Cinco Discos, Cinco Críticas #79

| Abril 30, 2023 10:04 pm

Estamos de volta ao Cinco Discos, Cinco Críticas com palavras sobre o noise rock dos Model/Actriz, o soul de Yazmin Lacey, o jazz de Angel Bat Dawid, o garage rock dos Sunflowers e a música ambiente de Tim Hecker. São cinco discos que marcaram os últimos meses de lançamentos, um deles nacional e outro gravado maioritariamente ao vivo.

Model/Actriz – Dogsbody [True Panther]

Há um velho mundo novo em Dogsbody, o irrequieto álbum de estreia dos Model/Actriz. Publicado nos metros finais de fevereiro sob a alçada da editora True Panther (King Krule, Slowthai, Girls), o disco – gravado maioritariamente durante a pandemia – é um tratado libidinoso de reinvenção rock onde o espírito transgressivo de James Chance e a pop hiper-sexualizada dos Xiu Xiu choca de frente com as narrativas tortuosas de Cole Haden, vocalista e timoneiro-espiritual do grupo norte-americano.

A herança é clara: a escola noise-rock dos Jesus Lizard, o punk viperino dos Liars, bem como o movimento pigfuck, cunhado pelo jornalista Robert Christgau para retratar os primórdios virulentos de grupos como os Sonic Youth ou Butthole Surfers na década de 80, saltam de imediato à memória, mas os ímpetos tempestuosos do quarteto natural de Boston fazem de Dogsbody muito mais do que um mero exercício de género.

Ritmos certeiros e uma certa candura férrea (“You don’t have to try to be gentle / Do it the way you feel right now”, escuta-se no single “Donkey Show”) colidem no ideal libertário que corporiza Haden, um fã confesso do musical Cats que discorre, de forma provocadora, sobre o divino e o mundano, o cândido e o obsceno em tom particularmente operático.

As inflexões burlescas das suas canções fazem deste um dos lançamentos mais inquietantes do ano, mas por trás dos subtextos vaudevillianos esconde-se um retrato carnal de libertação e auto-descoberta — um corpo transgressivo e altamente exploratório do corpo, do sexo e dos valores que condicionam a beleza humana.

Filipe Costa

Yazmin Lacey – Voice Notes [edição de autor]

O nome de Yazmin Lacey dava nas vistas em 2020 com o seu sólido EP Morning Matters, que pelas palavras da própria foi dedicado “a todas as pessoas que lutam todos os dias para acordar de manhã e encararem a vida e o trabalho de maneira a tentarem ter uma vida melhor”. O aguardado álbum de estreia Voice Notes da artista de Nottingham é o confirmar de um talento estupendo que se revela como uma das vozes mais poderosas da recente cena jazz e neo-soul londrina. De realçar também o contributo do experiente produtor Dave Okumu que realizou novamente um trabalho excecional depois de colaborar com uma outra promessa britânica, a premiada Arlo Parks que venceu o Mercury Prize em 2021.

Yazmin ao longo do disco abre o seu coração com toda a sinceridade, vulnerabilidade e entre soslaios risos demonstra o seu peculiar humor, bem presente no single “Bad Company”. Em “Legacy” é visível sentir um imaculado respeito que tem pelas suas memórias que suavemente terminam numa batida rítmica leve de samba. O espírito livre de uma jovem cheia de sonhos e medos à procura das coisas positivas da vida é espelhado durante “Sign and Signal”, uma das canções mais animadas do álbum juntamente com o dub provocatório de “Tomorrow’s Child”. As visões, perspetivas e vivências pessoais são um lugar-comum da artista que tende a refletir constantemente sobre as suas imperfeições, dúvidas, receios e desamores em busca do seu próprio auto-conhecimento.

Eduardo Coelho

Angel Bat Dawid – Requiem For Jazz [International Anthem]

The Cry Of Jazz, filme controverso do cineasta Edward Bland saído em 1959, anunciava a morte do Jazz, naquele que era provavelmente o pico de popularidade e auge criativo do género musical. Essa “morte” estaria muito para lá de uma exaustão meramente técnica e formal: a sua extinção era do espirito, não do corpo.

Impulsionada pelo filme de Bland, Angel Bat Dawid decidiu oferecer um merecido funeral: “Requiem For Jazz” é uma obra com tantas ironias, duplos-significados e mensagens crípticas como a sua inspiração original, mas é ao mesmo tempo assustadoramente directa e convicta na sua acusação a plenos pulmões dos vários séculos de repressão e ódio inflingido sobre os negros, muito para lá das fronteiras da América de Bat Dawid e Bland.

As contradições provocatórias de Requiem For Jazz não terminam no seu aspecto temático. Apesar de seguir a estrutura formal de doze partes da missa fúnebre Católica, do Introit à Lux Aeterna, a liturgia de Bat Dawid não segue nada de ortodoxo ou convencional: é uma obra dissonante e surpreendente, cheia de momentos de imprevisibilidade que nos levam ao limite do precipício de um novo sopro fulminante de trombone ou de uma voz subida desde as profundezas da Terra.

O lado inventivo e engenhoso do disco também é notório no seu método de criação: as doze partes do Requiem foram gravadas numa performance ao vivo em Londres na companhia de um ensemble de 15 músicos e um coro de 4 vozes, mas são divididas no disco por interlúdios criados em pós-produção, nos quais podemos ouvir auto-tune, drum machines ou trechos de diálogo de “The Cry Of Jazz”, muito mais alusivos aos bairros negros de Chicago do que a um higienizado templo Católico.

