Cinco Discos, Cinco Críticas #74

| Abril 2, 2022 11:13 am

Enquanto que os novos lançamentos de RosalíaCharli XCX prometem passar em inúmeras pistas de dança durante os próximos meses, os álbuns de Éme e Moxila, Jenny HvalDestroyer cruzam sonoridades mais calmas e quentes, que tanto conseguem ser divertidas como atmosféricas. Discos bastante distintos uns dos outros, todos eles em análise no novo Cinco Discos, Cinco Críticas.

Éme e Moxila – Éme e Moxila [Cafetra]

A primavera de Éme e Moxila chegou em boa hora porque o que a malta quer é passear, andar, andar a passear. A cumplicidade na alegria e na tristeza deste duo que não sabe ser superficial, a sobriedade de Éme (João Marcelo) contrasta com a fantasia das letras e artes visuais de Moxila (Mariana Pita), originando uma ode ao amor relaxado e sobre uma vida partilhada ainda com o membro mais novo da família, o cão Fosco. As responsabilidades da vida adulta, o manifesto anti-trabalho, as angústias de uma casa devastada por um assalto, o peculiar episódio de um pastor a gritar obscenidades ao seu gado e referências a um jovem futebolista acabado de assinar na academia de futebol do Seixal que apenas regressava a casa no Natal.

Dá para sentir os diferentes estados de espírito de cada um, as vozes doces entrelaçam-se com as guitarras saltitando entre cantigas que transmitem uma genuidade única, intensa e honesta quase ao estilo de uma poesia ensaiada por Herberto Helder. Todos estes universos repletos de dicas geniais, narrativas e personagens compostas por jogos de palavras situados entre a ficção e o autobiográfico dão um total sentido a este álbum homónimo que resulta num disco que respira verdade.

A família Cafetra uma vez mais a dar um ar da sua graça nestes tenebrosos tempos, tendo a preciosa ajuda na gravação do Primeira Dama e de todos os outros membros da editora que deram o seu contributo para este brilhante trabalho.

Eduardo Coelho

Rosalía – Motomami [Columbia]

Motomami é o terceiro álbum de estúdio de Rosalía. Lançado quatro anos após El Mal Querer, que chegou a atingir atenção mainstream com as suas misturas art pop com flamenco e uma ou outra veia experimental, Motomami continua com a vertente mais aventureira da artista catalã, mas desta vez com sonoridade mais neoperreo.

Este LP é mais agressivo e amigo de discotecas do que o seu antecessor. Aqui, Rosalía dá tempo para o caos mas também momentos mais delicados, mas sempre com a sua aura urbanamente e mecanicamente dançante. Claro, muitos podem ver isto como uma fraqueza, vendo o álbum como uma desarrumação espalhada por todo o quarto, com momentos para destacar. No entanto, eu vejo isto como um forte. Há um certo ecletismo que, a meu ver, funciona bem. Admito que as minhas faixas favoritas são as mais viradas para o reggaeton agressivo, como a abertura “Saoko” (que introduz o álbum de uma forma mais crua e direta ao ponto) ou “Bizochito” (neoperreo puro, com a aura reggaetón mais ritmada e clubby). No entanto, “Hentai” é uma lufada de ar fresco para quem procura baladas, “Bulerías” é talvez o mais perto que temos do flamenco pop/r&b dos dois álbuns anteriores, “Como un G” é talvez uma mistura das duas descrições anteriores e “La Fama” tem, bem, The Weeknd a cantar em espanhol (interessante, no mínimo).

No fundo, é um álbum que pode criar opiniões divergentes. Não pela qualidade das músicas em si mas pela química entre as faixas. Há quem vá achar tudo muito desorganizado, há quem vá apreciar essas constantes mudanças de mood e considerar que não mexem com a vibe do álbum como um todo.

João Pedro Antunes

Jenny Hval – Classic Objects [4AD]

Jenny Hval é uma polímata: cantora, compositora, produtora, realizadora, poeta e romancista. Na sua música, a solo ou em grupo (Lost Girls), explorou temas como o amor, a menstruação e a condição da mulher no século XXI, sempre com um olhar provocador, distante mas incisivo. No seu mais recente álbum, Classic Objects, a artista norueguesa apresenta um novo ângulo: composto por oito faixas de uma pop discreta e refinada, o disco, o sexto da artista em nome próprio, é uma viagem auto-reflexiva pelas experiências de Hval enquanto performer.

