Cinco Discos, Cinco Críticas #69

| Setembro 19, 2021 11:26 pm

Este mês voltamos a destacar alguns dos artistas que mais nos surpreenderam nas últimas semanas, partilhando recomendações para todos os gostos. Vamos das atmosferas etéreas de Lingua Ignota e Rachika Nayar ao caos dos Tropical Fuck Storm, passando pelas marcantes evoluções sonoras de Little Simz e Deafheaven. Leiam abaixo as nossas opiniões.

Lingua Ignota – Sinner Get Ready [Sargent House]

Dois anos após o aclamado Caligula, Lingua Ignota lançou no passado mês de agosto o seu terceiro LP: Sinner Get Ready. Tal como o seu antecessor, este álbum foca-se muito num darkwave bastante inspirado na música clássica ocidental, dando à obra uma perspetiva bastante ampla, mas também aterrorizantemente escura. No entanto, este sentimento é agora ainda mais intensificado pela adição de um ambiente mais litúrgico, tanto em termos sonoros como líricos (sendo “I Who Bend the Tall Grasses” talvez o melhor exemplo). Basicamente, Lingua Ignota utiliza a cultura católica para fazer o ouvinte sentir-se cercado por uma barreira de som impenetrável que o obriga a olhar de frente para um liricismo cru e cruel, como que a anunciar a vinda de um castigo divino de ordem apocalíptica.

Além do conceito do catolicismo, a artista estadunidense aborda também a estética da vida rural do estado da Pensilvânia a partir de alguns sons emprestados pela música tradicional apalache. Por se tratar de uma área com uma população bastante ligada à religião cristã, é de se esperar que ambas as temáticas acabem por se fundir. O exemplo mais cativante desse mesmo fenómeno é a faixa “Perpetual Flame of Centralia”. Liricamente, retrata a história de Centralia, uma cidade no oeste da Pensilvânia que foi evacuada e abandonada devido a um incêndio que continua ativo desde 1962. No entanto, no meio desse caos, uma igreja católica acabou por ficar completamente intacta, estando ainda hoje em funcionamento. O instrumental desta música é o mais calmo de todo o disco, quase que parecendo um lugar seguro no meio do inferno. Uma bela melodia de piano cercado por sonoridades impetuosas, incansáveis e irrequietas que marcam o LP. No fundo, tal como a igreja que a faixa menciona.

No final de contas, eu diria que Sinner Get Ready é um dos grandes destaques musicais de 2021. É uma experiência que fica na memória, tanto pela sonoridade que parece vinda de um pesadelo como pela forma como Lingua Ignota utiliza as temáticas da religião católica e da pacífica vida rural da Pensilvânia a seu favor, sem precisar de os distorcer: apenas pegou nos pontos certos já existentes e criou magia ao compilá-los sem que a sua identidade artística sofresse mudanças drásticas.

João Pedro Antunes

Rachika Nayar – Our Hands Against the Dusk [NNA Tapes]

Em Our Hands Against the Dusk, a compositora e produtora Rachika Nayar utiliza a guitarra como elemento base das suas composições. Recorrendo à síntese granular para transformar os sons originais do instrumento, constrói ambientes dinâmicos nos quais os samples são divididos em partes minúsculas, grãos, que sequenciados ou tocados em simultâneo criam texturas sonoras muito particulares. Esta união do som analógico à manipulação digital resulta numa sonoridade quase glitchy que contrasta com a restante instrumentação do álbum, esta última assente em simples melodias tocadas na guitarra. Cobertas em reverb, dão uma forma mais nítida às atmosferas difusas e nebulosas imaginadas pela artista. Em algumas faixas ouvimos o violoncelo de Zeelie Brown ou a voz de YATTA, que contribui com uma impressionante performance em “Losing Too Is Still Ours”.

Ao longo de toda a sua duração, o álbum mantém-se dinâmico e envolvente, avançando de forma suave e orgânica e refletindo um estado de sonho pacífico e melancólico.

Rui Santos

Little Simz – Sometimes I Might Be Introvert [Age 101]

Estaria a mentir se dissesse que soube logo o que dizer sobre Sometimes I Might Be IntrovertGrey Area rapidamente se sedimentou como um álbum essencial da cena britânica de hip hop, colocando Little Simz, a rapper britânica de ascendência nigeriana, numa ribalta que a própria revelou ser algo a que ainda está pouco habituada. Sometimes I Might Be Introvert (um título que reimagina a sua alcunha, Simbi, como um acrónimo) serve então de um exorcismo das imagens típicas de rapper que possamos ter de Little Simz – há alguma introversão nesta artista que não se revê na etiqueta de mera MC, há coerentes contradições e uma força oculta a esconder-se num lago de aparente tranquilidade neste Sometimes I Might Be Introvert: a orquestração que abre o álbum com “Introvert” é um mero percalço para o neo-soul que consume o disco até ao final, desde a celebração da mulher em todas as suas dimensões com “Woman” até à atitude frontal de “Point and Kill”.

