Melhores do Ano 2022: Revelações
Melhores do Ano 2022: Revelações
Melhores do Ano 2022: Revelações
2022 foi um ano de regressos. Após um interregno de 2 anos, pudemos sentir novamente na pele, e nas pernas, o certame festivaleiro. Marcámos presença na primeira edição do Sónar Lisboa, reencontrámos amigos no Norte – no Primavera Sound, em Paredes de Coura, nos dois fins-de-semana do Amplifest e no Semibreve –, e fomos também muito bem recebidos no Sul, em Beja, numa das mais ambiciosas edições do MUPA. Além portas, testemunhámos toda a experiência Viking, no festival Midgardsblot, que se realiza numa antiga povoação viking na Noruega. Conversámos com artistas consagrados cujas carreiras acompanhamos desde o início, como Jenny Hval e Circuit des Yeux, ADN musical de Haley Fohr, e revisitámos o Japão dos anos 70 e 80, em busca da essência da City Pop.
Cá dentro, tivemos o prazer de ouvir o que artistas como os Indignu, Sereias e Surma tinham para partilhar connosco. Foi um ano cheio de música e início de novos projetos musicais em Portugal. Voltamos a reunir um conjunto de 16 projetos emergentes no nosso apanhado de revelações nacionais, que editaram a sua primeira coleção de canções em 2022 – seja um EP, um álbum ou uma mixtape – e cujas estreias surpreenderam a equipa da Threshold. Do rock lo-fi do projeto portuense Banda de Call Center (BCC), ao shoegaze dos Summer of Hate, à cena emocore lisboeta de Hetta, Fumo Ninja ou até mesmo artistas a solo como Inês Malheiro e a minhota chica, apologista de uma vida mais simples e plena, passada a brincar com o cão, 2022 foi um ano onde os jovens portugueses mostraram uma iniciativa invencível para criar e tocar música diferente.
AG.R97
Da “dicotomia de não pertencer mas não conseguir partir”, num estúdio situado entre a “caótica envolvência urbana” de Gaia e a “pacífica” vista panorâmica do Porto, nasceu um dos mais fascinantes documentos do Portugal musical de 2022. Painwave, a estreia dos portuenses AG.R97 em longa-duração, foi concebido entre 2020 e 2021 por Luís Neto e Pedro Pimentel (Wordclock) através “de um esforço colaborativo constante”, apresentando nove “peças eletroacústicas” que combinam sound design, vozes mergulhadas em auto-tune e avançados arranjos eletrónicos, bem como “uma natureza pop sempre presente”.
A propósito do seu lançamento, em novembro, estivemos à conversa com a dupla sobre o papel dos videojogos e do cinema na concepção e idealização da elusiva identidade do grupo, bem como a importância dos títulos, das letras e dos formatos que compõem uma das mais impressionantes estreias deste ano, numa entrevista que podem recordar aqui. Filipe Costa
bcc
Escrito em 2021 e lançado em formato digital e em K7 no inverno de 2022, BCC é o álbum de estreia dos bcc (banda de call center), quarteto formado por badsá, Sara Azul, Rui Fonseca e Vanessa Lonau. Na essência, bcc é uma chamada de ação garage rock/no wave dirigida ao proletariado do setor dos serviços para a tomada de consciência da precariedade que pauta o seu quotidiano profissional, particularmente dos trabalhadores que povoam os mais diversos call centers, para diariamente falar com pessoas, em alguns casos, espalhadas pelo mundo inteiro, sem nunca saírem da sua secretária nem retirarem o seu headset.
