Semibreve: meditações telúricas sobre um futuro em construção
Semibreve: meditações telúricas sobre um futuro em construção
Semibreve: meditações telúricas sobre um futuro em construção
Foi no alto do Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, que arrancou mais uma edição do Semibreve. Clarice Jensen, requisitada violoncelista norte-americana, foi o nome responsável por inaugurar o evento dedicado às vanguardas da eletrónica e das artes digitais, que este ano celebrou a sua 13ª edição ao longo de quatro dias de música, com um programa paralelo de conversas, instalações e workshops.
Os instantes que se viviam à entrada do espetáculo eram de alguma agitação: sala cheia, caras conhecidas, momentos de reencontro; mas a atmosfera, amplificada pela imponente arquitetura do edifício, era solene e de grande respeito. Diante do altar, no cruzeiro da basílica, Jensen fez-se acompanhar apenas do seu violoncelo, instrumento com o qual deixou forte impressão nas obras de Björk, Joanna Newsom ou Taylor Swift. Foi esse instrumento que manobrou na noite de quinta-feira, durante a melhor parte de uma hora, povoando o espaço acústico da sala com recurso a um processador de efeitos e vários pedais.
O resultado é em tudo cinemático: sozinha em palco, Jensen recria o som de uma orquestra inteira, moldando as muitas camadas que constrói a partir do violoncelo até ao seu estado mais puro, com drones espessos e harmonicamente densos a caminhar lentamente até à sua progressiva dissolução. Lembramo-nos de Gavin Bryers, e da famosa composição The Sinking of the Titanic; Stars of The Lid, e da bonita elegia que foi esta ao malogrado Brian McBride.
Uma estreia inquietante
No início era a carcaça. Depois o corpo, vivo e imponente, de um veado. Mizubiki, situada a 60 quilómetros de Tóquio, é o cenário pitoresco de uma terra ameaçada pelos planos de uma empresa em recuperação, que vê nos prados virgens e intocados da vila japonesa berço para uma nova empreitada turística. Takumi e Hana, pai e filha, são os protagonistas da evocativa história apresentada na sala maior do Theatro Circo, sexta-feira, no segundo dia de festival. Eiko Ishibashi, no palco, é a condutora, coordenando todos os sons – drones pulsantes, arranjos para cordas, palpitações rítmicas – a partir de um sistema multicanal; Ryusuke Hamaguchi, cineasta premiado com um Óscar, o realizador. GIFT, depois de Drive My Car, o mais recente produto desta proveitosa união.
Pensado originalmente para a performance musical de Ishibashi, tornou-se com o passar do tempo num projeto mais ambicioso, com a adição de diálogos e estreias agendadas nos mais importantes festivais de cinema da Europa. Evil Does not Exist, distinguido este ano com o Grande Prémio do Júri no Festival de Veneza, foi o resultado, e é a partir dessa mesma matéria que se forma o grosso do espetáculo apresentado nessa noite em Braga, o primeiro em formato filme-concerto no contexto do Semibreve.
Quando assistimos ao dia-a-dia de Takumi, que ajuda os locais com as tarefas árduas da vida rural, tememos o pior — a trilha que pauta cada um desses momentos é ambígua e emocionalmente inquietante. Nada parece acontecer, contudo. A espaços, a compositora, que se queda na lateral do palco, recorre a uma flauta transversal adulterada, conferindo a cadência e carga dramática necessárias para envolver o espectador na narrativa. Pelo meio, um duro processo de disputas, onde são discutidos os impactos ambientais do futuro empreendimento, distrai-nos da sua questão mais existencial: a ligação cândida e impoluta entre um pai com a sua filha e a natureza que os rodeia, e as circunstâncias que levam ao apoteótico – e desconcertante – desfecho do filme.
Ainda na intersecção entre som e imagem, e depois de uma conversa horas antes no Museu Nogueira da Silva, Maya Shenfeld (compositora e artista sonora) e Pedro Maia (cineasta) apresentaram a quarta de cinco performances agendadas para este ano, inseridas na digressão Under the Sun. In Free Fall, a estreia em longa-duração da alemã sediada em Berlim, foi o mote para um caleidoscópico espetáculo atemorizado pela efeméride, em que a extração de recursos naturais, do concreto das pedreiras de Vila Viçosa às colinas preenchidas de painéis solares, premeia as imagens projetadas à retaguarda por Maia, que ao longo da sua carreira tem explorado com sucesso os limites da película Super 8, combinando-as com as possibilidades das novas tecnologias. Shenfeld, que encontrou nas dinâmicas de tensão e libertação do punk o gosto pelo processo de fazer música, serve-se destas mesmas experiências para abraçar uma abordagem mais libertária de composição clássica, cruzando os padrões progressivos da kosmische alemã com uma selva frondosa de sons, entre coros, instrumentos de sopros e gravações de campo que a própria recolheu.
