Cinco Discos, Cinco Críticas #75

| Junho 2, 2022 5:18 pm

Após um intervalo alongado, estamos de volta ao Cinco Discos, Cinco Críticas com novas recomendações musicais. Para começar, introduzimos a mistura de hip hop e rock do duo britânico Bob Vylan. Segue-se um trio de textos que abordam a música electrónica, falando sobre os novos álbuns do produtor português Ivo Pacheco, mais conhecido como IVVVO, de Max Cooper e de Spellcaster. A última crítica aborda o mais recente trabalho de lylajean,  cantautora americana cuja música tem uma sonoridade lo-fi que chega a passar por ambientes mais inesperados e sombrios.

Bob Vylan – Bob Vylan Presents The Price Of Life [Ghost Theatre]

O duo de grime-rap-rock político britânico Bob Vylan, formado pelo rapper Bobby Vylan e pelo baterista Bobbie Vylan, lança o seu terceiro álbum de originais intitulado Bob Vylan Presents The Price Of Life, que conta com quinze faixas de wordplay fervoroso e consciente, assim como instrumentais abrasivos e ecléticos. 

No geral, as letras das músicas de BVPTPOL demonstram uma aspereza colérica substancial em termos de tom, não havendo espaço para formalidades no que toca a abordar temas sérios e atuais como desigualdade social e racismo. As faixas “Wicked & Bad” e “Take That” demonstram o lado mais grimey dos Bob Vylan, enquanto que “Health is Wealth” se revela como uma breve incursão no reggae com uma mensagem urgente, como que a aconselhar cautela ao ouvinte no que toca à saúde – “Body is a temple, don’t let it be a tomb/The food you choose to consume can damage”

Todavia, as músicas acima descritas contrastam com a maior parte do alinhamento de BVPTPOL, que é mais virada para a costela punk do duo. A faixa “Pretty Songs” é sarcasmo ácido, começando e acabando com uma passagem de guitarra acústica e Bobby a dizer “I could do this all day long/sing a song, a pretty little song” para depois partir para a fúria sónica destilada, que antecede um interlúdio referente ao homicídio de George Floyd e à cobertura mediática do mesmo na forma de “CENSORED (Interlude)”; “Turn Off The Radio” demonstra o melhor de dois mundos com o seu misto de guitarras e 808’s que dá a sonoridade a um julgamento nocivo dos media; “GDP” serve para descrever em detalhe a situação de desigualdade social; “Drug War” denota ser uma crítica mordaz à indústria farmacêutica; e a faixa final “Whatchugonnado?” demonstra uma visão muito cínica do estado atual de Inglaterra, chegando até a projetar uma imagem muito negativa de personalidades como o primeiro-ministro Boris Johnson e a rainha Elizabeth II.

A nível geral, o delivery de Bobby Vylan é bastante eficaz a transmitir a mensagem incluída nas letras, graças a uma língua afiada, atitude irada e flow hábil. Apesar do lirismo poder ser demasiado direto ao assunto para o gosto daqueles que preferem algo mais subtil, isso acaba por jogar a favor da sonoridade dos Bob Vylan. BVPTPOL é um registo que pode cultivar potenciais fãs tanto do hip-hop como do punk, cimentando o duo como mais um digno porta-estandarte da recente vaga de artistas a trazer uma nova vida a um estilo tão infame como o rap-rock que tem surgido nos últimos anos.

Ruben Leite

IVVVO – Bleached Butterfly [AD 93]

Depois de ter declarado o seu amor pelos anos 90 em Prince of Grunge, o músico e produtor português Ivo Pacheco, que responde pelo nome IVVVO, voltou a vestir as roupagens desbotadas do rock mais alternativo com Bleached Butterfly, a estreia do portuense pela editora britânica AD 93.

O álbum, o quinto do artista radicado em Londres em longa-duração, sucede uma série de edições por algumas das mais fundamentais casas discográficas de hoje, da norte-americana Halcyon Veil, de Rabit, à emergente Lith Dolina, que editou a recente antologia Greatest Hits, Archive 2010-2015 em 2021, e foi antecipado pela respetiva faixa titular, um portento de novo grunge conduzido pela voz da artista multidisciplinar Abyss X.

É a partir desta toada tingida de negro, situada entre o nervo combativo de Siouxsie and the Banshees e uma qualquer fantasia rave perdida nos confins da hyperpop, que se ergue o corpo de Bleached Butterfly, um disco marcado pela mais moderna produção e onde cabem paletas gritantes de sintetizadores, lancinantes passagens de guitarra e um forte jogo de samples que carrega consigo uma manifesta sensação de ansiedade, desorientação e alienação — um “hino hipermoderno para a ontologia pós-humana”, como se pode verificar nas curtas mas elucidativas notas que acompanham o lançamento.

É uma obra de natureza ambígua, tal como o seu autor, que prefere adotar uma postura furtiva, longe dos escaparates da crítica e dos hypes sem fundamento, e que vê no erro e na contradição um veículo positivo para o progresso.

Filipe Costa

Max Cooper – Unspoken Words [Mesh]

O já experiente músico e produtor britânico Max Cooper tem em Unspoken Words o seu 6º álbum de estúdio, a nova obra de uma discografia que também abarca dezenas de EP’s lançados entre 2007 e 2021.

