. Se, com esse álbum, os Nothing tivessem investido tempo no estúdio e na escrita e se os astros se alinhassem, o Guilty of Everything poderia ter-lhes atribuído o estatuto de dignos herdeiros e sucessores de uma geração X agora (quase) extinta. Toda uma geração inspirada nos Killing Joke (e consequentemente nos Nirvana), nos My Bloody Valentine, nos Chapterhouse e nas narrativas cómico-trágicas dos Jesus and Mary Chain. Dessa senda, eles tornar-se-iam brilhantes intérpretes de uma fórmula que não só manifestaria uma frescura sonora dentro do revivalismo, mas ocupando o seu próprio espaço. Guilty of Everything seria um artefacto de preservação para memória futura. Um testemunho do rock alternativo dos 90’s, de uma geração X quase extinta, da qual poucas bandas sobram e ainda menos souberam evoluir de forma digna para este novo milénio. 

Porém, os Nothing, na áurea luz da sua ribalta, preferiram desenvolver a sua faceta de trolls inconsequentes e niilistas auto-destrutivos. Encarnaram totalmente o papel de imbecis que não queriam saber de nada a não ser tocar música, adulterar o seu estado mental com álcool e drogas e abstraírem-se da realidade.





Os Whirr são a outra banda de Nick Bassett, o baixista dos Nothing.


Mas talvez isso seja compreensível. Já se perguntaram a vocês próprios o que fariam se toda a vossa vida estivessem envoltos na mais profunda miséria, desesperados e, de repente, alcançassem a fama e a riqueza? Sairiam do buraco em que estavam? Enterrar-se-iam mais? Começariam do zero? Começariam de todo?



“Really, it goes back to just after our first album, Guilty of Everything, came out two years ago,” Palermo explains. “There was just months and months of touring piled on top of each other; there was lots of partying and avoiding any real-life stuff, and I kind of stopped dealing with reality.”
Reality came rushing back on the night of May 19th, 2015, when “four or five big guys” approached Palermo following the band’s gig at the Oakland Metro in Oakland, California, and asked if they could use his phone. “I know what that is, you know?” Palermo laughs. “I grew up in Kensington [a rough Philadelphia neighborhood], and I’m pretty sure we invented that move. You do it, and you’re not getting your phone back!”
When Palermo refused to hand it over, the men responded by beating him up so badly that he required lengthy hospitalization. “I had a fractured orbital, a fractured skull, fractured bones in my back,” he explains. “I had 19 staples in my head, and they had to sew my ear back on; I’m fucked up on all these painkillers, I’m alone because the rest of the band had to drive back to Philadelphia, and I’m just sitting there in this hospital in Oakland dealing with the reality of everything.”
Entrevista de Dominic Palermo à Rolling Stone.

“The second we found out we could make money and not have to work, just drive around and play music, we forgot about everything else,” says Palermo. “We drank every day, hung out every day — flying here, driving there — pushing the envelope as much as we possibly could.” 

Then, outside a West Oakland club, after another triumphant show, it almost all ended.“When all of a sudden you’re in a hospital, in awful pain, on drugs, with tubes in you … big, swollen head like a watermelon … you learn, ‘OK, maybe you have to push back a little bit.’ 

Entrevista de Dominic Palermo ao Seattle Times. 


Durante a sua hospitalização, Palermo iniciou/foi forçado a um longo período introspectivo, movido a analgésicos e leituras de Burroughs. Essa combinação fez com que a mente de Palermo começasse a distanciar da cama a que foi confinado, da dor que sentia — tanto emocional como psicológica — e que, mais uma vez, esta se concentrasse na música e na escrita, o seu eterno escape. Foi durante esse período que começaram a ser escritas as letras de Tired of Tomorrow

À sua hospitalização, seguiu-se um período de hiato na região de Big Sur. Mais álcool, mais drogas e episódios de vertigens — lembrança eterna da malha quase fatal de que foi vítima — assombraram Palermo. Depois disso, o regresso a casa — Filadélfia — e ao estúdio, para finalmente gravar Tired of Tomorrow. Mais dificuldades: mortes na família de Palermo e Bassett; episódios de vertigens que dificultaram o trabalho de gravação de vocais; a saída da Collect e o regresso à Relapse na sequência de uma polémica em que Martin Shkreli — o money-man da Collect — se viu envolvido. Todo o período que rodeia a gravação do disco pode ser acompanhado no documentário que os Nothing publicaram.