No gnration, a britânica Beatrice Dillon demonstrava porque é que Workaround, publicado nos metros iniciais de 2020, antes de rebentar a pandemia, continua a ser uma obra tão vital nos nossos dias. Na linhagem de Mark Fell e outros estetas que, tal como o génio britânico, exploram as possibilidades do timbre, como Rian Treanor e Gabór Lazar (caras, aliás, bem conhecidas deste festival), a produtora sediada em Londres desafiou os ouvintes com um arsenal impressionante de sons e gravações em ricochete. Trance pontilhista, da melhor escola de Lorenzo Senni, tenso e sem malabarismos, convida à audição atenta e de olhos fechados (mas ouvidos e mente bem abertos).
Elétrico e acústico, uma relação de cumplicidade
Parece coisa de mitologia. Em entrevista à Quietus, a semanas do arranque de mais uma edição do Semibreve, Anja Lauvdal dava conta de um veado selvagem que aparecera no pátio de sua casa, em Oslo. A interrupção decorria precisamente no momento em que a norueguesa se debruçava sobre os benefícios de deixar a mente divagar, ao invés de ser consumida pela incessante necessidade do cérebro em ser produtivo.
Em Braga, na belíssima Capela Imaculada do Seminário Menor, a artista jogou com isso e algum acaso, construindo mundos delicados para piano e sintetizador. O que começou límpido e cristalino – um marasmo de harpejos e glissandos de recorte celestial – rapidamente se tornou caústico e dissonante, com sons e texturas a invocar órgãos e outras enlevações de ordem superior.
Em 2001, na viragem do novo milénio, Christian Fennesz trazia ao catálogo da Mego, fundada em meados dos anos 90 pelo malogrado Peter Rehberg, um renovado sentido de melodia. Endless Summer, editado nesse ano, assinalou um ponto de viragem no percurso do importante selo austríaco, que graças à obra do guitarrista assistiu a uma nova aceitação a nível global. Contudo, ainda antes de Fennesz ter inscrito as suas iniciais no panteão da música glitch, Tujiko Noriko traçava já importantes pontes entre a pop e a música à base de computadores.
Hard ni sasete, o terceiro disco da cantora-compositora japonesa (e o segundo sob a alçada da Mego), foi editado em 2002, um ano após Vespertine, de Björk, ter quebrado as barreiras que separavam a pop da música experimental. Desde então, a artista natural de Osaka (atualmente sediada em Paris) é tida como um dos mais interessantes exemplos na intersecção desses dois mundos, com um firmado reconhecimento global que a levou a trabalhar nas mais variadas disciplinas, do som à realização e encenação de filmes.
Crépuscule I & II, ambiciosa obra de pop ambiental em dois tomos, foi o mote para o espetáculo que a artista veio apresentar a Braga, no terceiro dia de festival. Joji Koyama, que partilha os créditos de realização de Kuro, a estreia da japonesa no grande ecrã, encarregou-se de preencher a moldura horizontal do palco com uma paleta monocromática de imagens em movimento, ilustrando os muitos mundos que a japonesa construiu com o auxílio do seu filho, que a acompanhou com alguns bordões de guitarra. Juntos percorreram os temas de seu mais recente disco, aqui condensado durante a melhor parte de uma hora, ornando o espaço acústico do Theatro com um laboratório de texturas e sons encontrados, ruídos concretos e vozes sussurradas.
Ainda na senda dos nomes fundamentais da Mego, os Emeralds, que há dez anos não pisavam palcos, regressaram para o seu terceiro espetáculo neste ano, depois das passagens pelas edições espanholas do Primavera Sound. O super trio formado por John Elliott, Steve Hauschildt (vimo-lo atuar neste festival em 2017) e Mark McGuire foi irrepreensível na execução de uma sonoridade que em muito deve à escola de Berlim de Klaus Schulz e Manuel Göttsching, com a guitarra de McGuire, o coração do projeto, a bombear todas as artérias do progressivo corpo eletrónico conjurado pelos seus parceiros. A avançada configuração de sintetizadores analógicos e modulares contrasta com os idílicos motivos florais que cobrem a totalidade da tela, onde são exibidas cândidas imagens em película de grande formato, mas o som que o grupo pratica é feito dessa mesma matéria granulenta, com estática, cliques e outras crepitações de qualidade hauntológica a cobrir a totalidade das suas composições pastorais.
