
Extramuralhas 2025: 14 edições a espalhar magia negra na cidade de Leiria
Extramuralhas 2025: 14 edições a espalhar magia negra na cidade de Leiria

Extramuralhas 2025: 14 edições a espalhar magia negra na cidade de Leiria
Agosto, aquele mês mágico que é o preferido dos portugueses. Mês de férias, de descanso, de jantares intermináveis, de dias de praia e noites de esplanada e de copos. O mês em que o deitar é tarde e o levantar mais tarde ainda. Agosto, mês de festas e romarias, encontros e reencontros. E, para os mais aficionados da cultura gótica e da música alternativa, agosto é ainda o mês que tem os três dias mais importantes do ano, que correspondem à realização do festival gótico Extramuralhas, que este ano comemorou a sua 14ª edição.
Entre os dias 21 e 23 de agosto, Leiria viveu mais um momento especial em que uma cultura alternativa invadiu a cidade e em que o monocromatismo negro coloriu Leiria como nenhum outro evento consegue fazer. Foram três dias memoráveis de bons concertos, convívio e reencontros, que tornam este festival um momento ritualístico de encontro anual de uma comunidade que vive com intensidade a cultura gótica e que aprecia a música que exprime aquela tristeza boa que tanta gente adora. A Threshold Magazine, mais uma vez, esteve presente e conta tudo o que viveu e experienciou neste fim de semana mágico.
Dia 1, 21 de agosto
O programa das festas deste ano, à semelhança da edição de 2024, concentrou todos os espetáculos na baixa da cidade, reservando para o castelo o papel de vigia atento lá no alto da colina. Depois de oito edições como Entremuralhas, o festival passou a ser, desde 2018, Extramuralhas, modelo que pretendia ser apenas temporário, em resultado das obras no castelo de Leiria, mas que se tornou definitivo após a interrupção forçada devido à Covid 19 em 2020 e 2021.
A Igreja da Misericórdia, em plena baixa da cidade, passou, desde a edição do ano passado, a integrar a lista de locais de concertos deste festival e oferece a artistas e espetadores um palco magnífico para momentos musicais de grande intensidade estética e experiencial. A primeira artista convocada para este espaço foi a franco-marroquina Sophia Djebel Rose. Figura algo franzina e discreta, esta gaulesa de Auvergne-Rhône, nos Alpes franceses, fez a sua estreia em Portugal com este concerto. Conta ainda com curta obra editada, mas toda ela é de excelente qualidade, como atestam as edições esgotadas da maior parte dos seus trabalhos. Talvez isso explique por que razão não houve discos desta artista à venda, algo que, a acontecer, teria, certamente, conseguido fazer com que esses registos em vinil ou cd desaparecessem do armazém onde estão guardados, tal o interesse que o concerto despertou nos presentes.
Embora a atuação desta artista tenha ocorrido a uma quinta-feira à tarde, a Igreja da Misericórdia estava muito bem composta, principalmente tendo em conta que acontecia num dia e a uma hora que era ainda de trabalho para muitos festivaleiros, que só chegariam a Leiria logo mais rente à noite.
E o que dizer do concerto? Foi um excelente momento de abertura do festival, especialmente porque a escolha da artista e do local, como costume, fizeram um casamento perfeito. Assim que a franco-marroquina entrou no palco improvisado da igreja, a sua figura algo tímida tomou conta de todo o espaço e a sua poderosa voz inundou as quatro paredes do antigo templo, espalhando magia por todo o lado. Os temas iam alternando momentos de suavidade musical, dedilhados na guitarra com todo o cuidado, com violentas trovoadas sonoras que iam sendo arrancadas das cordas e que eram acompanhadas pela voz impressionante de Sophie Rose. Foi uma hora de muita introspeção, de fruição de uma das coisas mais belas que o ser humano tem à sua disposição – a arte e a cultura – que mais uma vez invadiu Leiria. Para início de conversa para este Muralhas, como carinhosamente é conhecido este festival, não poderia ser melhor.
