Divide and Dissolve e a transcendência sonora do ativismo

Divide and Dissolve e a transcendência sonora do ativismo

| Novembro 6, 2023 1:03 am

Divide and Dissolve e a transcendência sonora do ativismo

| Novembro 6, 2023 1:03 am

As Divide and Dissolve foram responsáveis por um dos mais brilhantes e poderosos concertos – emocional e fisicamente – desta edição do Amplifest. Pouco depois de subirem ao palco, deslocamo-nos ao restaurante do Hard Club onde a líder Takiaya Reed nos recebeu com um sorriso, uma calma tranquilizante e muito para dizer no campo ideológico da mudança. “Woke” para uns, elucidativa para quem a souber escutar, proporcionou-nos uma troca de ideias tão relaxada quanto urgente. Abaixo, podem ler a conversa.

Bom, para começar, não pude deixar de notar a intensidade do vosso espectáculo, a nível sonoro mas também espiritual. Sei que a ideia para o projeto, aliás, partiu de um sonho que tiveste, pelo que gostaria que discutisses um pouco mais essa inspiração.

Sim, claro. Bem, eu tive o meu sonho e sabia que era super importante falar sobre os antepassados, sobre a ideia de ser negro e sobre a escravatura… Basicamente, abordar essas temáticas através da música. O meu sonho, no fundo, encorajou-me a falar destas coisas que estão presentes na minha mente e que têm impacto na minha rotina diária – todas estes assuntos de natureza indígena, do passado, presente e futuro… Isso tornou-se em Divide and Dissolve.

Foi então, de certa forma, uma espécie de “chamamento”…

Sim, algo desse género, definitivamente.

Voltando à questão do vosso concerto e de toda a intensidade espiritual que parece reunir: O quão esgotada , emocional e fisicamente, ficas após cada performance? Pergunto porque parece-me haver ali um conceito de catarse, algo que exige imenso de ti a um nível profundamente visceral…

Acho que ocasionalmente sinto-me emocionalmente esgotada, sim… A sala liberta tanta energia, toda a gente aqui estava connosco a curtir , foi incrível. Mas agora nem me sinto emocionalmente exausta, mais fisicamente cansada porque não tive muitas horas de sono hoje. Emocionalmente, contudo, a sensação é muito boa, a aura ali dentro era fantástica porque as pessoas estavam mesmo a entender a nossa mensagem, e isso… isso sabe mesmo bem, é espectacular poder abordar estas questões e obter uma reação favorável. Sinto-me revigorada, entusiasmada, sinto-me agradecida e quase abençoada. Mesmo conhecer alguém como tu… é tudo tão maravilhoso.

Bom, obrigado. Na verdade nem me surpreendeu essa reação, pois havia muita gente com curiosidade e vontade de vos ver. Já agora, este projeto é claramente bastante político – isso é inegável-, mas houve alguma banda que tenha sido uma influência concreta, a nível ideológico?

Bom, na verdade para mim muitas das minhas influências nem são musicais. Há uma artista chamada Phoebe Collings-James, a arte dela é incrível e super inspiradora, lida com referências à descolonização… ou então a Osa Atoe. São ambas ceramistas e escultoras que me agradam imenso. No campo da escrita, figuras como James Baldwin ou a Octavia Butler deixam-me embevecida… O Mark Rifkin também é outro autor indígena que me inspirou imenso. Claro que há músicos que adoro, mas, por outro lado, existem simplesmente outras formas de arte que me comovem de forma indescritível e que se refletem no meu trabalho.

Compreendo. Já agora, é difícil para ti, por vezes, estares envolvida no mundo do metal? Pessoalmente adoro este estilo, mas reconheço que consegue ser, em determinadas alturas, bastante conservador. Por exemplo, já tive pessoas a dizerem-me que Divide and Dissolve era uma banda demasiado “woke”, daí a minha questão…

Bem, sabes, é engraçado porque… Acho que há pessoas doces praticamente em todo o lado, pessoas como tu e tantas outras que encontramos. Por exemplo, vamos abrir para a Chelsea Wolfe e isso faz-me pensar como tudo isto é maravilhoso, sinto-me tão feliz. Às vezes há momentos mais difíceis, mas pessoalmente escolho muito conscientemente focar-me nas pessoas que são acolhedoras e de mente aberta, e acabo por sentir muito amor e apoio neste mundo…Mas sim, o metal é por vezes um universo muito desafiador.

