Charli | Asylum Records | setembro de 2019
8.3/10
Num tweet partilhado em agosto deste ano, Charlotte Aitchison, cantora e compositora britânica que se dá pelo nome de Charli XCX, afirmou ser um “chart flop”, referindo-se à sua dificuldade em penetrar o topo das tabelas americanas nos últimos anos. Mas Charli não quer saber: “lol se acham que eu me importo, honestamente”, pode ler-se no mesmo tweet. Mais do que um desabafo, esta afirmação representa a dualidade de uma das artistas que melhor soube conjugar vanguarda e sensibilidade pop ao longo da última década.
Podemos escutar a sua voz em singles tão badalados como “I Love It”, do duo electropop sueco Icona Pop, ou no refrão de “Fancy”, single que catapultou a carreira da cantora e MC australiana Iggy Azalea e que lhe valeu o primeiro lugar nas tabelas americanas, mas no que diz respeito ao seu trabalho a solo, apenas “Boom Clap” conseguiu atingir o top 10 da Billboard.
Se os dois primeiros discos propriamente ditos, True Romance (2013) e SUCKER (2014), lançados sob a alçada de editoras grandes, serviram um propósito mais comercial e acessível aos ouvidos menos exigentes (ainda que com alguns momentos preciosos no disco de estreia), as suas últimas mixtapes, Number 1 Angel e Pop 2, ambas lançadas em 2017, serviram um propósito mais libertário e criativo, livre de pressões por parte da indústria. Como resultado, a autora de “Boys” produziu dois dos documentos mais vitais para a música pop do século. Ao juntar-se ao músico e produtor britânico A.G. Cook, cabecilha do coletivo pop futurista PC Music, e antes à produtora escocesa Sophie, com quem lançou o tranformador EP Vroom Vroom em 2016, Charli alargou horizontes e introduziu as produções mutantes dos britânicos à sua voz caprichosa e altamente maleável.
Charli, o aguardado terceiro álbum de estúdio, nasce do esforço exaustivo de unir estes dois mundos. É o seu trabalho mais pessoal, focando-se nos seus relacionamentos amorosos e na tristeza que advém dos mesmos, na vendeta pessoal da indústria para com a própria e, pela primeira vez, na sua saúde mental, mas também nos temas mais hedonistas e na importância de celebrar a vida de modo alarve. Workaholic assumida, Charli vê nas festas que frequenta com os amigos o escapismo necessário para se distanciar dos assuntos que que percorrem a sua mente – as canções, as digressões, os telediscos que a própria dirige.
À semelhança de Pop 2, Charli é um disco extremamente colaborativo. A sua voz é extremamente versátil e adapta-se naturalmente aos diferentes convidados – Sky Ferreira, Clairo e até o bocejo das irmãs Haim soa em perfeita sintonia com a voz carismática de Charli, que volta a unir esforços com as caras familiares de Tommy Cash, Brooke Candy, Kim Petras e Cupcakke nalguns dos temas mais sagazes do disco (escute-se “Click” ou “Shake It”).
A parceria com a estrela queer sul-africana Troye Sivan deu frutos em dois temas essenciais: primeiro com “1999”, o primeiro avanço de Charli e uma ode à nostalgia dos anos 90, e depois com a sua sequela inevitável, “2099”, um hino anti-totalitarista, direcionado a uma indústria castradora, e a resposta mais próxima a o que poderá soar a música do próximo século. Mas é com a francesa Héloïse Letissier, que se dá pelo nome artístico de Christine and the Queens que se assiste à maior química. “Gone” é uma canção maior que a vida, de produção grande e refrão orelhudo e que ganhou maior projeção com o lançamento do demolidor vídeo que o acompanha, onde as duas se livram das suas algemas (mais um aceno à hipocrisia da indústria) para dançar sob uma tempestade de chuva, fogo e faíscas elétricas.
“Official” é o melhor esforço a solo a seguir ao estonteante tema de abertura, “Next Level Charli”, com melodias caprichosamente doces a servir uma produção pristina de groove bem vincado. “Blame It On Your Love” é um dos poucos pontos menos fortes do disco, uma versão polida e sem sabor de um tema outrora radical (e central para a construção de Pop 2) e que nada mais acrescenta para além da parceria com a cantora e MC Lizzo.
Charli pode não ser o seu melhor disco, esse prémio vai para Pop 2, mas é o que melhor balança a visão futurista da cantora britânica com a necessidade de apelar a um público mais abrangente. Se Billie Eilish provou que a música pop pode ser minimalista e Lana Del Rey nos mostrou o seu lado mais glamoroso, Charli prova que esta também pode (e deve) ser orgulhosamente maximalista.