Entre faixas mais dançáveis que navegam pelo IDM ou ambient techno e outras focadas em atmosfera e texturas, Max Cooper vai abordando com domínio várias técnicas de síntese e produção, incorporando sons complexos e singulares nas suas produções. Em “A Model of Reality” usa a voz como um instrumento, integrando-a na composição como se fosse uma camada adicional de sintetizador, cortando, colando e sobrepondo gravações lebrando alguns projetos de Cristobal Tapia de Veer. É uma música suave, com base num sintetizador pulsante e uma percussão branda. Mais intensa, “Exotic Contents” exibe a habilidade do artista na criação de timbres distorcidos e agitados e no controlo de dinâmicas, com variações explosivas de volume ou intensidade a tornar a música continuamente surpreendente e energética.

Enquanto as faixas mais complexas soam sempre frescas, algumas poderiam beneficiar de uma menor duração. “Spectrum” e “Pulse at the Centre of Being”, que curiosamente estão encostadas no alinhamento, começam ambas de forma minimalista e repetitiva e as suas ideias centrais nunca são expandidas o suficiente para que as composições pareçam mais do que interlúdios extra longos. Esta é a sequência menos boa de um álbum que tem muito a oferecer a quem tem interesse em música eletrónica complexa e futurista, exibindo um excelente trabalho de design sonoro e oferecendo uma experiência de audição imersiva e envolvente.

Rui Santos

Spellcaster – memo [Anyines]

memo é o segundo álbum do músico dinamarquês Holger Hatvig sob o pseudónimo Spellcaster, lançado sob a alçada da editora Anyines. Trata-se de uma sequela conceptual do seu primeiro álbum Inventory, seguindo a história de Anybardinthegrass e a sua jornada em inventar memórias novas após ter perdido todas as que detinha anteriormente.

Neste álbum quasi-ópera de 9 faixas, Spellcaster – também conhecido como membro dos Boli Group e Synd og Skam – faz-nos viajar sob um mundo críptico com sonoridades difíceis de digerir, criando um art pop com pitadas de pós-industrialismo dreamy e consequentemente virando o conceito de composição do avesso. É imprevisível, como um nevoeiro no meio de um campo de guerra. No entanto, guarda em si uma magia quase indescritível, capaz de nos fazer saltar entre mundos e multiversos.

Tomemos como exemplo a faixa “Quantum”: começa com uma sonoridade ambientalmente darkish, fazendo lembrar alguns músicos do eletrónico-progressivo e criando, aos poucos e a seu tempo, a sua atmosfera para algo cada vez mais corroído. É como se alguém tivesse feito download de uma peça de Debussy para descobrir um ficheiro corrompido (algo do estilo da exibição fotográfica To Adrian Rodriguez, With Love, de Melanie Willhide, mas em formato musical). Há também momentos que tocam no melódico, como as três últimas faixas, que contam com a presença de Lydia O. Diakité nos vocais. Tem uma atmosfera mais coesa, como se o protagonista estivesse a restabelecer o seu balanço com as suas novas memórias, apesar de ainda haver réstias de corrosão (afinal, são memórias falsas. Inventadas).

Concluíndo: memo é um trabalho bastante ambicioso. É difícil de digerir mas ganha um pouco mais de magia a cada nova ouvida. Definitivamente um projeto que vale a pena ouvir, representando bastante bem aquilo que é a música underground da Dinamarca.

João Pedro Antunes

Lylajean – Sleep Through the Quiet Lust [edição de autor]

Sleep Through the Quiet Lust é o quarto álbum de lylajean, artista originária do estado de Chicago. Trata-se de um trabalho que, ao longo de pouco mais de uma hora, nos traz uma abordagem ao art pop um quanto singular, entrando por vezes num território de singer-songwriter mais lo-fi.

À semelhança de Requirements for Sleep – outro LP do seu reportório, lançado em 2019 – este novo álbum tem como conceito central melodias e acontecimentos que foram parar às mãos da artista pela via dos seus sonhos. Esta concepção acaba por ser um dos ingredientes principais para a criação de uma sonoridade um quanto críptica, que por vezes consegue ter uma instrumentalização açucaradamente fantasiosa (como em “But I Know Who I Am”), tendo também as suas facetas mais folk-ish (“Sleep Through the Quiet Lust” ou “Bodies Fall Apart”). No fundo, é um trabalho eclético, mas que sabe quando mudar de ambiente, sempre de uma forma suave. A faixa homónima é quente e amigável como uma fogueira de acampamento secreta e noturna e “Only a Hunter” soa como estar preso numa discoteca vazia que, por alguma razão, continua a dar música como se nada fosse.

No entanto, não podemos falar deste álbum sem ter a décima primeira faixa, “Theme to Being Stuck in a Dream”, em conta. Esta canção é, por si, a sua própria viagem. Dura dezoito minutos, mas é facílimo ficar completamente imerso no seu ambiente ocultamente surreal e na sua aura crípticamente liminal, deixando um sentimento de suspense constantemente a pairar no ar, como que estar no limbo entre a paralisia do sono e um sonho lúcido. Se o creepypasta dos backrooms tivesse banda sonora, esta faixa teria de entrar.

Por fim, temos a faixa final: “Gazing”. Soa como um final feliz após uma tempestade, como quem olha para um reconfortante nascer do sol após uma noite complicada.

No fundo, Sleep Through the Quiet Lust é uma viagem eclética, onde uma hora passa em menos de nada (o que faz sentido. Afinal, os sonhos, por regra, não nos parecem durar oito horas). Para quem gosta de álbuns cheios de surpresas, onde é difícil prever o próximo passo, este álbum é perfeito. Tem a sua própria narrativa, sendo abstrata o suficiente para deixar cada ouvinte com uma interpretação diferente.

João Pedro Antunes

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