A nova edição do Cinco Discos, Cinco Críticas foca-se no panorama atual do hip hop, com textos sobre os novos álbuns de Rural Internet, Tommy Genesis e Injury Reserve, e em alguns dos artistas alemães mais entusiasmantes dos últimos tempos, falando sobre o jazz de Web Web x Max Herre e a música de dança eletrónica de Skee Mask.
Web Web x Max Herre – WEB MAX [Compost Records]
Os anos 70 foram um período de enorme ebulição para todo o universo jazz, contudo o transcendente e intenso spiritual jazz atingiu o seu pico durante esta década. Em 2021 estamos a assistir a um reviver e ressurgimento dessa surreal energia vinda diretamente da Alemanha, mais concretamente de Munique.
No inverno de 2014 o compositor, produtor e rapper alemão Max Herre conheceu o pianista Roberto Di Gioia depois de um estonteante concerto juntos, tendo sido nesse momento dado o primeiro passo para um futuro reencontro. Passados seis anos, nasce assim o magnífico álbum WEB MAX que serve de homenagem a uma época de ouro vivida pelo êxtase universal do spiritual jazz. O quarteto Web Web e Max Herre quiseram também juntar ao seu mapa astral alguns convidados de luxo e mentores do planeta jazz, tais como o vibrafonista Mulatu Astatke que é o pai do Ethio-jazz, o trompetista Charles Tolliver e fundador da prestigiada editora Strata East e a maravilhosa harpista americana Brandee Younger.
A curta introdução de “The Prequel” é pautada pelo forte ritmo swing, tal como mandam as leis das composições e dos clássicos jazz, tornando-se assim o aperitivo deste espiritual banho de imersão orquestral. As influências árabes de “Turquoise” e de “Whirlin’” são inspiradas nas obras da cantora libanesa Fairuz e do mítico compositor Elias Rahbani, que são ambas referências relevantes da música feita no médio-oriente. As únicas palavras escutadas durante o disco são a declamação de um poema em “Akinuba / The Heart” feito pelo espírito indomável do flautista e saxofonista Yusef Lateef, falecido em 2013. O encanto de Brandee Younger brilha em “Satori Ways” com a sua aura celestial e atmosférica, ao convocar toda a orquestra para um novo despertar para uma dimensão universal e de literal compreensão através da sua harpa. A vibrante avalanche escutada em “Intersections” é uma ode aos lendários do jazz com quem Charles Tolliver conviveu e demonstra a sua excelente forma com os seus plenos 79 anos de idade, enquanto que a calma em “Thesa-Mbawula” transmite a emoção das raízes jazzísticas provenientes da África do Sul.
Eduardo Coelho
Rural Internet – escape room [edição de autor]
Dividido entre os Estados Unidos e a Austrália, o trio Rural Internet tem em escape room o seu segundo álbum do ano, sucedendo o agressivo BREAKING UP, onde apresentaram uma sonoridade distorcida e influenciada pelo trap envigorada por alguma experimentação que os distinguia de outros artistas do género. Em escape room, os Rural Internet abraçam mais géneros musicais, técnicas e instrumentos, criando um dos álbuns mais ecléticos e surpreendentes que ouvi este ano. Adoro ouvir artistas que variam entre estilos diferentes sem receio, mas de forma fluída, sem que soe estranho ao longo de um disco, e é isso mesmo que sucede neste álbum, que passa pelo hip hop, o pop e o rock, mas é muito mais do que uma simples mistura destes abrangentes géneros.
A abrir o disco está “i am not brave”, uma das músicas mais arrojadas da tracklist. A introdução de música clássica transforma-se numa batida rítmica que complementa vocais emo alternados com um rap que começa por lembrar JPEGMAFIA, culminando num outro dominado por sintetizadores chiptune e vocais femininos agressivos à Black Dresses. Como se isso não chegasse, segue-se a contagiante “love”, cuja sonoridade pop incorpora ritmos dancehall, guitarras folk e vocais adicionais manipulados ao estilo de Alvin e os Esquilos. Isto dá desde início uma ideia das combinações e transições inesperadas que podemos esperar de escape room, mas o álbum tem mais a oferecer e brilha também com algumas músicas mais diretas, como a orelhuda “time” e a energética “rapture”.
escape room é divertido e empolgante, mas perde algum fôlego na segunda metade, na qual se encontram a maior parte das faixas que não me convenceram, tanto dentro como fora do contexto de álbum. Pela diversidade de sonoridades já referida, deve ser difícil chegar a um consenso sobre as melhores ou piores faixas, mas há certamente muito aproveitar para ouvintes com gostos variados. Os Rural Internet são um grupo jovem, mas já muito prolífico, e escape room é a introdução ideal aos seus talentos. Um nome a não esquecer num futuro próximo.
Rui Santos
Tommy Genesis – goldilocks x [Downtown Records]
Três anos após o lançamento do seu álbum homónimo, Tommy Genesis está de volta com goldilocks x, o terceiro registo discográfico da artista canadiana. Com a mão de Lil Baby, a própria Genesis ficou encarregue da produção, departamento no qual contou com várias colaborações ao longo do disco. Aqui veste novamente as vestes do hip hop alternativo, passando por sonoridades mais distintas como pop ou house em certos momentos, usando letras de cariz feminista para potenciar a sua feminidade num meio tão masculino como o trap.
