Cinco Discos, Cinco Críticas #77

| Outubro 4, 2022 4:19 pm

Este mês regressamos ao Cinco Discos, Cinco Críticas com críticas dos novos lançamentos de Black Midi, Chat Pile, 777negative111, Panda Bear & Sonic Boom e ATŌMI. Entre discos mais e menos conhecidos, rock distorcido, eletrónica sombria, pop psicadélico e música ambiente, damos o nosso parecer sobre música para todos os gostos.

 

Black Midi – Hellfire [Rough Trade]

Pouco mais de um ano após o lançamento de Cavalcade, os black midi estão de volta aos originais com Hellfire, o terceiro registo discográfico da banda londrina. Escrito durante o isolamento profilático devido à pandemia, o trio composto por Geordie Greep, Cameron Picton e Morgan Simpson estreou a maioria das novas músicas durante a tour do predecessor Cavalcade, que passou pela última edição do NOS Primavera Sound num estrondoso concerto. O núcleo duro de Hellfire foi gravado num espaço de 13 dias, com a produtora Marta Salogni e os membros adicionais Kaidi Akinnibi (saxofone) e Seth Evans (teclas) a contribuírem para o processo, sendo posteriormente editado via Rough Trade Records.

Este álbum usa os elementos harmónicos e melódicos de Cavalcade enquanto vai buscar a brutalidade e intensidade de Schlagenheim, expandindo assim os horizontes para um espectro mais avant-garde dentro daquilo que é o rock progressivo dos black midi. Ao longo de Hellfire, várias camadas instrumentais quase esquizofrénicas sobrepõem-se com a voz inigualável de George Greep, gerando uma autêntica carnificina musical onde quanto mais ouvimos, mais elementos conseguimos desconstruir e analisar. “Still” e “The Defence” são os temas que mais conseguem fugir a este registo, numa sonoridade tranquilizante que ajuda a respirar fundo, descansar e apreciar melhor o caos musical que nos rodeia. “Welcome To Hell” surge como a melhor malha no meio desse caos, contando a história de um soldado com trauma pós-guerra a lutar numa exótica cidade costeira repleta de inimigos. Cada música conta a história de personagens moralmente suspeitos na primeira pessoa, com monólogos dramáticos a apelar para o nosso sentido degradado do que é certo ou errado.

Hellfire revela-se um álbum extremamente bem construído, quase que com uma exatidão laboratorial. Nota-se que foi tudo pensado ao mínimo pormenor, guitarra estridente com saxofone selvagem, bateria explosiva com voz à la punk. Os black midi montaram tudo perfeitamente, apresentando uma grande obra aos seus fãs.

Tiago Farinha

Chat Pile – God’s Country [The Flenser]

Após imenso burburinho causado na cena underground pelos seus lançamentos de vários EP’s ao longo destes últimos três anos, a banda americana Chat Pile lançou o seu muito antecipado primeiro álbum God’s Country. Ao longo do álbum, denota-se uma (ainda que discreta) refinação da – e contínua experimentação com a – sonoridade formulada com um cruzamento igualmente furioso e melancólico entre sludge metal, noise rock e até uns traços de post-punk que se fazem mostrar aqui e ali (graças em grande parte a passagens mais etéreas na sonoridade da banda e aos vocais mais deadpan do vocalista Raygun Busch como, por ex., na faixa “Pamela”), destilando um negrume cínico sonoro sem precedentes que serve como um fio condutor para um criticismo muito aguçado contra a máquina capitalista que move países como os EUA, sem consideração pelos indivíduos que a alimentam. Apesar de um lirismo confessamente ordinário e de dar uma pequena sensação de saber a pouco, o álbum é definitivamente bem-sucedido em abalar o ouvinte com uma energia predominantemente taciturna e raivosa, demonstrada tanto nos singles “Slaughterhouse” e “Wicked Puppet Dance” como na faixa que encerra o álbum, “grimace_smoking_weed.jpeg”, correspondendo plenamente do início ao fim ao hype que a banda tem formado ao longo do seu percurso e pondo-nos ansiosos por ver como irá decorrer o seu percurso daqui para a frente.

Ruben Leite

777negative111 – Like clockwork in a glass frame, transparently consistent patterns at work [Alienação]

Após cerca de dois anos de interregno, João Faria revive o seu moniker 777negative111 com o lançamento do disco Like clockwork in a glass frame, transparently consistent patterns at work sob a alçada da Alienação Records, editora liderada pelo DJ João Melgueira.

