Pharoah Sanders, Floating Points & The London Symphony Orchestra
Promises

| Março 26, 2021 4:02 pm

 
 
Quando li que um só disco juntava Pharaoh Sanders, Floating Points e a London Symphony Orchestra (LSO), não me perguntei a que soaria; perguntei-me antes o que seria que os juntava, o que sintetizou este momento que, depois de escutado, só pode ser classificado como sublime, delicado, incólume, com tanto de intocado como de intocável. 

Pharaoh Sanders não pode mais ser introduzido sem que isso seja redundante – o mítico saxofonista de jazz espiritual, género do qual é, juntamente com Alice Coltrane e John Coltrane, figura suprema, não passa uma só década sem editar desde os anos 60, com quase 40 álbuns editados desde a sua estreia nos discos de longa duração em 1965. É certo que nem sempre se focou na espiritualidade feita música – a incursão obrigatória pelo jazz fusion nos anos 80 deu-nos momentos interessantes, havendo ainda pequenas paragens pelo cool jazz e os óbvios momentos de free jazz e avant-garde jazz que, invariavelmente, acabam por inspirar a espiritualidade da qual Pharaoh Sanders faz a sua voz e o seu mantra – mas é impensável tentar dissociar o nome do artista oriundo de Little Rock no Arizona deste misterioso subgénero.

É por isso que Floating Points se afigura como um contraponto inicialmente estranho mas ultimamente sensível e indicado do saxofonista octagenário. Apesar de contar com uma carreira assentada fortemente no IDM, house e na electrónica progressiva, é preciso não esquecer que o primeiro álbum do produtor e pianista britânico, Elainea, é uma subtil mistura de jazz contemporâneo com música electrónica experimental, ou que temas mais tardios como Requiem for CS70 and Strings, de 2019, combinam habilmente as tonalidades e cadências de Keith Jarrett com as experiências sónicas de Manuel Gottsching ou Tangerine Dream.

Quanto à LSO, responsável pela interpretação da música composta por Floating Points, não posso dizer nada que os vá engrandecer mais – contam já com colaborações com Elvis Costello ou Paul McCartney e são ainda os grandes responsáveis pela banda sonora da Guerra das Estrelas, com composição e condução de John Williams. Apesar do habitat natural de muitas orquestras não ser o jazz, a colaboração da LSO com Mahavishnu Orchestra no incontornável Apocalypse (tristemente, o penúltimo grande álbum do grupo liderado por John McLaughlin) é currículo suficiente para que estas experiências estejam não só aprovadas como recomendadas. 

Nasce destas três vozes distintas um só corpo coeso e inviolável, um só álbum – Promises, editado a 26 de Março de 20211. A composição assume um registro mais característico do minimalismo contemporâneo, prestando a sua dose saudável de homenagem ao reducionismo e ao seu quase-silêncio. Contudo, apesar destes momentos de quietude quase-absoluta, temos momentos redentores de crescendos assoberbantes protagonizados pela LSO – particularmente no sexto movimento – que nos tiram do nosso transe sem que o mesmo seja perturbado. Em alguns momentos aplica-se a norma de Brian Eno para a música ambient – tão interessante como ignorável – enquanto que noutros são, para lá das cordas da LSO, a electrónica incerta de Floating Points ou a suavidade acutilante do saxofone de Sanders que nos mantêm sempre interessados nesta autêntica lição do que é bonito numa colaboração. 

Mais particularmente, Promises começa com um silêncio grávido e inquietante, eclodindo eventualmente com a simples combinação do que parece ser um cravo e algo análogo a um ideófone de percussão a tocarem a mesma linha repetidamente, abrindo-se entretanto reverberações e misteriosas electrónicas. Pouco passa do primeiro minuto quando o saxofone de Pharaoh Sanders se afirma sem esconder a melodia que o guia. No seu clássico estilo, o saxofonista encontra-se algures entre as notas sustenidas e o improviso livre, de onde surgem pequenos motivos repetidos com uma sintonia assustadora com o resto da secção instrumental. 