Sophia Djebel Rose
Depois do concerto da gaulesa seguiu-se um rápido jantar, pois daí a pouco haveria mais para ver, nomeadamente o concerto duplo do Teatro José Lúcio da Silva, que apresentava nessa noite o franco-inglês Matt Elliott e os enormes And Also The Trees, que atuaram pela terceira vez em Leiria, sempre pela mão da Fade In, depois dos concertos do Fade In Festival, em 2010, e do Entremuralhas, em 2015.
Começando por Matt Elliott, este multifacetado instrumentista foi intercalando as melodias tocadas na sua viola com o saxofone. A sua voz conferiu um toque especial à toada melancólica e sofrida que o músico procurou exprimir ao longo da sua atuação e que tocou fundo os festivaleiros, que praticamente encheram por completo o Lúcio da Silva, obrigando à abertura do 1º balcão para conseguir acomodar toda a gente que quis marcar presença nesta noite inaugural da 14ª edição do Extramuralhas. Ainda mal recuperados do momento mágico a que tínhamos assistido horas antes na Igreja da Misericórdia e já nova emoção tomava conta de nós.
Após um curto intervalo, que também não podia ser muito grande, pois o bar do teatro, inexplicavelmente, encontrava-se encerrado nesta noite de espetáculos, deixando os muitos presentes sem possibilidade de hidratar as gargantas que estavam secas de tanta emoção que tinham vivido na voz de Matt Elliott, logo o toque de reunir soou da instalação sonora do teatro, convocando os presentes para retomarem os seus lugares para o concerto seguinte.
And Also the Trees começam já a ser presença habitual em Leiria, o que não impediu, contudo, que mobilizassem algumas centenas de pessoas para se deslocarem até ao Lúcio da Silva para, mais uma vez (ou pela primeira vez) verem estes ingleses atuar em terras do Lis. A genialidade desta banda é há muito conhecida, pois já andam nestas andanças musicais desde 1979, tendo tocado com gente tão importante como The Cure, por exemplo, para quem fizeram várias vezes as primeiras partes dos concertos, tradição que começou logo no início da carreira da legendária banda britânica em 1981, na altura da tournée do álbum Faith.
Há muitos anos que esta banda ganhou estatuto próprio e não necessita de revisitar a história para recordar o tempo em que servia de suporte a outras, tal como este concerto veio, mais uma vez, provar. O local escolhido foi perfeito, pois permitiu que se formasse um ambiente que se ajustava muito bem à música algo soturna e romântica, embelezada pela voz inconfundível de Simon Jones, ajudado pela guitarra impecavelmente executada pelo seu irmão Justin. Essa combinação ajudou a criar aquela música eivada de melancolia e de romantismo, que remeteu o vasto público presente para uma hora de profunda contemplação, apenas interrompida, no final de cada tema, por salva de palmas de longa duração. Ótima combinação esta para este teatro.
And Also the Trees
Apenas estes três concertos já teriam feito um primeiro dia inesquecível. Mas a noite ainda estava a começar, e faltavam os concertos do Jardim de Camões e da Stereogun. Para o jardim a organização programou os teutónico-helvéticos SIIE e os suecos Then Comes Silence, reservando para a discoteca os franceses Lovataraxx.
Começando pelo jardim, naturalmente que o facto de os concertos serem oferecidos gratuitamente à população contribui para que sejam os espetáculos que reúnem anualmente mais gente, mas este ano notámos que havia um número pouco usual de público no primeiro dia de concertos, que, por norma, é sempre mais fraco em termos de afluência. Outra coisa que também notámos foi o facto de o público mais conotado com as culturas alternativas ser dominante no jardim, algo que nem sempre tem acontecido nos outros anos, em que os curiosos acabam por formar grandes grupos de espetadores, que praticamente engolem os mais aficionados da cultura gótica, que gostam de se concentrar lá mais à frente, perto do palco e dos artistas.