Ora, tal como o nome indica, este EP contém uma variedade de padrões transparentes que aludem a diversos subgéneros do vasto mundo da música eletrónica. Temos uma certa voltagem techno-industrial que se funde com um white noise que, apesar de extremamente pesado e maciço, tem uma certa contemplatividade abstrata. Isto cria um sentimento um quanto familiar, como que ancenúbios de memórias distantes fundidas num só pensamento fluido. No fundo, chamar a este trabalho de pós-dance music não seria algo demasiado debochado. A essência da música de dancefloor ainda está lá, mas vê-se-lhe adicionada umas tonalidades de ambient que lhe dão uma certa identidade. “Fortress of War” é um excelente exemplo desta descrição. As batidas tipicamente techno industrial estão lá, mas estão cercadas por uma aura mais meditativa que permite prender o caos explosivo que tanto identifica o género numa frágil caixa de vidro pequenina, delicadamente guardada numa prateleira para exposição. Como cereja no topo do bolo, o álbum termina com um remix de Menino da Mãe à faixa “Division of creative control”. Aqui, temos uma abordagem explosiva à canção original, sendo possível ver semeadas algumas camadas de acid que fazem pressão suficiente para a tal caixinha de vidro pequenina se partir e deixar vazar caos por toda a divisão. Sobe-se a velocidade e os volts sem tirar o sentimento contemplativo que tanto identifica a obra, criando um final em grande com os seus oito minutos à Benfica. No fundo, este 23º lançamento da Alienação Records tem momentos interessantes, capazes de agradar tanto aos amantes da pista de dança como aos apreciadores das músicas com mais atenção às texturas de alta intensidade.

João Pedro Antunes


Panda Bear & Sonic Boom – Reset [Domino]

A amizade entre Noah Lennox (Animal Collective) e Peter Kember (ex-Spacemen 3), mais conhecidos como Panda Bear e Sonic Boom, respetivamente, surgiu quando Pete mandou uma mensagem via MySpace a Noah para agradecer a inclusão de Spacemen 3 nas notas de lançamento em Person Pitch. Desde aí, Pete tem-se sentado na cadeira de produtor para Panda Bear em várias ocasiões, ajudando com Tomboy em 2011 e Panda Bear Meats the Grim Reaper em 2015, ao passo que Noah emprestou a voz para o primeiro disco de Sonic Boom em 30 anos, All Things Being Equal. Embora os dois tenham trabalhado juntos ao longo dos anos, nunca tinham colaborado a este nível, um espaço conjunto para se expressarem em algo fresco e novo.

Reset surge então como a fusão de vários elementos entre estes dois músicos, indo buscar o pop experimental de Panda Bear e adicionando-o à fórmula psicadélica de Sonic Boom, com várias samples de rock-and-roll americano dos anos 50 e 60 para ajudar a moldar estas ideias. Na primeira faixa deste disco, “Gettin’ To The Point”, conseguimos ouvir a guitarra acústica em loop (que aparece em faixas como “Go On” e “Danger”) e os vocais harmónicos inspirados pelos Animal Collective, trazendo um verdadeiro sentimento nostálgico pela banda de Noah Lennox. As influências de Sonic Boom também estão presentes, o artista britânico faz-se ouvir com as suas habilidades especialmente em “Whirlpool”, uma malha repleta do delay que caracterizou os Spacemen 3 nos anos 80. Reset transmite-nos uma mensagem de positivismo e boas vibrações, tanto o instrumental em si como as próprias letras. Em “Everyday”, Noah e Pete cantam “Everyday, a little bit longer; Everyway, a little bit stronger; Every time, I’m gonna long for; Everything, we gotta be strong for”, o que inspira e revitaliza a nossa mente neste mundo por vezes caótico.

Este álbum é uma lufada de ar fresco tanto para os fãs de Panda Bear, que teve aqui um dos melhores lançamentos desde Person Pitch, como para os maiores fãs de Sonic Boom. Músicas recheadas de reverb e vocais em uníssono entram pelos ouvidos adentro e enchem a nossa alma de alegria e bem-estar. Agora só temos de esperar que esta parceria tenha mais frutos no futuro.

Tiago Farinha

ATŌMI – Little Floating Oracles [Lady Blunt]

ATŌMI é o rosto que Lorenzo Setti escolheu para tentar compreender o fascínio pelo cosmos e pela complexa simplicidade da natureza. O produtor e compositor italiano sediado em Berlim estreou-se em 2020 com ARMØNIA, o primeiro de três EPs conceptuais, assinado pela japonesa Jikken Records, e ressurge nos próximos dias, a 7 de outubro, com o seu primeiro longa-duração, Little Floating Oracles.

O registo composto por 7 faixas que invocam o conceito de feto, reconhecido como “uma encarnação física da essência cósmica que incorpora o conhecimento infinito de um oráculo”, é altamente sintético e imersivo, uma fonte de mutabilidade e oscilações orgânicas. Nos momentos marcantes de Little Floating Oracles encontramos o bucolismo de “Laniakea”, faixa com a maior duração do álbum (15 minutos), residente no domínio do celestial; o cruzamento de crescendos de vibrações e tonalidades com as melodias luminosas e refinadas de “Oneiros”, rivalizando com algumas das melhores faixas já produzidas no campo do ambient techno; e algumas lembranças de Phantom Brickworks, obra seminal de Bibio, em “Adela”, faixa melancólica produzida essencialmente num sintetizador analógico Lyra-8 da Soma Synths, promovendo a sensação de estarmos perante um conjunto de sopros e cordas. O álbum conta também com as colaborações da cantora de ópera Giulia Bernardi e dos arranjos de violino da compositora italiana Laura Masotto na cinemática “Oracles”.

Masterizado pelo respeitado produtor Lawrence English, Little Floating Oracles recebe o carimbo da Lady Blunt Records. A capa foi delineada por Akasha (Riccardo Franco-Loiri), num processo orientado pela realidade virtual.

Rui Gameiro

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