Pharaoh Sanders não pode mais ser introduzido sem que isso seja redundante – o mítico saxofonista de jazz espiritual, género do qual é, juntamente com Alice Coltrane e John Coltrane, figura suprema, não passa uma só década sem editar desde os anos 60, com quase 40 álbuns editados desde a sua estreia nos discos de longa duração em 1965. É certo que nem sempre se focou na espiritualidade feita música – a incursão obrigatória pelo jazz fusion nos anos 80 deu-nos momentos interessantes, havendo ainda pequenas paragens pelo cool jazz e os óbvios momentos de free jazz e avant-garde jazz que, invariavelmente, acabam por inspirar a espiritualidade da qual Pharaoh Sanders faz a sua voz e o seu mantra – mas é impensável tentar dissociar o nome do artista oriundo de Little Rock no Arizona deste misterioso subgénero.
É por isso que Floating Points se afigura como um contraponto inicialmente estranho mas ultimamente sensível e indicado do saxofonista octagenário. Apesar de contar com uma carreira assentada fortemente no IDM, house e na electrónica progressiva, é preciso não esquecer que o primeiro álbum do produtor e pianista britânico, Elainea, é uma subtil mistura de jazz contemporâneo com música electrónica experimental, ou que temas mais tardios como Requiem for CS70 and Strings, de 2019, combinam habilmente as tonalidades e cadências de Keith Jarrett com as experiências sónicas de Manuel Gottsching ou Tangerine Dream.
Quanto à LSO, responsável pela interpretação da música composta por Floating Points, não posso dizer nada que os vá engrandecer mais – contam já com colaborações com Elvis Costello ou Paul McCartney e são ainda os grandes responsáveis pela banda sonora da Guerra das Estrelas, com composição e condução de John Williams. Apesar do habitat natural de muitas orquestras não ser o jazz, a colaboração da LSO com Mahavishnu Orchestra no incontornável Apocalypse (tristemente, o penúltimo grande álbum do grupo liderado por John McLaughlin) é currículo suficiente para que estas experiências estejam não só aprovadas como recomendadas.
Nasce destas três vozes distintas um só corpo coeso e inviolável, um só álbum – Promises, editado a 26 de Março de 20211. A composição assume um registro mais característico do minimalismo contemporâneo, prestando a sua dose saudável de homenagem ao reducionismo e ao seu quase-silêncio. Contudo, apesar destes momentos de quietude quase-absoluta, temos momentos redentores de crescendos assoberbantes protagonizados pela LSO – particularmente no sexto movimento – que nos tiram do nosso transe sem que o mesmo seja perturbado. Em alguns momentos aplica-se a norma de Brian Eno para a música ambient – tão interessante como ignorável – enquanto que noutros são, para lá das cordas da LSO, a electrónica incerta de Floating Points ou a suavidade acutilante do saxofone de Sanders que nos mantêm sempre interessados nesta autêntica lição do que é bonito numa colaboração.
Mais particularmente, Promises começa com um silêncio grávido e inquietante, eclodindo eventualmente com a simples combinação do que parece ser um cravo e algo análogo a um ideófone de percussão a tocarem a mesma linha repetidamente, abrindo-se entretanto reverberações e misteriosas electrónicas. Pouco passa do primeiro minuto quando o saxofone de Pharaoh Sanders se afirma sem esconder a melodia que o guia. No seu clássico estilo, o saxofonista encontra-se algures entre as notas sustenidas e o improviso livre, de onde surgem pequenos motivos repetidos com uma sintonia assustadora com o resto da secção instrumental.
No segundo movimento – Movement 2 – as cordas da LSO começam a ocupar os espaços ausentes, num diálogo constante com o saxofone de Sanders. As cordas mudam e ausentam-se em intervalos irregulares mas é constante a emoção indiscritível que nos acompanha. Em Movement 3, aproveitando o silêncio do saxofone, temos um interlúdio em que regressa o motivo inicial em força, criando espaço para que os sintetizadores de Floating Points brilhem, deixando que no Movement 4 tenhamos algo de Meredith Monk em improviso a manifestar-se através de Sanders numa pequena secção de scat sobre um drone – talvez uma nova forma de ouro sobre azul – que abre alas para a suave reintrodução do saxofone. É de notar que a divisão entre movimentos parece escolhida a dedo, com cada movimento a capturar uma ambiência e tom específicos.
É de seguida um dos momentos mais fortes de Pharaoh Sanders que, aliado ao piano eléctrico e sintetizadores de Floating Points, nos oferece uma prestação fenomenal, um banho de saxofone com direito a toda a sua emocionalidade e variação. Em Movement 5, que acaba com arpejos repetitivos de piano eléctrico e órgão a servirem de fundo para o motivo inicial, desta vez interpretado unicamente por piano, temos aquele que é para mim um dos derradeiros momentos do disco, um solo-feito-crescendo de Sanders a deixar-nos numa expectativa imensa para apenas nos deixar ao som do seu abandono, a fazer-nos notar o espaço que antes ocupava. Felizmente, em Movement 6, o mesmo regressa e com ele a secção de cordas manifesta-se com toda a força, iniciando um crescendo que deixa tudo o que não seja o simples motivo inicial para trás. Esta magnitude incremental continua com uma força delicada que nos envolve e seduz continuamente – há momentos em que esta crescente intensidade quebra para depois poder regressar numa obscenidade lírica que é difícil replicar por meras palavras. Dizem que é na poesia que encontramos uma capacidade genuína de exprimir aquilo que não o pode ser, mas este movimento é prova de que há formas para lá da palavra de o fazer.
Movement 7 – de uma nova era, da era Depois do Crescendo (D.C.) – dá-nos uma nova expressão de emoção. Desta vez é Sanders e Floating Points que se unem num diálogo entre dois casos de caos – ora domado, ora descontrolado, ora concordante, ora dissonante. Os últimos dois minutos são uma tour de force do saxofonista norte-americano, que se desprende da matriz rítmica que o acompanhava e liberta a livre forma do jazz e sintetiza num curto espaço de tempo aquela tão famosa descrição de Lisa Simpson – “you have to listen to the notes [he’s] not playing”. No oitavo e penúltimo movimento os ânimos acalmam – começamos a perceber que um fim iminente se avizinha, mas não sem que o órgão de Floating Points brilhe e tenha direito às suas mudanças de humor: quase de súbito ouvimos um silêncio que mostra aquilo que John Cage queria transmitir com a sua 4’33” – o que se ouve quando não há nada a tocar. Abre-se assim o palco para que o Movement 9 se despeça gentilmente de nós, entrando a LSO momentaneamente em algo de indeterminância, recusando seguir uma linha tonal específica, até terminar numa sucessão de acordes sustenidos que dão lugar a um momento final em que aquilo que nos resta é aquilo com que começámos – silêncio.
Numa nota e sonoridade certamente diferentes mas com intenções semelhantes, lembra-me o trabalho de Actress com a London Contemporary Orchestra – trabalhos criativos na interface entre a música “clássica” e a música electrónica contemporânea. Promises é uma colaboração que, neste aspecto e ao contrário de muitas promessas, não desilude – é uma combinação pouco intuitiva, é certo, mas que se evidencia como fazendo todo o sentido. É uma combinação que nos mostra que a barreira entre aquilo que era a música erudita e aquela que os comuns mortais escutam pode – e deve – ser quebrada para que novas maneiras de fazer e escutar música possam ser sintetizadas.