A pedrada lançada por estes arautos da resistência laboral no charco da música portuguesa aproxima-os, sonicamente, dos Tiago e os Tintos (com quem já partilharam palco), dos 800 Gondomar ou das Pega Monstro, ao mesmo tempo que a sua experiência vivida verte na emoção veiculada nas letras dos cinco temas que compõem BCC – há versos demasiado vívidos para serem mera fabulação simbólica. Estaremos perante um exercício niilista, um one-off do coletivo? Ou será esta uma ode transformadora, um primeiro passo no percurso dos bcc? Resta-nos esperar pelo próximo álbum na certeza que, por hora, “NÃO EXISTE UM TUDO BEM”. Edu Silva
Bandua
O ano de 2022 começou logo com o pé direito ao dar-nos a conhecer o novo projeto Bandua, formado pelo cantor e performer Edgar Valente (dos Criatura) e o músico e produtor Bernardo D’Addario, conhecido como Tempura nas suas lides eletrónicas. O single de avanço “Cinco Sentidos”, com a participação de Sara Mercier, rapidamente impressionou pela sua sonoridade: uma eletrónica pop influenciada pelo downtempo, interligada com uma estética tradicional do folclore proveniente da Beira Baixa, tornando-se uma verdadeira homenagem às tradições musicais de um interior esquecido. A destreza e a ousadia em criar músicas a partir da reinterpretação de poemas daquela zona geográfica, onde ambos partilham origens familiares, foi sem dúvida uma das mais belas surpresas do último ano.Se ainda não tiveram a oportunidade de assistir às transcendentes e divinas atuações ao vivo deste duo, não percam mais o vosso tempo e vejam com os vossos próprios olhos a energia ancestral e incrível vivacidade dos Bandua. Eduardo Coelho
Benjamim Furtado
Editado pela holandesa Seedlink⁺, A Matter of Pronunciation é o disco de estreia de Benjamim Furtado, músico português residente em Amsterdão. Com base em timbres quentes e suaves de sintetizador e uma percussão algo glitchy, as suas composições eletrónicas alternam entre ambientes aconchegantes e ritmos alegres, mantendo sempre uma sonoridade serena, por vezes nostálgica e agridoce, como em “Landscape in a Steel Frame” e “Exfoliation Rock”, outras vezes mais divertida (“Rabbit Statue” ou “Impalpable Bubble”). Do início ao fim, A Matter of Pronunciation leva-nos às nuvens de um mundo digital e embala-nos no conforto de uma palete sonora muito tranquila, repleta de pequenas subtilezas que lhe dão um tom muito próprio. Rui Santos
chica
Uma minhota em Lisboa, é este o cartão de visita de chica. Depois da sensacional canção-protesto de estreia “Brincar com o cão”, em que aborda os problemas que afligem uma geração precária afetada pelos direitos à habitação, direitos laborais e outras questões sociais e de liberdade, surgiu Cada Qual no Seu Buraco, exercício puro, legítimo e original que reúne um conjunto de canções em forma de desafio ao status quo. Durante esta curta viagem é possível escutar o contraste das suas reflexões e pensamentos, desde correntes niilistas e existencialistas a visões marxistas e anti materialistas. São diversas as frases soltas deste disco que se fixam permanentemente na nossa memória: a veia artística de proporções reivindicativas e sindicalistas de chica termina de maneira sublime com um coro a exclamar “eu tenho amigos em todo lado e sem eles eu não sou nada”. Eduardo Coelho
COBRACORAL
As COBRACORAL são um trio formado por Ece Canli, Clélia Colonna e Catarina Miranda, cuja sonoridade entrelaçada por vozes em comunicação constante desencadeia uma experiência singular, espécie de orquestra vocal a ecoar no infinito para preencher o vazio que a rodeia. Um núcleo interno que exprime variedade por muito unidimensional que possa parecer – há o canto polifónico de Clélia, os experimentalismos vocais intensamente expressivos de Ece e a oralidade explorada de forma teatral de Catarina, que nesta estreia unem e diluem essas técnicas individuais para sugerir um organismo coletivo encantador, declaração enfática de uma feminilidade luminosa, quase ancestral. O resultado é triunfal, grandioso no modo como transmite a pureza de três mulheres em absoluta sintonia na catarse emotiva da sua expressão artística. Jorge Alves
Dies Lexic
Figura ubíqua do agitado tecido experimental do Porto, Xavier Paes tem vindo a construir um dos mais elusivos – e prolíficos – corpos de trabalho nos campos da improvisação feita em Portugal. Com Inês Tartaruga Água, a artista natural de Ovar, cuja prática se reparte entre o som, a performance e as artes plásticas, estabeleceu uma das mais inventivas parcerias nos domínios da arte contemporânea, com performances comissariadas por instituições tão prestigiadas como a Fundação de Serralves ou o La Pointe de Lafayette, em Paris.
