Cinco Discos, Cinco Críticas #78

| Fevereiro 11, 2023 10:45 pm

No primeiro Cinco Discos, Cinco Críticas de 2023 vamos dos músicos mais experientes aos projectos mais recentes. Escrevemos sobre os álbuns de estreia de Italia 90Voice Actor, mas também sobre os novos lançamentos de Ryuichi SakamotoJohn Cale. Tal como em 2022, temos uma análise a Park Zero, que volta a editar um disco no primeiro dia do ano.

Italia 90 – Living Human Treasure [Brace Yourself]

Após terem lançado três EP’s homónimos ao longo da reta final da década passada, os britânicos Italia 90 lançam finalmente o seu primeiro álbum, de seu nome Living Human Treasure. A sonoridade da banda londrina é bastante enraizada nas tradições do post-punk mais abrasivo com laivos de noise assolador e – tal como muita banda punk britânica que se preze – cuja temática geral é o panorama sócio-político do Reino Unido, o que se reflete ao longo das onze faixas que compõem este álbum. 

A banda abre as hostes com a faixa “Cut”, que demonstra uma atmosfera quasi-goth sufocante, e logo a seguir chega a mais mexida “Leisure Activities”, apresentando já um espectro amplo q.b. da sua musicalidade. O alinhamento prossegue com highlights como a hipnótica “Competition”, a explosiva “New Factory”, a frenética “Tales from Beyond”, a closer intensa “Harmony”, ou até a surpreendentemente requintada “The MUMSNET Mambo”. 

O único ponto mais negativo do álbum é o facto de que alguns dos destaques aqui incluídos são regravações de faixas que já tinham marcado presença nos anteriormente referidos EP’s, o que poderá ser desapontante para quem esperava algo completamente novo (mas que não é uma prática assim tão incomum de outras bandas nesses circuitos). Ainda assim, essa é a única parte seriamente fraca de Living Human Treasure, que demonstra ser um bom álbum de punk made in UK do início ao fim para os adeptos do género.

Ruben LeitePark Zero – M [Edição de autor]

Há cerca de um ano, na 72ª edição desta rúbrica, falámos de Proxy, de Park Zero, lançado no primeiro dia do ano de 2022. Nesse artigo, descrevemos Proxy como uma adaptação ao “estilo da música de dança eletrónica ao avassalador poder frenético do power noise, criando 45 minutos de pura dança agressiva, barulhenta e ritmicamente caótica”. Foi um lançamento que me chamou à atenção e me obrigou a manter um olho nesta artista britânica.

Ora, exatamente um ano após o lançamento de Proxy, Park Zero lançou M. Apesar de continuar a mesma linha musical na qual a artista se tem mantido fiel desde o início da sua carreira, Park Zero parece demonstrar em M alguma maturidade e confiança extra. Continua com a sua sonoridade avassaladoramente frenética, ao qual é impossível não abanar a cabeça, mas consegue também criar alguns toques de melancolia densamente surreal que dão um sabor adicional à experiência. É bastante barulhento, sem dúvida, mas também consegue ser acessível a qualquer amante de raves. A transição de grooves é executada de forma impecável, permitindo uma ótima fluidez ao longo de todo o LP. Além disso, a aposta num tempo de duração mais curto foi bem pensado. Permite que o álbum seja mais memorável e consistente, indo direto ao ponto e não abusando da hospitalidade do ouvinte. É, de facto, uma maturação notável por parte de Park Zero (e creio que a sua evolução enquanto artista ainda está longe de atingir o seu pique).

Os maiores destaques dentro de M são definitivamente as duas primeiras faixas: “The Jungle” e “Strangelove”. São músicas construídas de uma forma excepcional: exploram o EDM a um nível extremo, no qual compreendo perfeitamente tanto quem odeie como quem ame, mas não posso compreender quem diz ser indiferente a qualquer uma das duas músicas. Compreendo que possa ser alto a um nível altamente distrativo, mas creio que este álbum não seria o mesmo sem toda a barulhada. É o seu principal trunfo (não fosse M um álbum de power noise para se dançar com uma energia conduzida à base de uma energia de dança raivosamente potente).

No fundo, creio que Park Zero está no caminho de cimentar o seu lugar para um dos nomes mais criativos e únicos dentro da música eletrónica e prego que, à medida que evolua, mais pessoas possam ter o prazer de saber quem é a Park Zero.

João Pedro AntunesVoice Actor – Sent from my Telephone [STROOM]

Publicado no último mês de dezembro, longe do escrutínio das listas de melhores do ano, Sent From My Telephone esconde um dos tesouros mais bem guardados de 2022: quatro horas e trinta minutos e mais de cem canções reunidas num único e inclassificável lançamento – editado em formato digital pela editora belga STROOM – onde se reconhecem ruídos, texturas e ecos de qualidade hauntológica, ambientes soturnos e uma apetência para a abstração corporizada em poemas de recorte hipnagógico.