O duo originário da Alemanha e Suíça foi o primeiro a entrar em ação. Com um som pautado por uma mescla de EBM com techno e synthpop, esta foi a forma perfeita de agitar os corpos de todos aqueles que vinham ainda contagiados pela muita introspeção e calmaria dos três primeiros concertos. Aqui não havia lugar para esse sossego. A endiabrada vocalista, que não parou um único segundo durante todo o concerto, correu quilómetros em cima do palco enquanto se direcionava para o muito público que assistia cá de baixo à poderosa música ritmada que emanava das colunas. As máscaras que o duo utilizava, e que lhes escondiam por completo os rostos, conferiam um tom de mistério que combinava com aquele espetáculo, que não era apenas musical, mas que tinha também muito de cénico. Por acaso, como à tarde passámos no jardim à hora do soundcheck da banda, conseguimos ver-lhes as caras e até tirar uma fotografia, mas é escusado pedirem-nos para a divulgar, pois eles não querem ver desvendada a sua identidade, e nós respeitaremos essa vontade.
A última banda do dia no jardim foi Then Comes Silence, escandinavos que fizeram a sua estreia em Leiria. Com um som marcadamente pós-punk e gothic rock, estes músicos encontram a sua inspiração no horror e espiritismo, o que confere à sua música um estilo muito particular. Tendo 13 anos de existência, este grupo conta com sete álbuns de estúdio, o último dos quais (Trickery) saiu no ano passado e serviu de base a alguns dos temas com que brindaram os festivaleiros do primeiro dia do Extramuralhas que foram até ao Jardim de Camões. Se SIIE já tinha aquecido os corpos para a agitação da noite, estes Then Comes Silence souberam, e bem, continuar essa tarefa.
Findos os concertos do Camões, chegou a altura de fazer a última caminhada da noite, neste caso até à Stereogun, espaço emblemático do Extramuralhas e da música alternativa em Leiria, para ver os franceses Lovataraxx. Este duo de Lyon, França, ofereceu-nos uma hora de cold wave e minimal synth que mistura influências do post-punk, darkwave e música eletrónica. Embora franceses, as letras são também cantadas em inglês e alemão. Perante uma discoteca cheia, o duo conseguiu pôr toda a gente a dançar ao ritmo da sua música eletrónica, provando que não é preciso muita gente para conseguir cativar um público, bastando, para tal, algum equipamento eletrónico e boa presença em palco. Bom, na verdade, talvez não seja correto dizer apenas “algum equipamento”, pois, no caso deste duo, foram necessários quatorze dispositivos eletrónicos para que a coisa funcionasse, pelo menos foi este número que apurámos numa contagem rápida da parafernália de equipamento eletrónico que estava em cima da mesa ligado por cabos e mais cabos.
Depois de se ter conseguido desmontar o complexo puzzle de máquinas que foi necessário para o concerto, foi a vez do nosso já bem conhecido Pedro Morcego fechar a noite com um dj set. Figura habitual em todos os Extramuralhas, e que inclusivamente já teve oportunidade de atuar ao vivo num dos Entremuralhas com os seus Phantom Vision, esta figura absolutamente incontornável do gótico nacional, e que em 2024 teve a honra de fazer as primeiras partes dos concertos da tournée europeia do projeto a solo de Till Lindemann, vocalista dos gigantes Rammstein, entreteve os muitos resistentes deste primeiro dia com música até que a Stereogun encerasse as suas portas, já a madrugada ia bem alta. Para primeiro dia foi bom. Mas a festa ainda só estava no início, e havia ainda muita coisa para ver nos dois dias seguintes.
Dia 2, 22 de agosto
O dia acordou bonito e prometia ser quente. Uma breve deambulação pelas ruas de Leiria antes do almoço deu para perceber que o movimento na cidade era maior do que aquele que se esperava para um dia de final de agosto. Destacavam-se, sobretudo, os muitos festivaleiros totalmente trajados de negro, envergando t-shirts de bandas – muitas delas que já passaram por Leiria – ou de edições anteriores do Entre/Extramuralhas. Aqui e ali, podia também ver-se um ou traje mais elaborado, remetendo para a época vitoriana. O festival gótico Extramuralhas confere anualmente um ambiente muito particular à cidade e os locais já se habituaram, por aqueles dias, a conviver com aquelas pessoas que vestem de preto e que trazem um bom retorno económico ao comércio local.
