Unsafe Space Garden em entrevista: “Toda a gente sente que é várias coisas ao mesmo tempo”

Unsafe Space Garden em entrevista: “Toda a gente sente que é várias coisas ao mesmo tempo”

| Abril 23, 2021 10:42 am

Unsafe Space Garden em entrevista: “Toda a gente sente que é várias coisas ao mesmo tempo”

| Abril 23, 2021 10:42 am
Unsafe Space Garden em entrevista
© CISMA
Nascidos na Serra da Penha, em Guimarães, os Unsafe Space Garden surgiram como o projeto musical de Nuno Duarte, acompanhado na foto por Alexandra Saldanha, Filipe Louro, Diogo Costa e Catarina Moura. Uma banda em constante mutação, os USG contam ainda com a ajuda e colaboração de outros músicos na concretização do seu segundo álbum, Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation, e nas performances ao vivo.

Mantendo uma sonoridade caótica e divertida, cheia de humor e criatividade, mas levando-a a novos lugares, editam hoje o álbum em CD e formato digital pela Discos de Platão. Este sucede o EP de estreia Bubble Burst, de 2019, e o álbum Guilty Measures, sobre o qual falámos com a banda o ano passado.

Estivemos em videochamada com o Nuno e a Alexandra para falar sobre o novo disco, o processo criativo da banda e as suas perspetivas para o futuro.

Passaram de trio a quinteto. De que forma é que isso se reflete no som da banda?

Alexandra Saldanha (AS) – O EP e o disco Guilty Measures foram compostos pelo Nuno. Na altura, ao vivo tocávamos cinco, mas considerávamos que havia um núcleo, porque as pessoas que estavam a tocar connosco, embora nossos amigos do coração, eram contratadas. O Diogo, o terceiro desse trio que mencionaste, por estar aqui à beira, acaba por nos influenciar como ser humano que existe à nossa volta. Agora neste disco estamos cinco, mas as composições são minhas e do Nuno. Nós os cinco estaremos sempre presentes, mas ao vivo seremos sete ou oito, porque ainda falta um baterista, um guitarrista e o Silvestre, que já tocava connosco anteriormente, também estará a tocar teclados.

Lançaram um EP e dois álbuns em três anos, são muito produtivos.

Nuno Duarte (ND) – Sim, este projeto surgiu porque eu já estava a fazer música. Era assim que eu passava os meus dias, a fazer canções. Depois surgiu uma coisa com mais identidade, que se tornou Unsafe Space Garden, e a partir daí nunca parei de compor. Agora as maneiras como isso vai acontecendo é que vão alterando, mas há muito material nosso…

AS – Centenas e centenas de músicas. O álbum que sairá a seguir já existe, só lhe falta existir de outra maneira. Ainda não sabe andar, só é. E o a seguir também já existe, provavelmente, e o a seguir também. Ou seja, há um problema muito grave de criação com delay para o mundo, que depois se traduz também em crises existenciais constantes de “mas temos aqui tanta coisa, o que é que vamos fazer com isto?”.

ND – Há mais uma dificuldade, que é pôr um certo aglomerado de coisas como parte do mesmo universo, porque nós ouvimos todo o tipo de música e compor é aquilo que estamos quase sempre a fazer. A parte difícil é só mesmo essa.

AS – É conseguir criar o álbum em si.

Expandiram o vosso som no novo álbum. A “Mighty Flaws” tem sopros e têm aquele instrumento de percussão no início da “I Might Die”. Costumam procurar instrumentos e sons diferentes, ou foi algo que aquelas músicas específicas pediam?

ND – Acho que as músicas foram pedindo isso, mas na procura de fugir um bocado àquilo que se anda a fazer, de repente a “Mighty Flaws” tem um saxofone e a “I Might Die” podia ter mais a ver com percussão e coisas mais vivas. Porque acho que a percussão gravada com microfone dá uma coisa completamente diferente e é muitas vezes negligenciada. Pelo menos eu próprio a negligenciava muitas vezes, até ter-me apercebido que um shaker ou algo como uma cabaça podem mudar completamente o teor rítmico e, a nível textural  principalmente, como a música é e como é percebida.