Fotografia da autoria de Reid Haithcock.
 A história do disco é esta. Eis que vos falamos agora da música que o disco contém.
Muito do que aqui está nós já ouvimos, na verdade. As guitarras a formarem uma parede sonora com a bateria a marcar o compasso (este é, aliás, o disco mais shoegazy dos Nothing até à data) que sustenta as letras deprimentes e niilistas saídas da mente dos seus atormentados arautos. Mas uma coisa mudou: a paixão com que todas estas emoções são libertadas. 






O álbum começa logo com 3 destaques: a “Fever Queen”, o tema de abertura de disco mais explosivo e emotivo que eu ouvi este ano — e em algum tempo, para vos dizer a verdade; a “The Dead Are Dumb”, uma balada na qual uma onda de nostalgia me faz confundir a linha de baixo com a da faixa de abertura da icónica série Twin Peaks, esta da autoria de Angelo Badalamenti; a “Vertigo Flowers”, um dos malhões do disco e o single de estreia do mesmo.






Mas depois vem a “ACD (Abcessive Compulsive Dissorder) e, a acompanhar o tema, o videoclip mais gráfico e perturbador dos Nothing até à data — mais ainda que o do “Eaten By Worms“. Pensamentos suicidas convivem lado a lado com a música dos Nothing. No vídeo, estes são a banda sonora de um.



Seguem-se a “Nineteen Ninety Heaven” e a “Curse of the Sun” (faixa que já teve direito a uma interpretação audiovisual). A “Eaten By Worms” já mencionámos anteriormente e, após esta, “Everyone is Happy”? Mentira. Depois dessa faixa, mais uma balada deprimente, a “Our Plague. O álbum fecha com a “Tired of Tomorrow”, uma espécie de canto de cisne de álbum, uma faixa de beleza impar, sem dúvida a mais bonita que os Nothing lançaram até à data. É quando chegamos a esta faixa que nos apercebemos que tudo neles mudou. 

Se começaram a ler a crítica a partir daqui, a gente vai ser muito direta nas palavras: os Nothing deixaram de ser APENAS aquela banda para “pessoal que curte Jesu, Godflesh, My Bloody Valentine e Slowdive”. Com Tired of Tomorrow, eles não só elevaram a fasquia do nu-gaze atual, como subiram a um novo patamar: o de bastiões do género. Os Nothing são a maçã que caiu mais perto de todas as raízes, os mais brilhantes intérpretes do género atualmente. Senão, vejam tudo aquilo que foi aqui escrito anteriormente. Senão, ouçam os violinos e o piano na “Tired of Tomorrow” e digam-me que não ouvem lá ao longe a “Glycerine” dos Bush. Ouçam as duas faixas de bónus — “The Heavenly Blue Flu” e a “Tic Tac Toe” — e digam-me que não ouvem lá o “fuzzed out guitar rock of the 90’s” apregoado na press release do disco. Mas acima de tudo, façam um favor a vocês próprios: ouçam o disco. Várias vezes.

Outra fotografia da autoria de Reid Haithcock.

Nascidos na geração X ou não, todos nós encontramos em Tired of Tomorrow alguma coisa que nos apela. As paredes sonoras envolvem-nos, embalam-nos. Mas nada retira o peso das palavras, que nos deprimem, isolam e que, de alguma forma, nos aproximam uns dos outros. Todos nós somos seres atormentados, sozinhos no mundo. E este disco narra a mais bela exaltação de uma mente solitária, atormentada pelos seus pensamentos, de que tenho memória. É um discurso direto de alguém que ainda estamos para perceber se procura sair do seu estado depressivo ou busca afundar-se cada vez mais nele. “Eu teria preferido o homem feliz aos poemas amargurados que ele nos deixou”, foi o que Mardou disse a Leo sobre a obra de Baudelaire n’Os Subterrâneos. Quanto mais não seja, ficamos a saber que não somos os únicos que estamos a sofrer, revoltados, conformados no nosso silêncio. (In)felizes.
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