As contradições de ser uma mulher feminista, independente e ao mesmo tempo casada (“It’s just for contractual reasons”, canta em “Year of Love”), as memórias de uma pintora que anexa o seu próprio cabelo nas suas pinturas ou o momento em que um homem propôs uma mulher em casamento num dos seus concertos são algumas das recordações que surgem ao longo do disco, alternando entre a minúcia do detalhe e o infinito particular (“Jupiter” resgata uma visita à instalação Prada Marfa, “uma esfinge do mundo da arte” situada no deserto do Texas, debruçando-se posteriormente num diálogo existencialista com o cosmos).

É uma experiência imersiva, de qualidades cinemáticas, que equilibra o desejo de experimentação da norueguesa com uma distintiva sensibilidade pop, cada vez mais acessível e luminosa.

Filipe Costa

Destroyer – LABYRINTHITIS [Merge]

Mais de duas décadas depois do seu primeiro registo como Destroyer, Dan Bejar continua a revelar novas faces do seu songwriting provocador e indecifrável: depois de Streethawk em 2001, Rubies em 2006 e Kaputt em 2011, Labyrinthitis é o novo grande triunfo do cânon tão impenetrável quanto contagiante do músico canadiano. Poucos são os versos que não continuam completamente herméticos, sem nenhum aparente significado que não o da própria palavra — “A last minute cancellation at The Last Supper”, “I drink the bread, I eat the wine”, “Fancy language dies and everyone is happy to see it go” ou a própria alusão a um pintor renascentista no título do disco tornam cada canção um quadro abstracto que nos é familiar ao longo da carreira de Destroyer.

Este manual sem soluções que são as canções de Bejar acaba por contrastar com a urgência da sua produção. Ainda que haja o seguimento de uma linha influenciada pela sophisti-pop dos 80s que também marcava Kaputt e Have We Met, Labyrinthitis apresenta alguns novos elementos surpreendentes e desconhecidos até aqui: a explosão do baixo da faixa-título, o quase-disco-sound irresistível de “June” ou a linha de sintetizadores de “The States” tornam este novo álbum um dos mais imediatos e contagiantes discos de Destroyer. Não há muitos que mantenham esta vitalidade e consistência com o passar dos anos e que, mais do que isso, pareçam estar a divertir-se tanto com esta coisa de lançar discos.

Luís Sobrado

Charli XCX – Crash [Asylum / Atlantic]

Dois anos após o lançamento de how i’m feeling now, Charli XCX está de volta com Crash, o sétimo registo discográfico da artista britânica e último sob a conturbada chancela da Atlantic Records. Com a mão do seu produtor executivo A.G. Cook, Crash conta com uma lista interminável de colaborações neste departamento, tais como Oneohtrix Point Never, George Daniel (The 1975), Deaton Chris Anthony, etc. Charli decide aqui desviar-se do género que a tem caracterizado nos últimos anos para abraçar uma sonoridade de mais fácil digestão, especialmente para quem não aprecia a cacofonia por vezes presente no hyperpop.

Ao promover este disco, Charli encarnou uma persona demoníaca para passar a ideia de ter feito um pacto com o diabo. Uma provável analogia para a pressão que a Atlantic Records fez sobre a imagem e sonoridade da artista ao longo dos anos, sendo o ‘pacto’ o contrato que fez com eles. A capa e a estética do álbum são alusivas ao filme Crash de David Cronenberg (1996), um thriller psicológico que faz o retrato de pessoas, especialmente mulheres, excitadas por acidentes de carro. Estas referências estão presentes na faixa-título, a primeira música de Crash e importante para o seu universo, que contém temas recorrentes tais como “sexo, poder e autodestruição”, assim como realça a inspiração em Janet Jackson. “New Shapes” e “Beg For You” são as duas colaborações artísticas que podemos encontrar neste disco, a primeira com a participação de Christine and the Queens e Caroline Polachek, e a segunda com Rina Sawayama. Enquanto “New Shapes” invoca o espírito synth-pop dos anos 80 adicionando uma pitada de funk, “Beg For You” tem um sabor a eurodance devido ao sample de “Cry For You” por September. O ponto alto de Crash está em “Constant Repeat” e “Baby”, as duas músicas com a sonoridade mais viciante neste álbum, daquelas que podemos pôr em repetição que não nos fartamos de ouvir.

É de louvar a maneira como Charli XCX se consegue reinventar constantemente ao longo dos anos. Sendo Crash uma reinvenção que não só a mantem na vanguarda do pop, como leva a sua sonoridade a um público mais abrangente.

Tiago Farinha

FacebookTwitter