AS – O que acho que aconteceu de diferente nas composições deste para o anterior, é que nesse ele sentava-se e fazia, como um vómito criativo, e aqui foi mais uma conversa entre os dois. Como eu só toco teclado, era assim: “Hey, aqui podia ter não sei que mais”, e dizia o instrumento mais absurdo e inalcançável possível e depois ele tinha que se desenrascar e arranjar forma daquilo existir. Isso acaba por trazer esta entrada de novos instrumentos.

É quase impor um desafio ao processo de composição para gerar coisas que se calhar não aconteceriam de outra forma.

ND – Sem dúvida, acho que este disco foi muito isso, mas o desafio e a aprendizagem maior foi integrar outra pessoa no processo de composição. É isso que eu acho que lhe dá uma dimensão muito maior, porque a partir do momento em que entrou outra pessoa na composição o disco todo tornou-se bastante inclusivo, mesmo ao nível da opinião dos outros. Ao nível de trazer alguém para tocar saxofone, como foi o caso do Mortágua, ou o Guilherme Moreira, que toca trompa. As músicas tornaram-se algo que ramificou. Foi essa a evolução do anterior para este. Foi mais colaborativo e ficou mais interessante por ser de mais pessoas.

Todos os vossos discos são misturados e masterizados pelo Pedro Ribeiro. Como é que funciona o vosso trabalho com ele? As vossas músicas têm muitos elementos e muitas dinâmicas, então estes processos parecem ser muito importantes.

AS – O Spark (Pedro Ribeiro) é, acima de tudo, um excelente amigo, e tem um feitio muito diferente do nosso, porque nós somos muito caóticos, e ele é super obsessivo com detalhes. Isso é essencial para pessoas como nós, que estão sempre all over the place. O Spark trouxe um bocado de ordem.

ND – Nós temos muita mais propensão para nos estendermos ao comprido. Há um lado criativo que é bom, mas é preciso a rédea de alguém que nos diga “vamos focarmos nisto, vamos fazer isto assim”. E depois o processo de mistura demora muito tempo, é o que demora mais tempo depois da gravação. A gravação deste disco demorou três semanas, o grosso. Depois ainda tivemos outras gravações, porque faltavam outros elementos, e as misturas. Para aí mês e meio, quase todos os dias.

AS – O Spark é um pro no computador e consegue concretizar coisas que para nós parecem só um lodo sem forma.

Qual é a parte mais desafiante nesse processo? Onde é mais complicado chegarem ao que pretendem.

ND – A mistura foi o mais difícil, mas o que percebo como a maior dificuldade é o sentido de conseguir chegar um sítio onde aquela canção, ou o disco inteiro, é nitidamente uma coisa comunicável que nós sentimos que estamos a dizer e que pode ser percebida pelos outros. 

AS – Como o processo de composição calhou nos confinamentos, houve vários meses em que só nos víamos um ao outro e a certa altura já não estávamos a falar nem português, nem inglês, nem língua nenhuma, estávamos meios telepáticos. Passar disso e do choque de estarmos só os dois sempre a compor para existir no mundo real e trazer as outras pessoas todas… foi um choque enorme perceber que há uma linha muito ténue que separa as músicas funcionarem no concreto e existirem como estavam a existir para nós no início, que era amorfo. Era só um sonho e depois passou para essa fase, e para mim foi muito assustador, foi o mais difícil.

E qual a parte mais divertida?

ND – Acho que é a composição.

AS – Sim, para mim também.

ND – É a parte em que não há nada que é pedido por ninguém, não estás a fazer uma tarefa. Claro que a mistura e a gravação têm uma parte criativa, mas também é uma tarefa, enquanto que a composição és tu no teu quarto a fazer o que te apetecer. 