 

Divide and Dissolve

“Quer dizer, se a mudança fosse como uma gota que desse origem a um oceano, isso seria francamente espectacular.”

 

Sem dúvida. Contudo, há exceções, e uma delas constitui uma das minhas bandas de metal favoritas – os Sepultura – , que nos anos 90 gravaram com uma tribo indígena do Brasil. Desconheço se foste particularmente inspirada por eles, mas dirias, de qualquer forma, que eles abriram várias “ portas”, para ti e para outros, ao incluir uma voz indígena num universo sonoro até então bastante fechado a esse mundo?

Oh Sepultura!!! O Iggor Cavalera é tão maravilhoso!! Ele toca naquela banda – os Petbrick, certo? Acho-o fantástico, a energia dele é excelente. Para ser sincera contigo, nunca ouvi Sepultura, mas sigo o Iggor no Instagram e até já nos encontramos. Como disse, a energia dele é muito motivadora e isso é importante para mim, é o que eu adoraria que a comunidade de metal em que as Divide se inserem parecesse… se bem que eu nem ouço metal, honestamente, não é muito a minha onda…

No entanto, olha que a tua música é bem mais pesada e demolidora que muitas bandas de metal… Sobretudo ao vivo.

(risos) Fixe, adoro ouvir isso, obrigada.

E no que diz respeito a objetivos, digamos, mais a longo prazo… Qual é a tua grande ambição com esta banda, para além de, como já estabelecemos, tornares o teu sonho numa realidade palpável? Gostarias de mudar a comunidade musical no qual participas, encorajando uma espécie de revolução interna de ideias?

Sim, sem dúvida. Quero continuar a pedir que os povos indígenas recebam a terra que é sua, e para as pessoas serem compensadas pela escravatura, e planeio continuar a falar sobre isso na esperança de ver mudança. Quer dizer, se a mudança fosse como uma gota que desse origem a um oceano, isso seria francamente espectacular. Isto é a minha vida, aquilo a que me dedico, e estou profundamente grata por ter um meio, por poder usar a minha música, para falar sobre isto.

E alguma vez te preocupas que a tua mensagem seja, de algum modo, incompreendida/mal interpretada? Há uns anos, por exemplo, o vosso vídeo para a música “Resistance” chegou a ser temporariamente banido do Youtube pelas críticas/provocações que fazia a figuras do colonialismo como Captain James Cook ou John Batman. Sentes que as explicações sobre as músicas que fazes em palco, nos intervalos, podem contribuir para uma análise mais aprofundada?

Humm… Diria que tudo tem a capacidade de ser mal interpretado e, além disso, a ideia é, lá está, abordar a violência do colonialismo e do racismo sistémico. Mas não fico muito preocupada com possíveis más interpretações. A própria experiência do concerto serve para clarificar, efetivamente.

Já que estamos a mencionar estes temas… tendo em conta que és uma mulher afro-americana e também cherokee, como olhas para movimentos como o Black Lives Matter ou até o Me Too? Porque estes foram, e ainda são, amplamente discutidos na sociedade contemporânea, mas olhamos para o mundo de hoje e ainda há muito a resolver nessas áreas…

Acho que esses movimentos trouxeram à baila assuntos pertinentes que precisam de ser revistos, mais discussão e diálogo, que é um passo crucial na direcção da mudança. Porque esses sistemas de supremacia branca, colonização falham sempre. Há muito trabalho que precisa de ser feito e essa mudança necessita de ser mais abrangente em todas as frentes, é assim que se alteram as coisas.

Entrevista por: Jorge Alves
Fotografia: Billy Eyers

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