Ordenado por ordem alfabética, o disco – que assinala a estreia do duo formado por Noa Kurzweil e Levi Lanser, ou seja, Voice Actor – é o comprimido ideal para noites longas e mal dormidas, um sonho lúcido conduzido pela voz sussurrante de Kurzweil, cujo inglês arranhado mas encantador espalha charme blasé por todo o lado. Audições assíduas e sem critério são recomendadas (modo aleatório não deverá desmantelar a continuidade dos temas), e os ouvintes mais empenhados serão recompensados com um conjunto de retalhos sonoros familiares, dos génios distantes de Su Tissue (“Pretty Lies”) e Badalamenti (“THE GREET”) aos ambientes urbanos de Burial (“Camden”), a voz ecoante de Lisa Gerrard (“Floating Signifiers”) ou o espírito eterno de Ian Curtis (“SILENCE”).

É uma obra indulgente e extremamente ambiciosa, esta que os Voice Actor cozinharam ao longo dos últimos três anos — longa mas estranhamente coesa, tanto na forma como no seu conceito. Um corpo exploratório onde os universos de Félicia Atkinson, Dean Blunt e Inga Copeland (por via do projeto Hype Williams) colidem num todo que é muito mais do que a soma das suas partes.

Filipe CostaJohn Cale – Mercy [Double Six]

Depois de 11 anos sem lançar um álbum de originais, o octogenário John Cale regressa com Mercy, o seu 17º registo numa discografia que inclui também, surpreendentemente, 37 bandas sonoras. O artista galês, co-fundador dos lendários The Velvet Underground, há muito tempo que dava sinais de estar a trabalhar num novo álbum, cujo lançamento foi sendo adiado ano após ano sem grande explicação. Mercy finalmente chegou no passado dia 20 de janeiro com edição pela Double Six Records, uma subsidiária da Domino que tem nomes como Spiritualized nos seus quadros. A lista de colaborações é extensa e de alto nível, incluindo artistas como Weyes Blood, Animal Collective e Fat White Family, entre outros.

Marcado pelas causas sociais, este álbum tem como inspiração a presidência de Donald Trump, a COVID-19, as alterações climáticas e o extremismo de direita. A sonoridade é, portanto, algo assombradora. Como se estivéssemos num sonho tranquilo que rapidamente começa a desmoronar. Conseguimos ouvir a mágoa que Cale tem dentro de si desde a primeira faixa, “Mercy”, que conta com Laurel Halo. Esta música marca o passo para o resto do álbum, apresentando um dream pop sombrio que nos leva numa viagem até ao coração dos nossos dilemas. “Noise of You” é um dos pontos altos de Mercy, uma malha destrutiva que vai buscar a nostalgia de um amor perdido e a mágoa que se sente. Mas o destaque vai mesmo para “Story of Blood”, faixa elaborada em conjunto com Weyes Blood. Conseguimos ouvir as vozes dos dois artistas em perfeita sintonia enquanto cantam “Swing your soul, Swing your soul, Swing your soul”, num dueto incrível que deixa os ouvintes em estado de transe.

Mercy não é uma obra fácil de se ouvir, pois transmite uma aura depressiva capaz de nos afetar emocionalmente. No entanto, isso não ofusca o excelente trabalho realizado por John Cale. Mesmo com 80 anos de idade e uma carreira repleta de sucessos, o ex-Velvet Underground continua a ser uma força reconhecida no mundo da música.

Tiago Farinha

Ryuichi Sakamoto – 12 [Milan]

Ryuichi Sakamoto tem hoje 71 anos e soma quase uma centena de lançamentos ao longo da carreira, entre colaborações, discos em nome próprio e os seus álbuns enquanto membro da seminal Yellow Magic Orchestra. Feitas as contas, é praticamente um milagre que continuemos a ter discos seus, especialmente dado o estado de saúde precário do “sensei” japonês, afectado por vários cancros ao longo da última década que o afastaram de qualquer performance ao vivo.

O seu mais recente disco, 12, encara de frente a saúde débil de Sakamoto e a sombra da sua própria morte. A dúzia de temas que compõe o disco funciona como diário musicado de um período de convalescença entre Março de 2021 e Abril de 2022, alternando entre trabalhos de sintetizador e composições ao piano. As teclas de Sakamoto já não exibem o vigor e inventividade do seu fantástico Async, de 2016, mas emanam a mesma ternura e sensibilidade melódica transversal às últimas décadas do músico nipónico. Exemplo disso é a romântica e debussyana “20220302 – Sarabande”, peça que poderá não estar longe de ser uma última homenagem a um dos seus heróis.

“20211130” e “20211201” são dois dos temas de semblante mais fúnebre — na última destas faixas, o inspirar e expirar sincopados, provenientes da respiração frágil do próprio Sakamoto, pairam sobre a produção e funcionam como uma percussão fantasmagórica que nos toma de assalto e prende a atenção, nunca deixando que a arquitectura sonora minimalista se evapore no éter. Outra das peças mais impressionantes é “20220123”, onde, algures no nevoeiro, acordes perfeitos de piano pontuam uma espécie de meditação: podemos imaginar Sakamoto de olhos fechados, concentrando-se somente na sua respiração e permitindo que os dedos ganhem vida própria e o guiem às teclas certas do piano. É música que só poderá vir da tranquilidade de alguém que fez as pazes com a sua própria mortalidade. A única coisa que lhe devemos é celebrar Sakamoto ainda em vida.

Luís Sobrado

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