O primeiro concerto do dia estava agendado novamente para a Igreja da Misericórdia. Tratava-se da sueco-alemã Fågelle. Confessamos que não sabíamos ainda muito bem ao que íamos, pois conhecíamos pouco da obra desta artista. Numa igreja bem composta, o calor da tarde começou a fazer-se sentir e muitos leques começaram a trabalhar para que o ar circulasse e permitisse aos muitos presentes respirar um pouco melhor. O som do movimento do ar foi mesmo a única coisa que se ouviu durante aquela hora extraordinária.
Fågelle é um monstro em palco. A sua poderosíssima voz fez estremecer as paredes da antiga igreja e calou os espetadores que, incrédulos, assistiam a um daqueles concertos que serão recordados para sempre. Arrancando bem fundo gritos em sueco vindo das entranhas, Fågelle deu um dos melhores concertos a que já tivemos oportunidade de assistir ao vivo neste festival. Apresentando o seu longa duração intitulado Den svenska vreden, que diz o tradutor automático que significa “A fúria sueca”, o que ali pudemos presenciar foi uma explosão de emoções que esta sueca espalhou por todo o recinto. Prova do interesse que este espetáculo conseguiu foi a corrida que o vasto público encetou até à banca dos discos com a expectativa de conseguir um dos dois únicos vinis ou da meia dúzia de cds que a artista trouxe consigo para vender. Menos de duas mãos cheias de dedos conseguiram adquirir um desses preciosos objetos, e nós fomos um desses afortunados. Infelizmente, não conseguimos o vinil, mas ficámos com o cd, que Fågelle teve a amabilidade de assinar. E que peça maravilhosa é esse disco, não apenas a música, mas também o trabalho gráfico! Só por este concerto o dia já teria valido a pena.
Fågelle
Mas a sexta-feira estava ainda a começar. O Jardim de Camões oferecia para essa tarde e noite uma programação muito forte. Pelas 17h00 foi a vez de Pink Opake, banda vinda do Brasil e que foi o primeiro grupo do país irmão a atuar neste festival, ocupar o palco. Amigos de um brasileiro residente há poucos anos em Coimbra, e que também estava presente no festival com uma banca de venda de livros e t-shirts, estes ativistas aproveitaram as suas músicas de toada pós-punk para fazerem feroz crítica social, provando que nem só de melancolia e negritude é feito um festival gótico. O facto de o merchandise que a banda trouxe até Leiria ter praticamente esgotado, parece provar que o concerto agradou aos muitos presentes que, àquela hora, ali estavam pelo Jardim de Camões. No final, ficou o agradecimento à organização e ao já referido brasileiro de Coimbra, que serviu de ponte para esta banda poder vir até Leiria.
A segunda banda a entrar em ação deu aquele que, em nossa opinião, foi um dos melhores concertos do jardim de todo o festival. Darkways, banda espanhola que tem marcado presença em vários eventos góticos e alternativos nos últimos tempos, deu um espetáculo gigante que não deixou indiferente o público, que se ia avolumando cada vez mais à medida que o dia ia avançando. Este concerto, incluído na tournée Resonance que serve de apresentação ao álbum com o mesmo nome, ofereceu uma hora de muito boa música de inspiração darkwave e pós-punk. Os temas “I Love the Night” e “Shadowdancer”, talvez por serem os mais reconhecidos pelo público, foram os que motivaram mais reações, mas todo o set foi de muito boa qualidade. Estes catalães são um caso sério e que veio para ficar. Tivemos oportunidade de os ver em junho no Wave Gotik Treffen, em Leipzig, numa sala repleta de gente e que contou com o mesmo conjunto de temas, embora numa ordem ligeiramente diferente. Por nós, voltávamos a vê-los sem hesitação mais algumas vezes este ano. Este concerto teve ainda a particularidade de ser o concerto de despedida do baixista David, que optou recentemente por deixar a banda para seguir outros projetos, o que o tornou ainda mais especial. Obrigado, Fade In, por mais este momento inesquecível!
