Já quase com a primeira metade de 2021 a ganhar forma começam também a selecionarem-se as mais marcantes obras da temporada. Para ajudar à escolha na sextagésima sétima edição do Cinco Discos, Cincos Críticas fazemos um apanhado que inclui desde os portugueses Unsafe Space Garden – que em abril passado editaram Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation (Discos de Platão); faz viagem até à África Ocidental para conhecer as canções de Witch Camp (Ghana) – I’ve Forgotten Now Who I Used To Be (Six Degrees Records); passa ainda por Manchester – para conheceer o novo Never The Right Time (Modern Love) de Andy Stott – pela e Dinamarca com Tettix Hexer e o seu reeditado álbum de estreia, The Great Vague (Third Coming Records), antes de voltar a Portugal ao som do disco colaborativo de David & Miguel – Palavras Cruzadas.
As opiniões relativas aos respetivos lançamentos, seguem amplificadas abaixo.
Unsafe Space Garden – Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation | Discos de Platão | abril de 2021
8.3/10
Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation é o segundo álbum dos Unsafe Space Garden, banda nascida na Serra da Penha, em Guimarães. Com um expandido leque de músicos e colaboradores, os USG mostram-se mais ambiciosos do que nunca, com a mesma criatividade e teatralidade de sempre.
Sem alguns dos excessos de lançamentos anteriores, a banda mantém toda a sua exuberância e energia contagiante num disco longo, mas continuamente cativante, capaz de nos surpreender a cada música. “BYGSIYE”, a faixa introdutória, tem como foco um voice-over que indica de forma humorosa as condições ideais para a audição do álbum, suportado por um instrumental surpreendentemente movimentado. É à volta destas dinâmicas acentuadas que giram várias músicas dos USG – voltamos a encontrá-las nos fortes contrastes de “Split Screen Vision” ou nos piscares de olho ao rock progressivo que ouvimos, por exemplo, nos riffs e estrutura de “Em Defesa Do Sol”. Os vocais são igualmente imprescindíveis e “Thoughts Feelings” reflete a variedade de técnicas presentes no disco: diferentes formas de cantar ou falar, o uso de diversos efeitos e as afinadas harmonias vocais. “Mighty Flaws” também merece ser destacada, seja pelos encantadores instrumentos de sopro, a suave secção de ritmo, o piano saltitante ou o ponderado solo de guitarra.
BYGSIYE é o melhor trabalho dos USG até agora, um álbum muito consistente e bem produzido que assegura a banda como uma das mais originais no panorama da música nacional. Contam com um estilo muito próprio e não têm medo de o explorar e expandir como querem.
Rui Santos
9.0/10
Sem grandes rodeios, I’ve Forgotten Now Who I Used To Be é um álbum de temas interpretados por mulheres que foram escorraçadas para campos de bruxas. Na República do Gana, onde as mulheres podem ser vistas como bruxas por serem inférteis ou por as colheitas terem sido más, estes campos oferecem – contra a vontade do governo do Gana – um asilo necessário para que as alegadas bruxas possam continuar a viver sem serem caçadas.
I’ve Forgotten Now Who I Used To Be oferece-nos um vislumbre único sobre essa realidade – estas gravações representam uma paisagem emocional vívida do tormento que assolou estas mulheres, que escolheram ficar anónimas por segurança. As gravações foram feitas por Ian Brennan e Marilena Delli Umuhoza, uma dupla conhecida por ter gravado, nas palavras de Dorian Lynskey para o The Guardian, comunidades perseguidas ou traumatizadas que fizeram a sua música em circunstâncias extremas – exemplos destas comunidades são os prisioneiros de uma instalação de alta segurança em Zomba, no Malawi, ou veteranos da guerra do Vietname. I’ve Forgotten Now Who I Used To Be é um disco que não é condescendente com o ouvinte, expondo sem medos as realidades da dor através de temas como “I Have Lost All That I Love”, “I Trusted My Family”, “They Betrayed Me” ou “Only God Can Judge Me” e a força de continuar a viver de canções como “Love, Please” ou “Wizard Drum” – os títulos são a única explicação que é oferecida para cada um destes temas que são instrumentais ou cantados em dialetos pouco falados do Gana.
Apesar da força e tristeza que por vezes evoca, I’ve Forgotten Now Who I Used To Be acaba com um assombro: “Left To Live Like An Animal” é o nome dessa experiência pulsante, genial e genuína, mas tenebrosa, desconfortável e pouco familiar – palavras vagas mas talvez as mais certeiras que disponho para descrever aquilo que I’ve Forgotten Now Who I Used To Be é.