“a woman is a god”, uma das primeiras faixas de goldilocks x, e “men” são um verdadeiro exemplo de como a artista oriunda de Vancouver se empodera através da música. Malhas como “manifesto”, “mmm” e “wet” mostram a faceta mais trap de Genesis, com batidas 808s mais salientes e um flow mais característico do género. O álbum termina numa crescente pop, culminando em “fuck u u know u can’t make me cry” e “hurricane”, sendo que a primeira tem uma sonoridade mais pop punk, distinguindo-se do resto do álbum com vocais mais distorcidos e sentimentais.
Embora dê a sensação que não é utilizado todo o potencial de Tommy Genesis, goldilocks x é uma audição agradável para quem procura estar a par dos novos lançamentos do género.
Tiago Farinha
Skee Mask – Pool [Ilian Tape]
Mais de um ano de afastamento global do suor das pistas de dança poderia representar um obstáculo criativo para um predestinado dos breakbeats como Skee Mask, o alter-ego de Bryan Müller. Não foi o caso.
Depois de dois EPs lançados em 2020, um de “cuts” do seu dub techno irrepreensível e o outro totalmente ambient, o músico bávaro regressou no passado mês de Maio com Pool, o seu terceiro longa-duração que é mais uma obra híbrida e quase de antologia: são praticamente duas horas (!) de bangers de alta-rotação que viajam do drill aphextwiniano (“Testo BC Mashup”) ao house (“Crosssection”), passando pelo drum’n’bass clássico (“Collapse Casual”), o ambient techno (“Dolan Tours”) ou o footwork (“Breathing Method”), e até alguns beats que roçam o g-funk (“Harrison Ford”).
Essa versatilidade e a forma como Skee Mask demonstra uma fluência incomum em qualquer que seja a “linguagem” da música electrónica em que decida operar são acentuadas pela elegância e minúcia de cada composição. Nenhum beat soa duas vezes igual e há twists e surpresas a todo o segundo — cada cut é uma obra em permanente mutação. A pulsação irregular e desconcertante a que o álbum decorre, à qual se juntam os já habituais interlúdios de ambient atmosférico (“Ozone” ou “Absence”) utilizados com engenho no aclamado Compro de 2018, consegue não só impedir que um disco tão invulgarmente longo se torne anémico como o transformam numa obra viva, constantemente intrigante e irresistível.
Luís SobradoInjury Reserve – By the Time I Get to Phoenix [edição de autor]
By The Time I Get to Phoenix é o segundo álbum dos Injury Reserve, grupo de hip hop experimental originário do estado do Arizona. Lançado de forma independente, trata-se do primeiro lançamento do (agora) duo desde o falecimento de um dos seus membros – Stepa J. Groggs – no verão do ano passado, durante as fases iniciais da gravação deste álbum. Este trágico evento criou um terramoto na sonoridade dos Injury Reserve. Sim, eles sempre foram mais virados ao hip hop experimental e industrial: isso não é algo novo de todo. No entanto, antes existia uma grande dose de paixão, alegria e quirkiness. Já em By the Time I Get to Phoenix, a energia experimentalístico-industrial passou a ser canalizada num sentimento de desanimação incorrigível, um caos apocalíptico: não no sentido de o mundo em si enquanto coletivo estar a acabar, mas porque podemos ouvir o som de duas almas a serem dolorosamente corroídas pelo luto. Não temos a alegria que víamos em faixas do álbum anterior como “Jailbreak the Tesla” ou “Three Man Weave”: temos uma eulogia de 40 minutos constituída por um miasma de escuridão e desconsolação desesperada, temos uma abordagem ao conceito da morte de um ente querido de uma forma quase niilista. É algo triste de se ouvir, mas é executado de uma forma incrível.
Agora, mesmo que não relacionemos o instrumental com a temática da obra em si, temos aqui algo extremamente interessante: um hip hop surreal, dissonante e denso que acaba por se ver complementado por vastas influências no glitch hop e até mesmo no rock (especialmente “Superman That”, uma faixa que, se me dissessem que se trata de um remix dos Injury Reserve a uma canção dos britânicos Squid, eu acreditaria). Assim, ora cria-se um psicadelismo complexo (“SS San Francisco” e “Knees”), ora um caos gritante (“Footwork in a Forest Fire” e “Smoke Don’t Clear”). Se quiserem a clássica comparação via outros artistas, então eu descreveria este álbum como uma colaboração entre clipping., JPEGMAFIA e Kanye West na era do 808s & Heartbreak, mas ocasionalmente acompanhados por qualquer banda do movimento do post-brexit punk.
No fundo, eu diria que By the Time I Get to Phoenix é um álbum difícil de digerir. No entanto, torna-se cada vez mais coeso e consistente a cada ouvida. A temática entranha-se mais e mais e mais e as constantes mudanças de ritmo vão fazendo cada vez mais sentido. Resumidamente, trata-se de um álbum que leva o seu tempo, sem grandes pressas. Assim que bem digerido, temos à nossa frente aquele que é discutivelmente o melhor projeto de hip-hop deste ano (até agora).
João Pedro Antunes