Depois dos excelentes concertos da tarde, tivemos algum tempo para jantar até que chegasse a hora de ir até ao Lúcio da Silva, para mais dois espetáculos dignos de registo. Os primeiros a pisar o imponente palco do teatro foram os franceses que compõem o grupo Bärlin, trio de Lille que se apresenta ao público como fazendo um som que transcende as fronteiras de géneros musicais, navegando ali por entre o coldwave e o pós-punk e recorrendo ao clarinete para construir um som muito próprio, que combina excelentemente com a impressionante e inimitável voz de Clément, o vocalista da banda. Contando com quatro álbuns na discografia, este concerto, intimista e belo, assentou nos discos Emerald Sky, The Dust Of Our Dreams e State of Fear, acompanhados do que pareceu ser algum material novo ou inédito. De salientar a simpatia da banda, que se prontificou a conversar com o muito público que, no final do concerto, se dirigiu à banca do merchandise para pedir autógrafos, fotografias e para dois dedos de conversa. Uma última nota em relação a este concerto: a banda trouxe algumas caixas com discos em vinil (vendidos a 18€) e cds (vendidos a 12€). O facto de este material ser disponibilizado a preços tão convidativos justificará, certamente, que os discos, nos diferentes formatos, se tenham vendido como pãezinhos quentes. Talvez fosse interessante que outras bandas, que optam por colocar os seus discos à venda por 30 e mais euros, copiassem o modelo. Certamente, esgotariam mais rapidamente os stocks acumulados.
Outro momento alto foi o concerto que se seguiu. A atriz, compositora e cantora inglesa Keeley Forsyth deu mais um daqueles espetáculos que nenhum dos presentes jamais esquecerá. Acompanhada do pianista Matthew Bourne, Keeley cerrou os olhos, pegou no microfone e tomou conta do palco, emudecendo o teatro enquanto cantava de forma muito intimista e expressiva o álbum Hand to Mouth. Depois do impressionante álbum de estreia Debris, em 2020, esta multifacetada artista prova que são várias as áreas em que sabe dar cartas, e a música, como este concerto bem atestou, é uma delas. Excelente!
De regresso ao jardim, para os concertos da noite, tivemos ainda algum tempo para visitar as muitas tendas do comércio que anualmente aproveitam o festival Extramuralhas para vender os mais diversos artefactos a um público conhecedor e ávido por poder contactar com o comércio de acessórios ligados ao meio alternativo. Muitos dos comerciantes repetiam já a sua participação no festival, mas havia alguns estreantes. É sempre bom poder encontrar aquelas peças, sejam t-shirts, brincos, velas, candelabros, roupa, acessórios góticos ou discos, que normalmente se pode apenas comprar no comércio online, mas que aqui é possível ver ao vivo e a cores ao mesmo tempo que se conhece e se fala com os artesãos que fazem muitas daquelas peças. Na música, os repetentes Equilibriummusic, de Lisboa, e a Bunker Store, do Porto, atraíam largas dezenas de clientes que conseguiam ali encontrar aquele disco que há muito procuravam, mas que teimava em escapar. Esperemos que no futuro mais comerciantes se juntem ao festival, pois esta iniciativa é uma das mais interessantes.
Em relação aos concertos da noite, os franceses La Boum Brute, que ainda muito recentemente, em outubro último, tinham estado em Leiria para atuar no festival Monitor, foram os primeiros a pisar o palco. O concerto, à semelhança do que tinham dado no outono, convenceu e a reação do público demonstrou isso mesmo.
Dir-se-á que este duo gaulês conquistou o apreço da organização, pois as repetições de bandas não são uma opção que agrade muito à Fade In, que prefere oferecer, dentro do possível, novos nomes ao público do festival. Até pela proximidade à última presença em Leiria, esta repetição é digna de registo. A este respeito diga-se, em abono da verdade, que esta edição foi fértil em repetições de bandas. Além dos já referidos La Boum Brute, regressaram a Leiria também And Also the Trees, Matt Elliott, Bärlin e Suicide Commando. Não costuma ser a marca de água do festival, mas, quem sabe, talvez se esteja a assistir a uma mudança de paradigma e, no futuro, mais exemplos de bandas que marcaram pela sua passagem por terras do Lis a ela regressem.