Na música, sob o heterónimo Dies Lexic, a dupla mantém uma longa e proveitosa relação com a Favela Discos, reconhecido coletivo do Porto que selou a estreia do duo em longa-duração no passado mês de setembro. Lexicon Hall, o título do lançamento em questão, é uma selva frondosa em vozes, ritmos e secções de cordas, da melhor escola de Tony Conrad, que coloca os exercícios concretos de Pierre Schaeffer em diálogo com os ecos quartomundistas de Jon Hassell. Filipe Costa
Fumo Ninja
O grupo Fumo Ninja é um projeto que acrescenta ao prolífico cânone do irrequieto músico Norberto Lobo. Munido do seu fiel baixo, Lobo junta-se assim à equipa instrumental composta pela bateria sóbria de Ricardo Martins e pelas teclas melodiosas de Raquel Pimpão, que servem de remate à voz límpida e harmoniosa de Leonor Arnaut. O resultado desta colaboração culminou no álbum Olhos de Cetim, uma coleção de faixas breves mas espontâneas e elegantes, num fio condutor que flirta com a pop mais orelhuda e cativante, mas que não se coíbe de revelar uma progénie vagamente jazzy de preponderância espacial. Músicas como “Andróide” ou o single de avanço “Segredo” são uma bela maneira de se ficar prendido ao breve mostruário sonoro do imaginário alucinante e anódino dos Fumo Ninja. Ruben Leite
Hetta
Em Headlights, cartão de visita dos Hetta, o quarteto do Montijo apresenta seis faixas curtas e extremamente enérgicas, com vocais intensos, riffs frenéticos e ritmos explosivos. O EP é definido por uma sonoridade pós-hardcore complexa e intensa, com dinâmicas imprevisíveis e transições rápidas. Pode parecer muito caótico à partida, mas audições atentas vão revelando as melodias que dão forma a cada faixa. Músicas como “Sugar Glass” e “Mystery Meat” têm secções que dão espaço para respirar antes de voltarem a explodir com ainda maior intensidade em conclusões catárticas, enquanto “Angel Bait” e “Violent Pope” mantêm a energia sempre em alta, reforçando uma sonoridade agressiva que faz de Headlights um dos lançamentos nacionais mais impactantes de 2022. Rui Santos
Inês Malheiro
Ruídos exteriores que parecem não ser bem interferência e uma voz vagarosa e hipnotizante, manipulada e reconfigurada pela maquinaria que a comanda. É este o mundo insólito habitado por Inês Malheiro em Deusa Náusea – um campo fértil de eletrónica alienígena mas encantatória que ocasionalmente recorda os ambientes de Grouper, num sopro psicadélico que tem tanto de alucinante como de aconchegante. E se inicialmente tudo nos soa estranho e desafiante, rapidamente essa estética glitch desconcertante começa a espalhar uma magia que prende e vicia, sugando-nos para a sua beleza como o canto esotérico de uma sereia. Um universo sonoro fragmentado e surrealista alimentado pelo encanto das suas idiossincrasias, demasiado belo para que não o revisitemos com frequência. Jorge Alves
Joana de Sá
2022 foi um ano preenchido para Joana de Sá. Shatter, a estreia da artista natural de Mortágua em longa-duração, aterrou em março de 2022 na editora Sirr, do compositor Paulo Raposo, e que abriga, entre outras, obras de Lawrence English, Janek Schaefer e Anthony Pateras, levando-a a atuar em eventos reputados como os Jardins Efémeros, de Viseu, onde atuou no âmbito da iniciativa Aos Cantos dedicada aos valores emergentes na área sonora. Produzido entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, a partir de uma série de motivos para guitarra e sintetizador, Shatter é uma obra porosa e de recorte ambiental onde se reconhecem drones, ruídos e gravações de campo, prestando homenagem aos sons que inspiram a artista sem nunca se perder inteiramente neles. Filipe Costa
Kurtis Klaus Ensemble
