Cinco Discos, Cinco Críticas #73

| Março 1, 2022 4:19 pm

A nova vaga britânica de pós-punk e pós-rock continua a dar frutos em 2022, desta vez com os novos álbuns de Black Country, New Road e caroline, estes últimos a estrear-se após o lançamento de quatro singles. Alphabet Holds Hostage é também um jovem projecto em ascendência com uma sonoridade próxima do dream pop, também explorada pelos mais experientes Beach House no seu oitavo longa-duração. Entretanto, os Zeal & Ardor também continuam ativos, exibindo o seu metal experimental num álbum homónimo.

Zeal & Ardor – Zeal & Ardor [MVKA]

O curioso projeto de metal vanguardista Zeal & Ardor, brainchild do músico suiço radicado nos EUA Miguel Gagneux que tem vindo a cativar as hostes ecléticas do género nos últimos anos, regressa aos discos com o seu terceiro álbum, homónimo. Este álbum mantém o alternate universe levado a cabo pelos registos anteriores da banda, em que os escravos americanos se viraram para o satanismo em vez do cristianismo num esforço para colmatar a sua vida penosa de trabalhos forçados, além de desenvolver ainda mais o seu cruzamento sonoro de black metal com sonoridades espirituais e soul/blues ao aventurarem-se com incursões em outros géneros adjacentes. Esses estilos sonoros podem tanto ser algo nas lides do blackgaze (como visto na faixa “Hold Your Head Low”) como certos apontamentos de eletrónica/industrial (como evidenciado em “Erase” e “Bow”) e até laivos significativos de hardcore (mais notáveis em “I Caught You” e na faixa cantada em alemão Götterdämmerung”), estilos esses que funcionam em tandem com a sonoridade já estabelecida nos registos anteriores pela banda, servindo como combustível sonoro para os cânticos diabólicos contundentes e gélidos levados a cabo nas letras incluídas no alinhamento.

Certamente um disco que se desloca um pouco da costela mais agressiva da banda – mas sem ser um afastamento muito drástico, felizmente – em prol de uma abordagem mais abrangente, Zeal & Ardor revela-se como mais uma etapa de evolução natural da sonoridade de uma banda que tem progredido de uma experiência invulgar entre folclore e peso para um fenómeno da música pesada a observar de perto.

Ruben Leite

Alphabet Holds Hostage – Again and So Soon [Edição de autor]

No passado dia 7 de janeiro, o britânico Alphabet Holds Hostage lançou o seu lustroso segundo álbum, Again So Soon. Trata-se de uma obra tão dreamy e delicada quanto a sua capa aparenta, misturando um estilo folk delicado à la Sufjan Stevens com o shoegaze mais ascendente dos Slowdive. Se o ouvinte se deixar levar, irá definitivamente entrar numa viagem profundamente imersiva e etérea, repleta de um constante sentimento de uma nostalgia um quanto agridoce, estando a sua doçura mergulhada num doloroso enevoamento e distanciamento temporal. Esta descrição e sua produção crua e quase lo-fi são talvez os principais argumentos para explicar o súbito aumento em popularidade do LP no RateYourMusic, onde artistas como Parannoul e Mid-Air Thief, ambos esteticamente comparáveis a Alphabet Holds Hostage pelo seu psicadelismo delicadamente açucarado, brilharam ao longo destes últimos anos.

Para quem aprecia o folktronica de múm e o abstracionismo atmosférico de Sweet Trip, este álbum é algo que quiçá valha a pena. Como ponto de partida para quem não quer mergulhar de cabeça, “the grand disconnect” será talvez a faixa introdutiva ideal. Vejo-a como uma resumidora exemplar para toda a obra, por conseguir abranger a sua doçura folk, mas também pelo seu ascendo a um quasi-shoegaze para, no seu pique de ascendência criado por um crescendo, beliscar o ouvinte e trazê-lo de volta à terra e à estética folktrónica.

João Pedro Antunes

Beach House – Once Twice Melody [Sub Pop]

Já com quase 20 anos de carreira, os Beach House não dão sinais de cansaço e têm em Once Twice Melody o oitavo e mais longo álbum da sua discografia. Dividida por 18 faixas e 4 capítulos, esta hora e meia de música junta o tom calmo e lento tipicamente associado à banda à veia mais psicadélica já exibida no disco anterior, 7. A isto junta-se uma adequada diversidade de arranjos, escalas musicais e instrumentos que impede que se instale a monotonia apesar da longa duração e das músicas nunca fugirem às formulas dominadas pelo duo americano.