AS – Qualquer coisa pode acontecer. Eu sempre fiz mais “cançõezinhas”. Estou a sentir-me de uma determinada maneira, pego na guitarra ou no teclado e faço uma cena. O Nuno tem uma maneira muito característica de compor. Tentar conciliar a maneira dele, muito perfecionista e abastada, e a minha, mais livre e ao mesmo tempo mais limitada, porque não sei tocar guitarra como deve ser e o acorde que eu inventar na hora funciona. Com ele há a possibilidade de literalmente musicar a sensação que eu estou a sentir naquele momento. Se eu num momento me sentir como um caixote do lixo, o Nuno é capaz de passar seis horas a tentar perceber qual é o acorde que descreve um caixote do lixo. Para mim era extremamente divertido só estarmos ali a tentar perceber o que faltava para ter a sensação correta naquele momento específico. Era um mundo inteiro às nossas mãos, que podíamos inventar naquele momento.

Lembro-me de uma música em específico, que foi a “Thoughts Feelings”, em que não me lembro se existia alguma coisa…

ND – Só existia uma ideia primordial, que foi completamente desbastada.

AS – E depois já não existe. Tínhamos o Juno montado e eu comecei a brincar, o Nuno começou a mexer no Juno enquanto eu brincava e de repente sacámos o teclado inicial. Disto caminhou até aquilo ser o que é agora, “vamos falar sobre o que são pensamentos”. Lembro-me que essa música exigiu bastante. Para nós foi groundbreaking inventar uma sala em que estão duas pessoas que estão a discutir o que é o pensar e existem seres que estão a falar sobre sabe Deus o quê, e depois ainda vai para disco night total. Para mim, compor essa música descreve um bocado o que foi o processo todo do disco, que é descobrir o que vem a seguir e experimentar tudo o que existe até ser exactamente o que precisa de estar aqui.

Gostei dos momentos do álbum em que têm diferentes vozes a interpretar diferentes personagens. Estão a pensar em expandir mais esse conceito?

ND – Estamos a pensar muito sobre isso, aprimorar ao máximo em estúdio e mesmo ao vivo. Aí podem ter outras componentes visuais e cénicas que podem trazer muito mais às músicas, podem elevá-las a outro nível.

AS – Lembro-me que houve um momento ao compor o disco em que cantei uma cena específica numa música que estava em aberto. Como se eu fosse duas coisas completamente diferentes, porque eu amo tudo e ao mesmo tempo estou sempre a arruinar tudo para mim e para toda a gente. Acho que toda a gente sente que é várias coisas ao mesmo tempo. Um dia sobe a parte de nós que é mais irritável e noutro dia somos a pessoa mais gentil e amorosa de sempre. Neste disco essas vozes todas vêm ao de cima. 

Dizemos para nos colocarmos a perspetivar os nossos pensamentos e as nossas atitudes no mundo, mas nós também somos quem sofre, e é ridículo. As muitas vozes vêm da noção de que ao mesmo tempo que estamos a tentar dizer um determinado caminho que podemos percorrer para nos apercebermos de nós mesmos, também somos a pessoa que se está a aperceber de si mesma e é um ser humano falível, então é preciso ter várias vozes para descrever isso. 

ND – Isto das vozes muito naturalmente apareceu porque é assim que nós funcionamos no dia a dia. Alguma coisa acontece e digo “porque é que fizeste isso?” e no momento em que me estou a ouvir repito “porque é que fizeste isso?” [em tom de troça]. Tu vais criando uma noção de ti em que questionas porque é te estás a enervar, é mesmo só idiota. Porque o “isso” não foi trágico, estás a perceber? Isso muito naturalmente passou para as músicas, é a cola do que é este projeto.

Como é que desenvolvem o lado visual da banda? Trabalham bastante esta componente, tanto nos vídeos, como nas capas e as roupas que usam ao vivo. Têm muitas cores e muito caos, tal como a música. Agora parece-me que estão a apostar numa estética um bocado diferente.

AS – Se fossemos para lá nós mesmos, vestidos como nos vestimos normalmente, não seria totalmente honesto, porque ali estamos a tentar encapsular um bocado o que é ser humano e alguma coisa que está acima desse ser-se humano. É como vestir aquela personagem que enquanto está a dizer “hahaha, és um idiota!”, também está a dizer “mas eu também sou um idiota”, e ser essas coisas todas ao mesmo tempo e sair de Alexandra, de Diogo e de Silvestre implica que tenhas um traje. E tinha, obviamente, que ser extremamente colorido e psicadélico, porque para nós não fazia sentido de outra forma. Pode vir a fazer sentido estarmos só de traje preto em palco, mas para já é isto que está a fazer sentido.