Para o final da noite no jardim estava agendado aquele que seria, provavelmente, o nome maior do cartaz deste ano: Suicide Commando, banda belga de electro-industrial que tem o nome muito bem firmado no panorama da música alternativa a nível internacional e que, passados 14 anos, regressou a Leiria, depois de ter estado no castelo na segunda edição do Entremuralhas, em 2011.
Como seria de esperar, este foi mais um daqueles momentos que o público presente no Jardim de Camões não esquecerá. Da mesma forma, também a banda recordará certamente mais esta passagem por Leiria, à semelhança do que sucedeu com o primeiro concerto, como um dos posts da banda nas suas redes sociais – em que dava conta da satisfação de poder voltar à maravilhosa cidade e festival de Leiria – algum tempo antes do Extramuralhas provou. Boa escolha da Fade In. Repetições destas são sempre bem-vindas.
Não obstante as muitas emoções proporcionadas pelos excelentes concertos do segundo dia, e o natural cansaço que já se ia apoderando das pernas, faltava ainda a curta peregrinação até à Stereogun para o último concerto do dia. SYZYGYX, projeto de música eletrónica proveniente dos EUA e que integra a longa lista de bandas de excelência da editora Cold Transmission, assentaram arraiais no templo da música alternativa em Leiria e colocaram a casa, que estava cheia, a dançar ao ritmo dos sons poderosos e desenfreados deste projeto americano. Mais difícil do que conseguir encontrar energia para dançar a música foi conseguir acompanhar a vocalista Luna Blanc, que não parou um instante que fosse e fez questão de subir, de microfone em punho, várias vezes até ao andar de cima da discoteca e aí cantar alguns dos temas. Esta interação com o público é já uma tradição nos concertos deste festival, talvez seja isso que faz com que os artistas não se esqueçam de Leiria e dos espetadores e estejam sempre disponíveis para regressar.
SYZYGYX
E se de música eletrónica se fez grande parte da noite, nada melhor do que terminar com alguém que percebe do assunto como ninguém. Foi o que fez ALPHA, que conhecemos da sua participação em Bizarra Locomotiva, e que ofereceu um excelente dj set de final de festa, que só terminou quando, pelas 05h00 da manhã, as luzes da discoteca se ligaram todas, informado os presentes que a festa, naquele dia, tinha terminado e que era hora de ir dormir algumas horitas.
Dia 3, 23 de agosto
E eis que rapidamente chegou o último dia do festival. É sempre assim, o que é bom acaba depressa. Mas havia ainda um dia de muitos e bons concertos pela frente e, portanto, havia que aproveitar bem o tempo restante. Foi nesse sentido que reunimos um grupo de amigos, com destaque para um casal da zona sul de Lisboa com quem já tínhamos estado há dois meses em Leipzig, e repetimos o encontro num dos restaurantes ali perto do Mercado de Sant’Ana. Estes momentos convivais são sempre importantes, pois, muitas vezes, é durante estes repastos que temos tempo e oportunidade para colocar a conversa em dia com pessoas que encontramos apenas uma vez por ano, precisamente no Extramuralhas.
Findo o almoço, seguimos até à Fonte Luminosa, onde se encontra o famoso letreiro LEIRIA, devidamente engalanado para o festival, onde, pelas 15h00, estava marcada uma fotografia de grupo dos organizadores e festivaleiros desta edição do Muralhas. Com uma pontualidade pouco habitual na tradição lusa, à hora marcada largas dezenas de festivaleiros e os organizadores juntaram-se para um retrato de família, pois é disso mesmo que se trata: todos os que participam no festival, quer como espetadores, organizadores ou voluntários, formam esta grande família do Extramuralhas que, ano após ano, parece ir aumentando.
