Ao 10º disco, Oneohtrix Point Never imagina um mundo em que realidade e fantasia são apenas uma, reescrevendo a cronologia do norte-americano a partir das suas (falsas) memórias.
No passado, propôs novas maneiras de pensar o kitsch e os padrões que ditam o mau gosto ao transformar jingles, diálogos e outros exemplos de efémera em algo novo, envolvente e idiossincrático. Foi assim em 2011, quando um conjunto de aúdios encontrados em compilações de anúncios de televisão deu origem a Replica, um dos mais assombrosos (e assombrados) registos da última década. Chuck Person’s Eccojams Vol. 1, editado um ano antes, adotou uma estratégia semelhante ao colocar trechos desacelerados de êxitos de Toto, Chris de Burgh e outros ilustres da pop escorregadia de 80 em loop.
Hoje, aos 41 anos, Daniel Lopatin é uma das mais celebradas figuras da eletrónica moderna: trabalhou com Charlie XCX, FKA twigs e Caroline Polachek, acompanhou Nine Inch Nails e Soundgarden em digressão e foi fator decisivo na revolução eletrónica de ANHONI pós-The Johnsons. Em 2017, um encontro com os irmãos Safdie levou-o a compor a trilha do filme Good Time, premiada nesse ano com o galardão de Melhor Banda-Sonora em Cannes. Uncut Gems, mais uma triangulação com Josh e Ben Safdie, estabeleceu uma improvável relação com o astro pop Abel Tesfaye, isto é, The Weeknd, que recrutou os dotes do músico norte-americano para três das canções que compõem After Hours (e treze do sucessor Dawn FM). Pelo meio, desempenhou o papel de diretor musical do espetáculo que o autor de “Blinding Lights” apresentou no intervalo da Super Bowl.
Again, o seu mais recente álbum como Oneohtrix Point Never, é uma viagem autobiográfica pelas memórias de Lopatin, um referencial pós-moderno onde eras e estilos diferentes convergem num produto inteiramente novo. Obra reconciliadora, passa em retrospectiva o percurso que o músico construiu ao longo dos últimos 15 anos enquanto Oneohtrix Point Never, o mais popular dos seus vários pseudónimos, ao mesmo tempo que questiona as diferentes rotas e identidades que poderia ter tomado durante esse tempo.
É também a sua obra mais orgânica, com intrincadas secções de cordas e outros arranjos de qualidade orquestral a complementar a paranóia sonora que habita o fascinante universo de Lopatin. Jim O’Rourke, Lee Ranaldo e um ensemble de cordas (NOMAD Ensemble, conduzido pelo britânico Robert Ames) são adições bem-vindas à utopia virtual de arpejos e sequenciadores que o músico conjura a partir de uma gama variada de efeitos e processamentos digitais, traçando pontos de ligação entre as qualidades vertiginosas do pós-rock (“crescendocore”, uma variante do género, constituiu uma importante fonte de inspiração no incansável processo que levou à concepção de Again) e a imprevisibilidade das inteligências artificiais (cinco das suas faixas têm por base esboços gerados automaticamente por IAs).
“Krumville”, uma colaboração com os compatriotas Xiu Xiu, que contribuem também com arranjos vocais no tema “Locrian Midwest”, combina folk pastoral com vozes adulteradas e um pendor para os acordes de recorte emo. “On An Axis”, faixa que antecipa o êxtase sinfónico de “Ubiquity Road”, intersecta paredes liminares de som com a voz (irreconhecível) de Melissa Arpin, vocalista dos shoegazers norte-americanos lovesliescrushing, antes de “Barely Lith Path”, o único avanço de Again, encerrar o disco em apoteose.
Segundo as notas que acompanham o lançamento, Again encerra uma trilogia de álbuns iniciada em 2015, com o delírio alucinante de Garden of Delete, e que tem na sua derradeira instalação mais uma importante peça no complexo puzzle que é a mente do norte-americano, um corpo transgressor onde cabem as músicas dos anos 70, 80 e 90 — grunge, synthpop e rock progressivo recontextualizados sob a lente de um dos mais inventivos mestres dos nossos tempos.