Espalhados pelo álbum temos ainda pequenos interlúdios de intimidade, momentos sinceros que seduzem e relaxam, momentos que sussurram: “há pressão, mas não é isso quem tu és”. Little Simz conseguiu dar que falar com Grey Area, mas é com Sometimes I Might Be Introvert que se lacra como uma das melhores artistas de hip hop deste século – introvertida ou não, Little Simz não esconde o talento que tem.

José Almeida

Deafheaven – Infinite Granite [Sargent House]

Três anos após o lançamento de Ordinary Corrupt Human Love, os Deafheaven regressam com Infinite Granite, o quinto registo discográfico da banda norte-americana. Este álbum foi produzido por Justin Meldal-Johnsen, que é mais conhecido por ser ex-integrante da banda de Beck e trabalhar com bandas como M83, Paramore e Jimmy Eat World. Aqui, o grupo oriundo de São Francisco admitiu despir propositadamente as vestes do blackgaze, abraçando melodias e vozes (muito) mais suaves, mudança essa que originou reações diversas dos seus fãs e imprensa, alguns louvando os Deafheaven por explorarem mais os terrenos do shoegaze ‘clássico’ como doutrinado por Slowdive e Ride, outros criticando a metamorfose sonora quase abrupta.

Logo em ”Shellstar”, a primeira faixa de Infinite Granite, esta metamorfose torna-se evidente mal ouvimos as primeiras vozes de George Clarke. De growls estridentes característicos do black metal a vozes dignas de homenagear os vocais mais suaves do shoegaze. De blast beats poderosos a melodias de guitarra estrelares. A distorção obviamente continua lá, mas com menos presença. A meio do álbum, temos talvez em “Neptune Raining Diamonds” a malha que mais sobressai pela sua simplicidade, consistindo apenas em sintetizadores carregados de reverb prontos para nos levarem ao cosmos. “The Gnashing” marca o momento mais pesado de Infinite Granite, o qual chega ao fim pouco depois com “Mombasa”, uma autêntica viagem que começa serenamente e acaba numa enorme parede sonora.

Este foi o trabalho mais ambicioso dos Deafheaven até à data, onde exploraram sonoridades suaves pelos quais ainda não se tinham aventurado tão extensivamente. Talvez seja por isso que alguns fãs antigos da banda são mais críticos, mas se gostam de shoegaze este disco é para vocês.

Tiago Farinha

Tropical Fuck Storm -Deep States [Joyful Noise]

Um dos maiores ovnis da música rock nos dias que correm, os australianos Tropical Fuck Storm, no seu terceiro disco, Deep States, ampliaram ainda mais a estranheza dissonante que os tornava uma das bandas de guitarra mais interessantes do momento, ao ponto de deixar os fãs a questionarem até que ponto vale a pena suportar o seu som caótico.

A sua estreia, A Laughing Death in Meatspace, de 2018, era uma compilação de incríveis e estranhas músicas com influências de art punk, noise rock, punk blues e psych rock, com faixas intensas e profundamente pessoais que foi recebido como uma lufada de ar fresco. Um ano depois, a banda partilhou Braindrops, que conseguiu a proeza de soar mais caótico enquanto mantinha uma narrativa mais coerente entre as suas faixas, passeando por temas como a corrupção política e doenças mentais com uma certa lógica. Deep States pode ser visto como uma sequela de Braindrops, no sentido em que mantem a mesma lógica do seu sucessor, um som ainda mais dissonante e uma narrativa mais política.

A banda de Gareth Liddiard, Fiona Kitschin, ambos membros dos The Drones, Erica Dunn e Lauren Humme, motivada em grande parte pelos loucos tempos que vivemos, da covid-19 à invasão ao capitólio (a música “Blue Beam Baby” é dedicada a Ashli Babbit, a veterana da força aérea dos EUA que foi baleada pelas autoridades enquanto tentava invadir este edifício), cria neste conjunto de músicas o seu trabalho mais contemporâneo e atento até ao momento.

Apesar de o caos das músicas alhear o ouvinte em certas alturas, é de louvar a conquista artística que é conseguir superar a balburdia que já era o seu material anterior, pois só assim é possível representar os tempos confusos que vivemos nos últimos meses.

Hugo Geada

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