O último dia prometia bons momentos. E não defraudou as expectativas. Logo a começar, Ece Canli, portuense de coração, mas turca de nascimento, abriu as hostilidades com a tarefa difícil de acompanhar o nível dos dois concertos da Igreja da Misericórdia dos dias anteriores. Não só não defraudou como superou quaisquer expectativas que pudessem existir. Esta inacreditável artista deu mais um espetáculo sublime naquele que parece ser o templo dos milagres musicais em Leiria, a Igreja da Misericórdia. Fazendo uso da sua incrível voz, houve momentos em que nos pareceu que Diamanda Galas tinha regressado a Leiria e que estava também ela ali a cantar em palco. A comparação deve ser tida como um elogio, pois contar-se-ão pelos dedos de uma mão as cantoras cujo aparelho vocal pode ser comparado a de Galas.
A obra desta artista conta apenas com dois álbuns, o disco Vox Flora, Vox Fauna, de 2020, e o Sacrosun, de 2024. Inexplicavelmente, não havia qualquer cópia destes trabalhos para venda no concerto. Muito gostaríamos de ter tido oportunidade de comprar o vinil e pedir à artista que o assinasse. Seria interessante que os músicos aproveitassem estes momentos para vender a sua obra, pois, especialmente no que diz respeito aos discos em vinil, a sua aquisição via online acarreta muitas vezes custos de envio que tornam pouco acessível essa compra, especialmente se vierem fora de Portugal, o que não era o caso. Este foi mesmo o único ponto que encontrámos que nos suscita uma crítica menos abonatória. De resto, o espetáculo foi imaculado. Prova disso é que durante todo o concerto apenas se ouviram dois sons: o de uma tampa de plástico a cair no chão de pedra da Igreja, e o de um toque de telemóvel (seria importante que o público se habituasse a colocar os telefones em silêncio durante os concertos, especialmente os que decorrem neste espaço).
Ece Canli
Pela última vez este ano fizemos o percurso da igreja para o Jardim de Camões. Não havendo concertos no teatro neste dia, o jardim convocava-nos para cinco espetáculos, dois antes do jantar e três antes de fechar a noite na Stereogun.
So Dead, banda de Coimbra que contou com uma imensa legião de fãs no público, abriram os trabalhos da tarde. Depois do memorável concerto dado o ano passado no Luna Fest, na sua cidade natal, foi a vez de Leiria poder ouvir este projeto que, nas palavras da organização do festival, apresenta um “Pós-Punk construído a partir do Garage Rock, moldado pelo Synthpunk, coroado com No Wave e finalizado com Rock Sónico”. O milagre da multiplicação de festivaleiros com t-shirts da banda que deambulavam pelo recinto do jardim no final do concerto é boa prova de que a banda convenceu o público presente.
A segunda banda a atuar deu aquele que, em nosso entender, foi o melhor de todos os concertos deste ano no jardim. Não fazemos esta apreciação com base na música, pois o gosto varia de pessoa para pessoa, mas no que respeita à presença em palco e na interação com o público.
Tilly Electronics, duo alemão que é de Leipzig, mas que, disse-nos um passarinho, viveu vários anos em Colónia, e que é apresentado como o criador do género Glitter Wave. Apresentaram-se de rosto completamente ocultado, o que tornou impossível a sua identificação, explicando que se anunciem como sendo formados por “alguém” e “qualquer um”. Ainda o concerto não tinha começado e já a vocalista passeava em cima das colunas de som, aproximando-se do público e dando a entender que os artistas ali não eram apenas eles e que os espetadores também seriam convocados para a festa. Houve vários momentos do espetáculo que nos fizeram lembrar a banda alemã Welle:Erdball, igualmente bem-humorada e que consegue contagiar as pessoas que têm o privilégio de assistir aos seus concertos ao vivo. Este foi, sem dúvida, o mais louco e divertido de todos os concertos desta edição. Um hino de boa disposição que permite desfazer quaisquer estereótipos que persistem em relação a este festival. Este concerto permitiu ir perfeitamente ao encontro daquilo que a organização vai uma e outra vez repetindo nos últimos anos: Extramuralhas, o festival gótico mais alegre do mundo.