No EP não fomos nós que fizemos e foi diferente, mas no anterior o Diogo fez o artwork, misturando desenhos meus com fotografias nossas com caos. Agora já não somos nós que estamos a fazer o artwork, nem o que temos postado no Instagram e no Facebook. Têm sido um coletivo que é a CISMA, cá de Guimarães, excelentes profissionais e amigos. Eles é que nos abordaram há muito tempo atrás, “vocês fazem cenas fixes, mas são demasiado caóticos e é muito difícil para quem está fora perceber o que estão a dizer”. Então eles vieram salvar essa parte, para ser mais perceptível. Porque às vezes nós chegamos lá e metemos uma imagem do que é que querem dizer as caudas dos gatos e dizemos “olá”, e para a maior parte das pessoas se calhar não faz sentido nenhum. Eles vieram trazer um pouco de ordem à forma como nós nos apresentamos às pessoas.

ND – Vem de encontro ao que disse à bocado do álbum e da inclusão. Também ter a interpretação de pessoas de fora das nossas músicas. Interpretações mais sóbrias e nítidas. Não tão suscetível a mil interpretações porque é tudo e nada ou nenhuma interpretação.

Vão lançar o álbum na pandemia e nem vão poder apresentá-lo já ao vivo. Como é que estão a pensar dinamizar a divulgação? Têm videos ou outras coisas preparadas ou em mente para chegar a um público mais abrangente?

AS – Agora andamos a sonhar um bocado, porque ainda não bateu que 2021 está perdido para toda a gente. [risos].  “Se calhar ainda vai dar”, ainda estamos nessa fase. E se calhar ainda vai dar.

Para quando eventualmente encararmos que não vai dar, algumas ideias têm surgido de outras coisas que fomos fazendo em segundo plano com Unsafe. Por exemplo, livros e um documentário, ideias para fazer espetáculos com crianças, ou só colaborar com a comunidade. Trazer as artes para as pessoas “comuns” e usar Unsafe como um veículo para trazer ao de cima um pouco do que há de caótico em toda gente. Isto também só pode acontecer quando não houver pandemia, mas ainda assim vamos pensando de que maneira podemos concretizar isso.

Um dos membros novos de Unsafe é o Filipe Louro, que toca com Rite of Trio e Salto. Ele também veio trazer uma série de ideias absurdas que podem funcionar, seja vídeos ao vivo com cenários ou momentos teatrais que nós já temos ao vivo, mas nunca fomos a fundo com o que podemos fazer com isso. Em vídeo, se calhar é muito mais fácil concretizar a loucura total do teatro de Unsafe. Por isso vamos acreditar no melhor e que vão acontecer coisas altamente na mesma.

Têm algo a acrescentar para quem não vos conhece? Porque é que deviam ouvir Unsafe Space Garden?

AS – [risos] Porquê? Isso coloca-me numa posição de dúvida existencial muito grande. Porque é que as pessoas deviam ouvir Unsafe Space Garden? 

ND – [risos] Nós fazemos isto porque há uma necessidade muito grande. Se há uma necessidade muito grande, é porque há algo que está em falta. Se há algo que está em falta, então, se calhar, para as pessoas que sentem que algo está em falta, pode ser que faça sentido ouvir Unsafe, porque esse em falta é vago, mas ao mesmo tempo não é assim muito vago. E o que é esse em falta? Ouçam Unsafe Space Garden.

AS – [risos] Acho que também ajudaria dizer que podem ouvir Unsafe e conversar connosco sempre que quiserem. Nós já tentámos deixar mais ou menos expresso, nos meios que temos de chegar às pessoas à nossa volta geograficamente, que podem mandar mensagem e conversar um bocadinho, porque uma canção nunca é só sobre mim e uma pessoa específica, são só contemplações acerca da espécie humana. E podem ouvir só para tentar perceber se nós estamos a dizer alguma coisa que faz sentido para elas e podem dançar, porque há partes em que é fixe dançar, ou lavar a loiça.

Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation pode ser escutado nos diversos serviços de streaming e no Bandcamp da banda.

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