Menos ordeira estava a situação no gnration, que testemunhou uma enorme afluência à entrada da Blackbox, onde decorreria a estreia de Loraine James no festival. Compreensível, dado que Gentle Confrontation, a mais reveladora obra da londrina, é um dos grandes acontecimentos musicais de 2023. Mas nas entrelinhas da programação escondia-se um dos seus maiores e mais negligenciados tesouros. Nkisi, que em 2015 fundou a saudosa editora NON Worldwide com Chino Amobi e Angel-Ho, deu seguimento a uma inspiradora prestação por parte da produtora britânica com um set que desafia as normas da música club no contexto ao vivo. Quando escutamos o som entrecortado que sai das colunas, não sabemos se se trata de uma anomalia técnica ou de um ato deliberado. A música que artista do Congo, hoje a residir em Londres, é consciente e consciencializa, dança e evasão – do corpo, da mente – como ato político e combativo. Em palco, não só coordena a sua impetuosa biblioteca de sons industriais como canta, dança, sente. A pista é sua — entrar nela é um convite ao desconforto, mas também à libertação.
Máximo volume, máximos resultados
O clima era de alguma azáfama à entrada do Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, no quarto e último dia do Semibreve 2023. Tal como acontecera no gnration, na noite anterior, as filas começavam a formar-se nas imediações do histórico edifício, que acolheria pela tarde o neerlandês Thomas Ankersmit. Em cima do palanque, colocado ao centro do salão, o músico que explora fenómenos físicos e psicoacústicos nas suas complexas composições, como as vibrações infrassónicas, as emissões otoacústicas e outros palavrões em torno das matérias do som, deu a conhecer um pouco da sua relação com estas questões, elucidando o público acerca da extravagante configuração – modular Serge em posição vertical, cabos e outras parafernálias eletrónicas – que tinha à sua frente.
O arranque não foi coisa de somenos: corpo balístico de samples e gravações bojudas, como o som de um canhão a rebentar bem junto dos nossos ouvidos, antes das particularidades sintéticas do modular tomarem a dianteira. Dotado de um controlo raro do instrumento que tem à sua disposição, Thomas Ankersmit, que admite a existência de alguma improvisação nos seus espetáculos, é o maestro moderno ao comando da sua própria orquestra de microtexturas. Tem a capacidade de conferir ao ruído e à dissonância provocadas pelos efeitos de feedback uma profundidade e emoção raras, com camadas ressonantes de graves e ondas sinusoidais clinicamente trabalhadas ao serviço de um produto com tanto de extremado quanto de terapêutico.
E o que esperar do regresso de François Bonnet (desta feita sob o pseudónimo Kassel Jaeger) ao Semibreve, depois da anódina perfromance com com Stephen O’Malley, o homem do leme nos Sunn O))), no ano passado? A colaboração com a cineasta francesa Eléonore Huisse previa desde logo um espetáculo mais interativo. Assim o foi. Mas o que resta além das imagens? Um corpo sólido de camadas e texturas tingidas de um negrume premente, som e imagem vinculados por um amor intrínseco pela natureza: sol entrecortado por densas nuvens no crepúsculo, águas em queda livre numa encruzilhada de cascatas hipnotizante, antes da alvorada dar lugar à candura de acidentadas paisagens rochosas. Natureza no seu estado puro, exemplarmente musicada pelo atual responsável pelo Groupe de Recherches Musicales (Ina GRM).
Depois do gnration, a estreia no Semibreve. Kali Malone subiu ao palco do Theatro Circo com estatuto de cabeça de cartaz num evento que procura demolir este tipo de concepções, mas os recentes lançamentos da compositora demonstram que a norte-americana sediada em Paris simplesmente não sabe falhar (e a receção calorosa à entrada do Theatro Circo só ajudou a confirmar essa posição). O seu nome é cada vez mais consolidado nos planos da composição contemporânea, com The Sacrificial Code e Living Torch, documentos vitais do pós-minimalismo moderno, a firmá-la como uma das mais respeitadas figuras da sua geração.
Em Braga, contudo, não foi muito além do expectável, limitando-se à fórmula apresentada no seu mais recente disco, Does Spring Hide Its Joy, composta por três meditações electroacústicas. Na base destas composições estão também três instrumentos principais: guitarra, violoncelo e um conjunto de teclados e osciladores. Juntos formam um corpo transgressor único, pensado como um todo a partir de uma prática holística e devocional. “Máximo volume produz máximos resultados”, palavras sabias (cortesia de Stephen O’Malley, marido da compositora) que retratam na perfeição os momentos vividos nos metros finais da performance, catarse e dissonância em forma de êxtase tonal, antes da acalmia retomar ao som de uma belíssima elegia para cordas.
Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023