Tilly Electronics
Uma última nota que merece ser destacada foi a forma impecável como estes dois músicos trataram o muito público que, no final do concerto, os rodeou e sequestrou durante vários minutos para pedir autógrafos e fotografias. Os participantes do LSK – Leiria Urban Sketchers, que neste dia andavam espalhados pelo jardim a registar várias cenas do festival nos seus cadernos, bem podem atestar esta simpatia, pois viram os seus trabalhos serem autografados pela vocalista e puderam tirar fotografias para memória futura. E não esquecer o momento mais ternurento do festival, quando uma jovenzinha se aproximou do palco e fez questão de mostrar à vocalista o desenho que, também ela, tinha feito do concerto, gesto que emocionou a artista e que rendeu à jovem desenhadora um abraço sentido e um beijinho ternurento. Em que outro festival se vê coisas destas acontecer?
A última noite tinha ainda três bandas agendadas para o Jardim de Camões. Decline and Fall, novo projeto do lendário Armando Teixeira juntamente com Hugo Santos (Process of Guilt) e Ricardo Amorim (escritor), desfilaram várias músicas do seu álbum Scars and Ashes, composto daquela música de toada arrastada e repleta de negritude de que tanto gostamos. Pessoalmente, achamos que foi dos concertos mais interessantes e acreditamos que ainda vamos ouvir falar muito desta banda. Registámos a forma como o Armando Teixeira cumprimentou o público, confessando a sua satisfação por, finalmente, ter conseguido ter uma banda que lhe permitisse ir tocar ao Extramuralhas. A continuarem nesta linha, dir-se-á que não foi a sua última vez em Leiria.
Os últimos dois nomes da noite foram bandas bem firmadas no panorama da música dark. Minuit Machine foram as primeiras para aquilo que seria o final de festa eletrónico desta edição. Muito aguardadas, e com vasto público dedicado, podiam ter ficado a tocar até de manhã, tal a forma entusiástica com que o público acompanhou o extenso reportório que apresentaram. Esta é mais uma das bandas que fica nos registos do Extramuralhas e que muitos poderão dizer que viram ao vivo em Leiria precisamente porque este festival ali existe.
A última banda do palco do jardim foram os alemães NNHNM, repetentes na cidade depois da sua participação no Monitor 2022. Se o concerto de há três anos já fora marcante, este então foi o coroar de uma programação de luxo para uma edição sem par no panorama nacional. A química entre o duo é excelente e bem afinada, a interação da vocalista com o público é permanente, como já tínhamos visto em 2022. Percebe-se por que razão a organização decidiu repetir estes alemães, pois os seus espetáculos são sempre uma boa surpresa e garantia de qualidade. Podem continuar a vir mais vezes.
E, para final de festa, faltava ainda a última noite na Stereogun, que apresentava uma proposta bem interessante: Doric, grego que domina o sintetizador como ninguém e que faz questão de tocar tudo em direto, sem recurso a samplers pré-gravados, o que o obriga a uma ginástica complexa para dar atenção às teclas e aos muitos dispositivos e pedais de distorção e de efeitos que compõem a sua mesa de trabalho. Boa música eletrónica, daquela pura e dura e feita de forma artesanal.
E que melhor maneira haveria para fechar mais esta edição memorável de um Extramuralhas do que um dj set da Lena Cat, presença já habitual em Leiria? Os muitos festivaleiros que ficaram na discoteca após o concerto de Doric demonstravam que ainda era cedo para acabar a festa e que queriam mais música. E a Lena fez-lhes a vontade, entretendo os festivaleiros, cansados mas satisfeitos após três dias excelentes, até quase o raiar do novo dia, o primeiro sem qualquer concerto.
Enfim, tudo tem um final, e o Extramuralhas não é exceção. Resta esperar mais um ano, 365 dias, 52 semanas até à próxima edição. Passa num instante. Para ajudar a aguentar à espera, teremos o Monitor já em novembro, que ainda não foi anunciado, mas que se realizará certamente. Encontramo-nos todos lá.
Texto: Manuel Soares
Fotografia: Miguel Silva