Kurtis Klaus Ensemble é um quarteto oriundo do Porto, formado por Luís Mendes (BC/DC), José Silva (twistedfreak, Conferência Inferno), Kevin Pires (Mother Jupiter) e Rodrigo Ferreira. Inspirados pelas obras de propulsores como Terry Riley e Tangerine Dream, os Kurtis Klaus Ensemble alimentam-se de revivalismo, de paisagens do krautrock escolástico e de texturas eletrónicas imersivas, evidentes em temas como a introdutória “Bad Orb” e “In E”. O seu primeiro registo de estúdio chegou em novembro, pela mão do também portuense Coletivo FARRA, e releva-se como uma verdadeira odisseia pelo espaço sideral. Rui Gameiro
Louis Wilkinson
Chegou no último mês do ano, mas ainda a tempo de captar a atenção dos nossos radares. Advanced Shipment Tracking marcou a estreia de Louis Wilkinson, produtor sediado no Porto, e o ingresso no catálogo do Colectivo Casa Amarela. Após a participação na compilação Estado de Emergência, editada pela mão da Weathervane Recs em abril de 2020, onde também se apresentam nomes icónicos da música exploratória nacional como carga aérea, Aires, usof, Francisco Oliveira, Kara Konchar, entre outros, surge este EP, dividido em dois lados, dotado de uma estética marcadamente dub. Baseado num processo criativo moroso, mas minucioso, Advanced Shipment Tracking assenta no fascínio pelo tape delay e na recusa dos clichês tradicionais do ambient. Rui Gameiro
Maripool
Maripool é o alter-ego de Natasha Simões, songwriter oriunda de Lisboa que atualmente reside em Londres. Diretamente do seu quarto para o mundo, a artista compõe e toca todos os instrumentos como uma one girl band, assumindo um ethos do it yourself. Natasha editou em 2022 o seu primeiro EP enquanto Maripool, de nome It All Comes At Once e editado pela Practise Music. A artista pega aqui nas influências indie pop, shoegaze e midwest emo e transforma-as em algo único, pessoal e intransmissível, que não perdem a beleza ou honestidade que vêm sendo associadas ao seu trabalho. Tiago Farinha
Summer of Hate
Love Is Dead! Long Live Love é o longa-duração de estreia dos Summer Of Hate, mas esse é um apontamento que poderá revelar-se enganador: estes são já veteranos do rock alternativo, uma experiente e reputada banda ao vivo que ainda conta com um bom par de singles e faixas lançados ao longo da última década. Essa maturidade revela-se na coesão sonora deste primeiro álbum, a de uma banda que não esconde as suas influências e que mostra saber o que quer e para onde vai. As guitarras veraneantes de “Here We Are” remetem-nos para o pós-punk revivalista de uns Wild Nothing e “Come Talk” é shoegaze que se alastra pelo campo sonoro em busca de catarse. A catchy “Não Sei” é o primeiro single do disco e aquele que melhor capta a plenitude das capacidades da banda, desde a voz etérea de Laura Calado, passando pela camada ruidosa de guitarras que a suporta, mas também pela sensibilidade melódica e instinto pop que os Summer Of Hate se orgulham de exibir. Luís Sobrado
Vile Karimi
Drones com timbres orgânicos em lenta mutação e ocasionalmente acompanhados por vocais ou ritmos cobertos em efeitos definem a essência de Womb Trails, lançamento no qual Vile Karimi aprimora a sonoridade etérea que caracteriza os seus trabalhos anteriores. Os ambientes sombrios criados em cada faixa distinguem-se muito pela variedade de timbres e instrumentos que dá a cada composição uma sonoridade distinta, ainda que sempre coerente com o todo. Exemplo disso são as cordas em “If I Could Reach You I Would”, a percussão distorcida de “Birth Marks” ou os elementos mais industriais de “Subdural Hematoma” e “Perpetual Care”, que chegam a fazer lembrar as bandas sonoras de Silent Hill. Womb Trails é “uma coleção de canções sobre finalizar” marcada por composições minimalistas, mas pesadas e atmosféricas. Rui Santos