José Guilherme Almeida
7.5/10
O novo álbum de Andy Stott, músico e produtor de Manchester, surgiu no seguimento de uma improvável proposta “para produzir para um artista mainstream“, acontecimento que obrigou o produtor a atrasar o seu lançamento, planeado originalmente para 2020, para 2021.
Editado em abril pela inglesa Modern Love, Never The Right Time, assim se chama o álbum, sucede o anterior EP It Should Be Us, de 2019, e assinala o primeiro trabalho do produtor em formato de longa-duração desde Too Many Voices, de 2016. Alison Skidmore, antiga professora de piano e colaboradora de longa-data, volta a contribuir com novos e emocionais trechos de voz, mas ao invés do complexo trabalho de corte e colagem dos antecessores Luxury Problems ou Faith in Strangers, onde já havia participado, a sua voz mantém-se inalterada, conferindo inteligibilidade a uma obra outrora incorpórea. Ao contrário do anterior Too Many Voices, que parecia apontar para várias direções sem nunca chegar a um consenso, Never The Right Time equilibra a aura sombria de Luxury Problems, mais mecânico e informado pelas propriedades sónicas do dub, e as qualidades dissonantes do sucessor Faith In Strangers, mais experimental e polirrítmico. O tema “The beginning”, que serviu de primeiro avanço ao disco, é uma abordagem noir ao conceito clássico de canção pop, evocando Laurel Halo nos tempos de Quarantine, outro álbum que combina atmosfera, desejo de experimentação e sensibilidade pop de modo inventivo.
Mais do que traçar novas coordenadas, Never The Right Time encerra um capítulo iniciado em 2011 com a parelha de mini-álbuns Passed Me By e We Stay Together, motores de arranque para uma das mais coesas e fascinantes discografias da eletrónica dos últimos dez anos.
Filipe Costa
7.5/10
O produtor dinamarquês Tettix Hexer estreou-se o ano passado nas edições longa-duração com The Great Vague, disco que esculpiu para o mundo a sua produção afunilada entre o shoegaze expansivo e a eletrónica meridional.
Editado originalmente em março na versão digital foi, em novembro de 2020 que The Great Vague viu a sua merecida edição física no formato vinil pelas mãos da Third Coming Records em colaboração com a The Big Oil. Composto por oito temas que se propõem a ser uma ode a “todas as músicas extintas e uma ode a todas as músicas que ainda estão por nascer” The Great Vague é um disco que se destaca às primeiras audições pelas as criações rítmicas que aporta. Se, no tema homónimo de abertura somos absorvidos por uma imensidão de estímulos, no percurso sonoro do álbum vamos encontrando filtros ora mais melancólicos e contidos (como ouvimos em “Vehændelse”), ora de sensibilidade devocional como é o caso de “Visible Winds of Spring”, um dos mais agridoces temas do disco e, possivelmente, a melhor faixa do disco pelo automático sentimento de imersão que transpõe. Por vezes orgânico e embrionário (“Immutable Interior Design”), outras urbano e alienado (“Lidness Sleep”), a viagem proporcionada por The Great Vague consegue tão depressa absorver como refratar as luzes da noite em temas suaves, distintos e altamente abrangentes.
Num registo puramente instrumental e vanguardista, Tettix Hexer constrói o seu completo mundo sonoro numa eletrónica característica pelos breakbeats desarticulados, paredes de som enubladas e um design futurista. The Great Vague é uma introdução selvagem à discografia de um nome que se antecipa promissor na produção eletrónica.
Sónia Felizardo
7.8/10
Palavras Cruzadas trata-se de uma colaboração entre David Bruno e Miguel Caixeiro (também conhecido como Mike El Nite).
Neste álbum-paródia, o duo adapta a portugalidade romântica ao século XXI de uma forma foleira, mas no bom sentido. Apesar de se tratar de uma obra razoavelmente pequena (27 minutos), tem uma produção bastante atenta ao pormenor, pedindo emprestado o synthpop dos anos 80 de uma forma sofisticada e retro-modernista, fazendo jus a todo o tema saudosista do sofrimento por amor e provando mais uma vez a competência de David Bruno como produtor (e caso ainda existam dúvidas, basta ouvir Miramar Confidencial ou qualquer coisa dos Conjunto Corona). Também de destacar a incrível química entre os dois músicos em questão, especialmente em faixas como “Sónia”, “Inatel” e “H2ON”.
João Pedro Antunes