No segundo movimento – Movement 2 – as cordas da LSO começam a ocupar os espaços ausentes, num diálogo constante com o saxofone de Sanders. As cordas mudam e ausentam-se em intervalos irregulares mas é constante a emoção indiscritível que nos acompanha. Em Movement 3, aproveitando o silêncio do saxofone, temos um interlúdio em que regressa o motivo inicial em força, criando espaço para que os sintetizadores de Floating Points brilhem, deixando que no Movement 4 tenhamos algo de Meredith Monk em improviso a manifestar-se através de Sanders numa pequena secção de scat sobre um drone – talvez uma nova forma de ouro sobre azul – que abre alas para a suave reintrodução do saxofone. É de notar que a divisão entre movimentos parece escolhida a dedo, com cada movimento a capturar uma ambiência e tom específicos.

É de seguida um dos momentos mais fortes de Pharaoh Sanders que, aliado ao piano eléctrico e sintetizadores de Floating Points, nos oferece uma prestação fenomenal, um banho de saxofone com direito a toda a sua emocionalidade e variação. Em Movement 5, que acaba com arpejos repetitivos de piano eléctrico e órgão a servirem de fundo para o motivo inicial, desta vez interpretado unicamente por piano, temos aquele que é para mim um dos derradeiros momentos do disco, um solo-feito-crescendo de Sanders a deixar-nos numa expectativa imensa para apenas nos deixar ao som do seu abandono, a fazer-nos notar o espaço que antes ocupava. Felizmente, em Movement 6, o mesmo regressa e com ele a secção de cordas manifesta-se com toda a força, iniciando um crescendo que deixa tudo o que não seja o simples motivo inicial para trás. Esta magnitude incremental continua com uma força delicada que nos envolve e seduz continuamente – há momentos em que esta crescente intensidade quebra para depois poder regressar numa obscenidade lírica que é difícil replicar por meras palavras. Dizem que é na poesia que encontramos uma capacidade genuína de exprimir aquilo que não o pode ser, mas este movimento é prova de que há formas para lá da palavra de o fazer.

Movement 7 – de uma nova era, da era Depois do Crescendo (D.C.) – dá-nos uma nova expressão de emoção. Desta vez é Sanders e Floating Points que se unem num diálogo entre dois casos de caos – ora domado, ora descontrolado, ora concordante, ora dissonante. Os últimos dois minutos são uma tour de force do saxofonista norte-americano, que se desprende da matriz rítmica que o acompanhava e liberta a livre forma do jazz e sintetiza num curto espaço de tempo aquela tão famosa descrição de Lisa Simpson – “you have to listen to the notes [he’s] not playing”. No oitavo e penúltimo movimento os ânimos acalmam – começamos a perceber que um fim iminente se avizinha, mas não sem que o órgão de Floating Points brilhe e tenha direito às suas mudanças de humor: quase de súbito ouvimos um silêncio que mostra aquilo que John Cage queria transmitir com a sua 4’33” – o que se ouve quando não há nada a tocar. Abre-se assim o palco para que o Movement 9 se despeça gentilmente de nós, entrando a LSO momentaneamente em algo de indeterminância, recusando seguir uma linha tonal específica, até terminar numa sucessão de acordes sustenidos que dão lugar a um momento final em que aquilo que nos resta é aquilo com que começámos – silêncio. 

Numa nota e sonoridade certamente diferentes mas com intenções semelhantes, lembra-me o trabalho de Actress com a London Contemporary Orchestra – trabalhos criativos na interface entre a música “clássica” e a música electrónica contemporâneaPromises é uma colaboração que, neste aspecto e ao contrário de muitas promessas, não desilude – é uma combinação pouco intuitiva, é certo, mas que se evidencia como fazendo todo o sentido. É uma combinação que nos mostra que a barreira entre aquilo que era a música erudita e aquela que os comuns mortais escutam pode – e deve – ser quebrada para que novas maneiras de fazer e escutar música possam ser sintetizadas. 

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