Os capítulos não estão divididos por estilos musicais ou diferenças claras de sonoridade e uma audição contínua do disco nem dá que pensar nessa organização das faixas. Ainda assim, se tiver que escolher um favorito, será entre o terceiro e o quarto, onde se encontram músicas como “Masquerade”, que segue, dentro dos possíveis, uma vertente synth pop mais intensa e rítmica, “The Bells”, uma melancólica canção de embalar elevada por uma belíssima slide guitar, e “Modern Love Stories”, que mantém um tom sombrio e algo estranho até chegar a uma conclusão esperançosa que dá por terminado o álbum.

Sem reinventar o seu universo musical, os Beach House voltam a brindar-nos com uma coleção de canções etéreas e aconchegantes com a qual progridem mais um pouco na lenta, mas constante metamorfose do seu mágico dream pop.

Rui Santos

Black Country, New Road – Ants From Up There [Ninja Tune]

Nos primeiros metros de 2021, quando o buzz em torno do primeiro álbum dos ingleses Black Country, New Road era de visível entusiasmo (For the first time foi imediatamente considerado como um dos mais credíveis documentos da nova vaga pós-punk que assola o atual tecido da música independente britânica), o septeto de Londres afirmava em declarações ao britânico The Guardian que não pretendia ser mais do que os próximos Arcade Fire, uma confissão improvável quando proferida por um grupo que, melhor que ninguém, soube criar a sua própria identidade (ainda que “Science Fair”, um dos temas retirados de For the first time, os anunciasse como “o segundo melhor tributo de Slint do mundo”).

Ants From Up There, a segunda e definitiva obra dos Black Country, New Road (o álbum aterrou dias depois do seu principal letrista, Isaac Wood, anunciar a saída do grupo), é a confirmação deste testemunho: preserva-se o minimalismo clássico de Phillip Glass e Arthur Russel, os radicalismos sem forma de Glenn Branca e restantes estetas do underground nova-iorquino de 80 e as tradições seculares do klezmer e da música tradicional judaica, mas a nave (Concorde?) dos ingleses aponta desta vez para um outro norte, para o Canadá e toda a cena que pauta a cidade de Montreal, a mesma que nos deu projetos tão distintos como Godspeed You! Black Emperor, A Silver Mt. Zion ou, lá está, Arcade Fire.

Se no primeiro álbum nos trocaram as voltas, acrescentando novas secções, modificando letras dos temas que foram partilhando ao longo de 18 meses de experimentação, em Ants From Up There encontrámos o mais sólido manifesto do grupo: uma obra intemporal, com tanto de hínico como de fúnebre, capaz de unir as pontes que separam a candura pop de Billie Eillish das diatribes folk de Neutral Milk Hotel e The Microphones.

Filipe Costa

caroline – caroline [Rough Trade]

Alguém que olhe para o cartão de visita dos caroline — disco de estreia editado pela Rough Trade, octeto de músicos londrinos de gostos eruditos e bizarros, e cujas “tags” vão do pós-rock, ao emo e à folk dos Apalaches — não poderia ser julgado por pensar: “boa, mais uns do rock britânico pós-Brexit, não ouvi e já não posso com eles”.

Mas há muitos motivos para gostar dos caroline e deste seu disco homónimo de estreia. Para começar, pouco terão em comum com uns Black Country, New Road, por exemplo, sem ser essa extensa dimensão do grupo e o facto de este primeiro álbum ser quase um portfólio do trabalho fundador da banda ao longo da sua génese, algo que também acontecia com For The First Time. E muito menos terão em contacto com os outros rebentos da nova vaga rock britânica, muito mais dada ao pós-punk como propulsor e a uma “tagarelice” em sprechgesang, ao passo que os caroline mostram ser gente de poucas palavras e ritmos bastante mais desconstruídos e imprevisíveis.

“Dark Blue” inicia o disco como a sua faixa mais convencional, mas não menos brilhante e eficaz por esse motivo: aos acordes nocturnos que a iniciam vão-se somando elementos, como a percussão de Hugh Aynsley, a voz de Casper Hughes e o violino quase omnipresente de Magdalena McLean, de onde é possível que nos transportemos para alguns dos melhores momentos de Warren Ellis nos Bad Seeds e especialmente nos Dirty Three. Guiada pelas cordas de McLean, segue-se “Good Morning (Red)”, uma balada desarmante de esperança pueril em Jeremy Corbyn que à luz de 2022 só pode ser escutada de forma diferente: os gritos no background (“Can I be happy in this world?”) soam mais desesperados do que inquisitivos.

A recta final do disco reserva-nos dois dos seus momentos de maior proeza instrumental: “Skydiving Onto The Library Roof” é uma encantadora exploração de um acorde de violoncelo, tão terna quanto labiríntica, atmosférica mas catártica; “Natural Death” fecha o disco com um crescendo explosivo, com oito músicos pintando juntos um quadro abstracto, dissonante e espantoso. Não há muitos discos que em tão poucas palavras contenham tantas emoções.

Luís Sobrado

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