Não existem momentos como o do clarinete adocicado e flutuante de “London”, saído do fantástico “The Oracle”, lançado em 2019. Requiem For Jazz é complexo, expansivo e desconfortável, e pretende sê-lo: o tom acusatório e confrontacional da música de Bat Dawid encontra-se tão presente nos títulos dos seus temas como pode ser confirmado nas suas entrevistas e aparições públicas. Mas se a forma da mensagem pode ser por vezes complicada e impenetrável, já o poder libertador da sua música é inegável é irresistível.

Luís Sobrado

Sunflowers – A Strange Feeling of Existential Angst [Only Lovers, O Cão da Garagem, Stolen Body Records]

A Strange Feeling of Existential Angst é o regresso pós-pandémico dos portuenses Sunflowers, Carlos de Jesus (guitarra e voz), Carolina Brandão (bateria e voz) e Frederico Ferreira (baixo). O quarto longa-duração do trio, que já anda por aí desde 2014 (em formato duo), é constituído por 11 faixas que somam 42 minutos onde nenhuma delas é um skip.

A bateria e baixo nas opening tracks, “Sonic Escapism I” e “Sonic Escapism II”, recuperam um toque do surf rock sujo já explorado anteriormente pela banda (como no hit “Post Breakup Stoner”), juntando-lhe linhas melódicas oníricas em sintetizadores leves e divertidos. No caso da segunda faixa, surge ainda uma voz sussurrada, que consolida esta atmosfera de sonho onde nos coloca o início do disco.

Já o single “Within a Bubble” e a música “Programmatic Advertising” provam que o (novo) lado mais eletrónico da banda está cá para ficar — parece que o sonho afinal era mesmo um videojogo. Este imaginário é interrompido quando entra a distorção que já todos esperamos dos Sunflowers: uma guitarra a rasgar acordes e, mais tarde, a recuperar linhas que ouvimos inicialmente em sintetizadores, agora muito mais pesadas, tudo enquanto tentamos decidir se devemos dançar ou moshar.

Nas faixas “As Our Mother Rolls the Dice” ou “Body Craves Data”, já nos aproximamos um pouco mais de lançamentos anteriores dos Sunflowers. A atmosfera é enigmática, quase como se fosse fruto de um fever dream, mas sempre energética, com a adição de uma nova faceta mecânica ( ou até mesmo matemática, se nos guiarmos pelo nome das duas músicas).

No segundo single lançado e title track do álbum, a banda expõe sem qualquer vergonha o rock ruidoso que só o Norte nos sabe oferecer tão bem, conseguindo na mesma manter a vontade de dançar, até pelo meio das camadas caóticas de vozes e ecos impenetráveis.

A Strange Feeling of Existential Angst apresenta uma sonoridade rock refrescante, pela sua nova danceability e pela fusão tão bem-sucedida da distorção ao “digital”. A nova fase dos Sunflowers mostra que se mantêm tão interessantes e relevantes como sempre no panorama do rock nacional (e internacional), e que continuam com cartas na manga para nos surpreender.

Afonso Mateus

Tim Hecker – No Highs [kranky]

Nas notas que acompanham Ambient 1: Music for Airports, Brian Eno, talvez o mais importante compositor do século XX, escrevia que “a música ambiente deve ser capaz de acomodar vários níveis de atenção auditiva sem impor um em particular”. No Highs, o mais recente álbum de Tim Hecker (e o 11º na discografia do músico e compositor canadiano), desvia a atenção do ouvinte para o detalhe, destabilizando o seu campo de concentração através do uso frequente de sinais  e ruídos intermitentes, linhas de sequenciadores irregulares e mudanças de tom constantes, quebrando com o predomínio da melodia que dita a maior parte da música popular.

Fá-lo com uma subtileza tal que chega a ser desconcertante, distraindo-nos dos elementos primais que constituem a sua música. E eles estão todos lá — órgãos catedralícios, arranjos eletrónicos incomuns, mantras em forma de sopros devocionais. Com uma variante: Colin Stetson, reputado saxofonista e autor de inúmeras bandas-sonoras para filmes e televisão, amplia a cinzenta escala de tons dos seus temas com recurso a combativos padrões circulares, conferindo uma qualidade tátil ao disco.

Hecker sempre surprendeu pela consistência mais do que pela inovação. Harmony In Ultraviolet, Ravedeath, 1972 e Virgins são obras incontornáveis da composição moderna, verdadeiros tratados de exploração e subversão do som, do espaço e de tudo o que há entre eles, e que certamente colocarão o canadiano no reservado grupo de músicos e compositores que ficarão para a história, mas o fator surpresa desses mesmos lançamentos tem vindo a perder-se nos últimos anos. No Highs não é exceção.

É, contudo, um exemplo intransigente de um artista que continua a ver na insustentável beleza do drone muito mais do que um mero exercício de audição passiva. Apresentado como “um anti-relaxante irregular” para uma “era medicada”, é um manifesto contra o falso positivismo de uma indústria que sacrifica talento e inovação em prol de uma música ambiental anémica, com mais de ignorável do que de interessante.

Numa era em que a inteligência artificial ganha novos e assustadores contornos, Tim Hecker desempenha o papel de antagonista: à retaguarda, mas inconfundivelmente presente, é ele o condutor de uma nave sem destino definido. Acompanhá-la é imperativo.

Filipe Costa

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